Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Essa luta não tem preço

Primeiro, como de costume, desde o tempo da casa-grande e senzala, usaram a força. Baixaram o porrete, para intimidar. Mas o povo não recuou. Depois, entre aqueles que mandaram bater ou se omitiram, houve quem tentasse a dissimulação. Alguns tergiversaram e não poucos calaram. Boa parte da mídia praticou, mais uma vez, a manipulação, com falsos argumentos. Também não deu certo. Comentaristas em redes de televisão chegaram a fazer inusitados mea-culpa, tão desconcertados ficaram e ainda na vã ilusão de que influenciariam as massas. Tentaram afinar o discurso, mas não entenderam que há muito tempo são uma caricatura do passado. E o que se vê nas ruas é algo novo. Não teve organização político-partidária, mas é um movimento político. O que começou por 20 centavos, agora não tem preço que pague nem hora para acabar. Mais importante do que saber em que isso vai dar, é festejar que esteja acontecendo. É desdizer mais uma vez aqueles que acreditam na eterna apatia do povo, como se a resignação de todos os dias não fosse o fermento para mudar a história. Quem tem juízo não subestima o povo que sofre calado ou que protesta em vão diante de uma elite insensível. Há incontáveis exemplos na história de que o que começa com um nada pode irromper com tudo. Até mesmo em violência incontrolável. Porque sempre há uma hora para o “basta”.

Não é simples explicar o que une 100 mil pessoas, de repente, nas ruas do Rio, milhares em São Paulo e em todo o Brasil. Brasileiros protestam até mesmo nas principais cidades de outros países. Talvez um cansaço que deu ânimo a uma revolta. Ou o ápice de tantas outras manifestações menores, nas ruas e bairros da periferia, por direitos negados, por retrocessos políticos, por uma incompreensão das demandas populares.

O argumento da falta de recursos

Ironicamente, tudo isso explode, como num grito de gol, em plena Copa das Confederações. “A rua é a maior arquibancada do país”, diz um comercial na TV. Acertou! Não faltam motivos para protestar nas ruas, no país em que a democracia nunca cumpriu o papel de estender o seu manto a todos as brasileiros e sempre serviu a tão poucos. Não é só aqui, porque a democracia representativa, à mercê dos grandes conglomerados financeiros, representa cada vez menos a vontade política das sociedades. O discurso capitalista já não convence em suas promessas de um horizonte feliz. Os empregos diminuem e a exploração aumenta. O modelo de consumo destrói o planeta e ameaça o futuro das próximas gerações.

No Brasil, há séculos perdura um apartheid entre os doutores e os sem-diploma ou com rala educação formal. Construímos desde Cabral uma sociedade que não dá chances a quem pouco tem, e que somente tolera algumas exceções. O Judiciário, o Parlamento e o Executivo atuam de modo a impedir que os direitos dos cidadãos possam ser exercidos em sua plenitude. Há muitas motivações políticas nas manifestações. Todas válidas, todas legítimas. Mas há anos, décadas – séculos não seria exagero – ecoa uma reivindicação nunca atendida: queremos qualidade de vida, igualdade de oportunidades, respeito. O direito a usufruir uma vida melhor.

No meio de uma manifestação, um cartaz sintetizava, quem sabe, esse sentimento: “Queremos escolas e hospitais no padrão Fifa”. Outro seguia na mesma linha: “Se tem dinheiro pra Copa, tem que ter para a educação”. Com ironia peculiar, apontam para a inaceitável situação de investir R$ 33 bilhões em estádios e infraestrutura para o evento e, ao mesmo tempo, anunciar que não há dinheiro para saúde, educação, segurança, cultura e transporte público de qualidade. Ou para serviços públicos essenciais, sempre delegados a uma iniciativa privada ávida por lucros. Organizar uma Copa do de Futebol e uma Olimpíada deveria ser motivo de orgulho, desde que serviços essenciais não estivessem à míngua, sob o repetido argumento da falta de recursos.

A criação de algo novo

A maioria dos brasileiros está cansada de ser tratada como cidadão de segunda classe, sem direitos, a enfrentar filas e mau humor em milhares de guichês de repartições públicas, sucateadas por governos que se locupletam com a iniciativa privada para lucrar com a privatização. Ninguém aguenta mais a falta de transporte público de qualidade, com raras linhas de trens e metrôs. Noventa por cento do transporte “público” do país é feito por ônibus de empresas privadas, que rodam nas mesmas vias abarrotadas de automóveis. Estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) revela que o Estado brasileiro (União, estados e municípios) investe 12 vezes mais no transporte individual do que no sistema de mobilidade coletiva. Para o transporte sobre trilhos, a desculpa é sempre a mesma, da falta de recursos. Resta, então, saber qual é o milagre de países que não estão entre os 10 mais ricos do mundo – e o Brasil está! – e que espalham ferrovias por todo o seu território.

Governadores e prefeitos, embora assustados com o tamanho das manifestações, têm sido incapazes de compreender o que está acontecendo. Repetem bordões do tipo “estamos numa democracia e todas essas manifestações são legítimas, desde que pacíficas”. É patético ouvir algumas autoridades e alguns burocratas afirmando que “aguardam as lideranças para negociar”. Não entenderam nada do que está acontecendo. Esperam que tudo passe e volte à normalidade dos conchavos de gabinetes, da velha política que não presta contas aos cidadãos. Quando muito prometerão migalhas para diminuir a pressão, na certeza de que tudo haverá de acalmar.

Mas, o que se pôs em marcha não volta à sua condição original. O povo está nas ruas com um recado. Governos que não quiserem ouvir o que se grita nas praças, que não souberem ler o que está escrito em cartazes e faixas serão página virada da história. O que se vê nas ruas não é pouca coisa. Trata-se de um desencanto profundo com as formas tradicionais de política, de justiça injusta e com uma democracia que é cada vez mais uma caricatura, muito distante do vigor que emerge das redes sociais. Há uma potencialidade para a criação de algo novo, que ninguém sabe ainda o que é.

O país acordou. E vai tirar o sono de muita gente. Começou por 20 centavos, mas essa luta não tem preço!

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Celso Vicenzi é jornalista