Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A Ópera de Dois Vinténs do povo brasileiro

Prelúdio

As autoridades, fascinadas com os grandes eventos, não se deram conta da maré que vinha se formando. O aumento do custo de vida, acentuado desde o início do ano, com o “espetáculo do crescimento” reduzido a níveis medíocres, levou a equipe econômica a bater cabeça para todo lado propondo desonerações fiscais setorizadas e medidas paliativas confusas e de pouco resultado prático, uma delas adiar o aumento das passagens de ônibus no Rio e São Paulo para segurar os índices de inflação no início do ano. Um desastre, o aumento foi concedido no justo momento em que a Fifa começava a tocar o seu circo de luxo pelo país, o que deu aos líderes do movimento nas redes sociais o mote que faltava.

Nem mesmo as primeiras manifestações foram suficientes para acordar nossos governantes. De Paris, onde estavam fazendo sabe-se lá o que (além de gastarem o dinheiro do povo com seus cartões corporativos), o governador e o prefeito de São Paulo desdenharam do movimento e, como seus colegas do Rio, defenderam a repressão brutal e desproporcional das polícias no dia 13/6, apesar da repercussão negativa em toda a imprensa – não apenas do Brasil, mas do mundo. O governo federal também optou por criminalizar o movimento. O ministro da Justiça, que há pouco tempo determinou que a Polícia Federal não investigasse os mensaleiros, ordenou investigações rigorosas sobre os manifestantes (o que terminou em uma arapongagem ridícula para perseguir funcionários públicos). A própria Dilma fechou-se em profundo silêncio, quando da estrepitosa vaia que recebeu no estádio Mané Garrincha e ainda assistiu ao sr. Blatter arvorar-se a passar um pito em nosso povo. A grande mídia procurava por todos os meios desqualificar o movimento. Emblemáticos nesse sentido foram os comentários de suprema infelicidade do sr. Jabor. Mas não tinha mais volta e a febre dos protestos tomava conta das ruas, não se falava em outra coisa pela cidade.

Ato 1 – A marcha triunfal

E chegou o dia em que tudo mudou, em 17/6, uma maré humana tomou as ruas de todo o país, uma massa imensa mobilizada sem centrais sindicais, sem partidos, sem carros de som, sem comando organizado, algo totalmente inédito. A multidão surgiu finalmente como um ator no cenário político nacional e, para desespero dos meios políticos tradicionais, sem dispersão nem dúvidas, com reivindicações claras representativas dos anseios da sociedade e colocando o dedo na ferida do nosso carcomido sistema político e econômico. Primeiro os 20 centavos.

Uma vitória espetacular do povo brasileiro. No país em que nada abaixa de preço, barrar um aumento para esses tubarões que controlam as empresas de transporte não é café pequeno não. Monopólios poderosos com estreitas ligações com o poder vão ter que amargar uma redução na taxa de lucros. Os antes arrogantes prefeitos e governadores botaram o rabinho entre as pernas, concederam a redução de tarifas e contiveram a fúria de suas polícias. A presidenta declarou ouvir a voz das ruas e teceu elogios aos manifestantes, a imprensa que vinha desancando o movimento começou a exibir pungentes imagens de adolescentes, idosos e famílias nas manifestações, até o sr. Jabor apresentou suas desculpas (de suprema mediocridade).

Ato 2 – A guerra

Dia 20/6 a maré humana virou um tsunami. No Rio gente de todos os setores e de todas as partes da cidade formaram um imenso caudal humano da candelária até a Cidade Nova, a velha Rio Branco não comportava mais a multidão. Os governantes que por atônitos demoraram a reagir anunciaram a redução de tarifas tardiamente e a manifestação além de uma grande comemoração pela vitória, serviu para que múltiplas outras reivindicações surgissem. Todos os cidadãos que tinham suas diferenças com o poder, desde taxistas, motoristas de van até setores do funcionalismo pareciam querer o seu bocado, inclusive os bandidos. Cabral, como é de hábito em momentos de crise, sumiu e a polícia voltou a atuar como de costume, com violência desproporcional, iniciando um tumultuo que se espalhou por toda a cidade.

Embora felizmente não seja o mais importante nas manifestações (pelo menos por enquanto) os confrontos tendem a ser o aspecto mais comentado, pelos ferimentos, os prejuízos e os riscos para as pessoas, além das imagens fortíssimas que proporcionam. Os confrontos entre “baderneiros” e a polícia é o debate do momento. Sobre isso eu gostaria de fazer algumas observações baseadas no que eu assisti e vivi nessas manifestações.

Em primeiro lugar as pessoas que genericamente vem sendo descritas como “baderneiros” estão longe de se constituir em um grupo homogêneo. Na noite do dia 20 assisti na Treze de Maio uma tentativa de arrombamento a uma loja, pude identificar alguns jovens que costumam assaltar tanto pelas ruas da Lapa que já são conhecidos dos frequentadores (que por sinal estavam apanhando nos bares enquanto os ladrões faziam a festa). Claro que bandidos irão sempre se aproveitar de situações como essas, às vezes até mesmo o crime organizado como parece ter ocorrido na Providência. Isso sim é problema para a polícia resolver. Há também pessoas que buscam o confronto por considerarem ser um caminho político para mudar a sociedade, obviamente essas pessoas não é a maioria e a tendência é a de que sejam contidas pelos próprios manifestantes, como aconteceu dia 17 quando Cabral recuou a polícia e deixou um pelotão de buchas de canhão para apanhar na Alerj e acabou sendo o povo que defendeu a sua polícia, pela qual ninguém morre de amores, mas que todo cidadão responsável sabe que precisa. Nossa polícia é truculenta (a que mais mata no planeta), vive atolada em casos de corrupção, tem milícia o diabo, mas é a polícia que nós temos e pode melhorar como tudo mais.

O problema é a falta de política no comando do uso da força. De que adianta o Secretário de Segurança pedir às pessoas que se manifestavam de maneira ordeira e foram bombardeadas e agredidas para não demonizar a polícia. Dia 20 eu estava em frente à Prefeitura quando algumas pessoas começaram a provocar a força policial, poucas pessoas que seriam contidas pelos próprios manifestantes que estavam chegando perto para isso, o aparato mobilizado era também poderoso o bastante para fazer a contenção de maneira localizada, a tropa, entretanto, começou a lançar bombas atrás dos exaltados para separá-los da multidão e aqueles ativistas mais experientes que poderiam ajudar a dirimir o conflito tiveram que recuar imediatamente e começar a tentar organizar uma retirada sem pânico de muitas pessoas jovens ou idosas demais, sem experiência em situações do tipo e que começaram a ser comprimidas contra as margens do Canal do Mangue. A tropa poderia avançar a pé, estabelecer um novo perímetro e dar uma área de escape para a passeata ao invés disso lançou a cavalaria contra quem estava na frente, fechou as saídas laterais da avenida e intensificou o bombardeio contra a massa, as pessoas que recuavam acuadas encontravam pela frente milhares de outras, vindo em sentido contrário, e uma tragédia poderia ter acontecido se esses baderneiros não tivessem tido seu dia de heróis. O povo só tem a agradecer a esses rapazes corajosos que sustentaram a retaguarda para a retirada das pessoas, impedindo que a soldadesca agredissem cidadãos indefesos.

Ato 3 – Grand finale

Enquanto estou escrevendo esse artigo há pessoas acampadas na porta da casa do governador, outras manifestações marcadas pelo país e não se sabe direito o que vai acontecer, mas é certo que cedo ou tarde o movimento vai refluir, as pessoas tem sua vida, trabalho, escola etc. Ninguém pode passar o tempo inteiro protestando nas ruas. Quando isso acontecer as cartas do jogo político voltam as mãos dos detentores do poder, e qual será sua cartada? Para sobreviver politicamente os governantes só tem uma alternativa, ouvir de fato o clamor das ruas, o problema é que essa gente parece arraigada demais aos privilégios para entender o recado do povo. A presidente fez um pronunciamento muito bonito prometendo transparência nos gastos públicos, mas excluiu do alcance da lei de transparência os gastos com o seu próprio cartão corporativo. Mas eles que se cuidem, pois se não mudarem de alguma forma seu proceder vão ter muitas dificuldades em pedir votos no ano que vem, vai ter deputado e cabo eleitoral fazendo campanha de armadura.

Como último comentário, quem saiu mal mesmo na foto foi a Fifa. Justamente o povo no mundo que mais ama o futebol foi o que colocou a nu a realidade perversa e corrupta que envolve o grande negócio do futebol e apesar do pedido de nosso grande ídolo Pelé para que o povo focasse na seleção esquecendo as manifestações, parece que o que nós não nos esquecemos mesmo é daqueles que dizem que não sabemos votar.

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Eduardo Paparguerius é jornalista e professor de História