Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Venezuela censura divulgação da violência

16.072. Esse é o número de pessoas que perderam suas vidas nas mão de criminosos no ano passado na Venezuela. O número representa uma taxa de 56 homicídios por 100 mil habitantes, a segunda mais alta do mundo, somente superada por Honduras. Esta estatística não agrada ao governo, que durante o mandato do falecido Hugo Chávez optou por tirar o tema da agenda, suprimindo os números oficiais sobre a violência no país e acusando quem fazia referência ao tema com dados extraoficiais de tentar ampliar o problema. Mas, agora, o governo optou por outra estratégia: punir quem obtém informações por outros meios e as publica.

Pelo menos foi isso que aconteceu com o jornal “El Nacional”, que foi condenado no início do mês por um tribunal de crianças e adolescentes a pagar uma multa equivalente a 1% de suas vendas brutas e foi proibido de publicar fotos de “conteúdo violento, onde aparecem armas, agressões físicas, com sangue ou cadáveres nus”, sob o argumento de que tais imagens violariam os direitos das crianças ao desenvolvimento sadio.

A medida foi uma resposta a uma fotografia que mostrava o interior de um necrotério de Caracas, onde apareciam dezenas de corpos de vítimas de crimes ou de acidentes de trânsito, alguns empilhados no chão e desnudos. A imagem, que foi publicada na primeira página do “El Nacional” em agosto de 2010, buscava denunciar o estado de colapso em que se encontrava a medicina forense da capital.

– Em qualquer lugar do mundo, uma imagem assim teria provocado a queda do ministro do Interior ou do chefe da polícia, mas aqui a solução é castigar quem expôs a situação. É decidir matar o mensageiro, não a mensagem – lamenta Mercedes de Freitas, diretora da Transparência Venezuela, filial local da organização internacional que procura combater a corrupção e promover maior acesso a informações públicas.

O caso do “El Nacional” não é o primeiro. Em dezembro, dois jornais regionais do sul do país sofreram sanção similar, também por publicar imagens que continham sangue. Para o ex-promotor Juan Carlos Gutiérrez, a medida mostra que “o governo colocou em marcha uma política sistemática para restringir a liberdade de expressão, cuja primeira etapa foi reter informações ou fechar as assessorias de imprensa de organizações como a polícia judiciária. E, agora, foi radicalizada para punir aqueles que obtém tais informações por canais não oficiais”.

Silêncio não é a solução

Indagado sobre as sequelas que a difusão de determinadas informações pode deixar nas crianças, Gutiérrez reconheceu que a proteção dos menores é um valor mais alto que pode levar a certas limitações da liberdade de expressão. No entanto, ele acredita que, no caso do “El Nacional”, não houve a devida ponderação, porque “a restrição à divulgação de determinados conteúdos podem causar um aumento da violência”.

Ele também pergunta: “se a intenção é proteger as crianças da violência, por que não investir em uma política de combate ao crime coerente que permita reduzir a criminalidade?”. No primeiro semestre deste ano, 412 menores foram vítimas de alguma violência na Venezuela. Para o ex-promotor, um dos fatores que aumentam a criminalidade é exatamente a ausência de denúncias.

Essa é a mesma opinião do catedrático em direitos humanos Fernando Fernández. “É como se o silêncio resolvesse os problemas. Não falar sobre algo não resolve nada, pelo contrário, o debate permite buscar soluções”.

A recusa do governo em fornecer estatísticas sobre a criminalidade não é um evento isolado, mas parte de uma política de Estado que, segundo Mercedes, coloca o país em atraso na região no que tange ao acesso à informação.

– No México, por exemplo, as organizações lutam para que os funcionários públicos entreguem as informações em formato PDF. Aqui, em 90% dos casos não nos respondem ou simplesmente nos negam sem dar explicações.

Nos últimos anos foram apresentados 12 casos aos tribunais, pedindo garantias de que órgãos públicos divulgassem informações. Deles, nenhum foi atendido. Para Mercedes, tal atitude é contraditória para um governo que ofereceu asilo ao ex-analista da CIA Edward Snowden.

– Será que eles sabem que o Snowden é perseguido pelos EUA por ter vazado dados sigilosos? Pena que ele não aceitou vir, porque os venezuelanos precisam de muitos Snowdens para fornecer informações que funcionários públicos e juízes nos negam.

As recentes decisões judiciais contra meios de comunicação na Venezuela voltaram a destacar a difícil situação da imprensa no país. Neste contexto, o Grupo de Diarios América (GDA), do qual O GLOBO participa, realizou uma série especial sobre a situação da imprensa venezuelana, que não difere muito do que acontece em outros países como Argentina, Bolívia e Equador.

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ENTREVISTA / MIGUEL OTERO

‘A autocensura no país é generalizada’

Valentina Lares Martiz

O diretor do jornal ‘El Nacional’ relata a dificuldade para se manter independente na Venezuela.

Há pouco tempo foi concluída a venda da Globovisión e da Cadena Capriles. O governo ampliou seu controle sobre os meios de comunicação?

Miguel Otero – É um processo que faz parte do projeto de hegemonia comunicacional. O governo utilizou nas várias etapas instrumentos distintos. Primeiro, a agressão física que se viu nos primeiros anos de Hugo Chávez, quando foram incendiadas estações de rádio e jornalistas foram agredidos. Então vieram as leis e o uso das instituições: fecharam a RCTV. Depois, a utilização dos veículos públicos para ameaçar e insultar a imprensa independente, com um discurso de agressão permanente contra os comunicadores. E então a compra dos meios de comunicação. Contudo, esse é um tema complicado, pois a Cadena Capriles pode ser considerada chavista, mas no caso da Globovisión não me consta que os donos sejam chavistas.

Você venderia o jornal “El Nacional”?

M.O. – Não. Aliás, o “El Universal” está à venda há muito tempo, então se o governo estivesse comprando os meios de comunicação poderia começar por esse.

Mas o governo garante que a imprensa é livre para dizer o que quer. Além do seu jornal, há realmente um assédio contra a imprensa a nível nacional?

M.O. – Esta não é uma ditadura comum, com um pelotão de soldados chegando, violando a Constituição e te levando preso. Eles não dizem sobre a autocensura que geram, que é gigantesca. Por exemplo, qualquer jornal pequeno diria “se fazem isso contra o ‘El Nacional’, o que farão com a gente”. São medidas para servir como exemplo. Nos meios audiovisuais a autocensura é quase total, e nos impressos se acentua nas províncias. Se não é um veículo robusto, capaz de suportar a pressão, sucumbe. A autocensura no país é generalizada.

Além da autocensura, é evidente a retirada da publicidade oficial…

M.O. – á oito anos que o governo não publica nada nas nossas páginas. Antes do Chávez, tínhamos em média 18% de faturamento com publicidade oficial. Com Chávez o percentual caiu a zero.

Pressões com o papel?

M.O. – Não. Isso não aconteceu.

Só uma mudança de governo poderia mudar a situação?

M.O. – Sim, claro. A cada dia piora. Só o regresso a uma democracia normal acabaria com esses problemas.