Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De quem é a razão?

Os jornais têm dado destaque, nas últimas semanas, ao duelo de opiniões em torno do problema das biografias não autorizadas. De um lado, celebridades argumentam que a autorização prévia do biografado, ou de seus herdeiros, é imprescindível para evitar violações à sua privacidade e à sua reputação, que podem advir de livros sensacionalistas, que se disponham a veicular informações falsas ou expor sua intimidade. De outro lado, biógrafos e editoras alegam que exigir tal autorização como condição para a publicação de biografias significa aniquilar esse importante gênero literário, de valor histórico e informativo. Investem, por isso, contra o “direito brasileiro”, que, segundo tem repetido a maior parte da imprensa, “impede atualmente a publicação de biografias sem autorização prévia do biografado”. Daí derivaria uma urgente necessidade de aprovar o Projeto de Lei nº 393/2011, que dispensa a autorização do biografado para a publicação de biografias no Brasil.

Em que pese o esforço dos defensores desse projeto de lei, ele não resolverá, de modo algum, o problema das biografias não autorizadas no Brasil. O projeto de lei se lima acrescentar um parágrafo ao Código Civil que terá a seguinte redação: “A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade”. Em outras palavras, a simples ausência de autorização do biografado não será suficiente para impedir a publicação de uma biografia. Ocorre que o direito brasileiro já não proíbe a publicação de biografias (ou de quaisquer outras obras literárias, históricas ou jornalísticas) pela simples falta de autorização da pessoa retratada ou mencionada no texto.

É preciso entender bem o que diz, e como é interpretada, a atual legislação brasileira nessa matéria. A Constituição de 1988 protege como direitos fundamentais a honra, a imagem e a privacidade de todas as pessoas (art. 5º, inciso X) – sem nenhuma ressalva ou atenuação, registre-se, em relação às chamadas “pessoas públicas”. Protege igualmente a livre expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação – incluindo a atividade dos biógrafos e editoras –, vedando a censura (art. 5º, IX). Os dois lados da disputa, portanto, encontram amparo no texto constitucional. Significa dizer que, à luz da Constituição, nenhuma solução absoluta (carta branca para biógrafos ou poder de proibição por biografados) pode ser adotada, em favor nem de um lado nem de outro.

A polêmica jurídica surge porque, ao tratar do tema no seu artigo 20, o Código Civil de 2002 afirma: “Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais”.

Valores culturais

Em resumo, para o Código Civil, a autorização da pessoa retratada afasta, como era de esperar, qualquer possibilidade de reclamação em juízo. Mas o Código Civil não proíbe toda e qualquer publicação sem autorização. Para que a publicação não autorizada seja proibida ela precisaria, segundo a literalidade do artigo 20, atingir “a honra, a boa fama ou a respeitabilidade” ou se destinar “a fins comerciais”.

Interpretando esse artigo, os tribunais brasileiros já vêm concluindo, há muito tempo, que a simples finalidade comercial da publicação não justifica a proibição da publicação se ela estiver amparada em um fim constitucional de informar o público ou de exprimir a liberdade artística ou intelectual. É por conta desse entendimento jurisprudencial que os jornais (que têm fins comerciais) não precisam solicitar autorização de toda e qualquer pessoa que vem mencionada ou retratada em uma reportagem. Para que a publicação seja proibida – ou para que gere indenização se já tiver sido veiculada – os tribunais brasileiros exigem a demonstração de que restou lesada a honra ou a privacidade do retratado. O mesmo vale para as biografias.

Quando o Poder Judiciário brasileiro proíbe a circulação de uma biografia não autorizada, não o faz ao simples argumento de que aquela biografia não foi autorizada pelo biografado. O principal argumento dessas decisões judiciais é que o biografado – ou seus familiares no caso das biografias póstumas – foram atingidos em sua honra ou em sua intimidade. O que significa ser atingido em sua honra ou em sua intimidade? É isso que se tem discutido detidamente nos países que têm conduzido discussões sérias e não superficiais sobre o problema das biografias não autorizadas, discussão que transcende o mundo editorial para alcançar documentários cinematográficos, programas televisivos e a própria liberdade de imprensa.

Numerosos parâmetros têm sido propostos mundo afora para essa delicada avaliação, seja por meio de leis, de precedentes judiciais, de recomendações de órgãos públicos de proteção da privacidade ou mesmo de diretivas emitidas por entidades de autorregulamentação, em cuja composição se combinam representantes do mercado editorial, da indústria cinematográfica, dos sindicatos de atores, dos sindicatos de escritores e de outros entes interessados, além da própria sociedade civil.

Em alguns países, por exemplo, não se reconhece violação à privacidade ou à honra na menção a dados que já constam de registros públicos (processos judiciais, administrativos etc.), ou já foram divulgados pelo próprio biografado em ocasiões públicas pretéritas, ou, ainda, foram legitimamente obtidas em entrevistas com pessoas identificadas. De outro lado, a transcrição em biografias não autorizadas de trechos de cartas particulares tem sido, em muitos países, considerada violação à privacidade, por infração ao sigilo de correspondência. O mesmo se tem entendido em relação ao uso de dados constantes de prontuários médicos ou de procedimentos sigilosos, ou ainda de informações relativas à intimidade sexual do biografado.

Esses parâmetros não reduzem a avaliação das biografias não autorizadas a uma fórmula matemática, mas ajudam a trazer segurança aos dois lados em disputa. O Projeto de Lei nº 393/2011, que se tem debatido com opiniões inflamadas de um lado e de outro, não resolverá o problema das biografias não autorizadas no Brasil. A proposta erra o alvo, já que, mesmo se restar aprovada no Congresso, os tribunais continuarão retirando biografias não autorizadas de circulação ao argumento de que houve lesão à honra e à privacidade do biografado, avaliação que continuará a ser puramente subjetiva e guiada não raro pelos valores individuais do magistrado.

O que deveria estar ganhando destaque nos jornais não é a “guerra” de opiniões entre celebridades – que já ameaça reduzir um tema tão importante a chamadas sensacionalistas, que consistem justamente no grande temor dos biografados e também dos biógrafos –, mas sim os critérios objetivos para identificar lesão à honra ou à privacidade das pessoas retratadas em biografias. Urge redirecionar o debate para identificar, a partir dos valores jurídicos e culturais da sociedade brasileira, que parâmetros específicos devem ser seguidos nessa disputa, em que não há espaço para soluções absolutas, já que, a rigor, os dois lados têm razão.

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Anderson Schreiber é professor de direito civil da Faculdade de Direito da UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro)