Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Imprensa e barbárie

Semana passada o Brasil viu a barbárie de perto, com todas as suas feições e sem disfarces. A imagem de um adolescente negro que foi espancado e preso a um poste no Rio de Janeiro, como uma versão contemporânea e fora de contexto do escravo no tronco, é provavelmente uma das coisas mais violentas e indicativas da degradação social já vistas nesse país. E a reação da chamada opinião pública – que não é a soma da opinião do público, mas a opinião de quem aparece e promove influência – é um importante sintoma dos tempos em que vivemos e do papel que a imprensa tem desempenhado na naturalização da barbárie.

No auge das manifestações populares que tomaram o país no ano passado, bastava alguém “curtir” a página dos Black Bloc no Facebook para ser monitorado pela polícia como apoiador de uma violência inaceitável, contra prédios, bancos e lixeiras. Hoje – e na verdade, quase todos os dias, mas o requinte de crueldade desse episódio justifica o destaque – figuras degradadas que se tornaram personagens midiáticos ocupam o espaço de uma concessão pública, que é um canal de televisão, para literalmente incitar a violência contra a população pobre negra e miserável deste país. Para Raquel Sheherazade, que tem tido seus 15 minutos de fama, por exemplo, a atitude dos bandidos de classe média que acorrentaram o menino no poste é “compreensível”, deve ser entendida como uma forma de “legítima defesa”, já que, segundo alguns testemunhos, o adolescente seria um ladrão. Curiosamente, esse apoio explícito a grupos de bandidos fascistas e à violência que eles cometem não desperta o interesse da polícia e tampouco chama atenção do Executivo ou do Legislativo, que deveriam fiscalizar as concessões públicas de TV. Essa é a nossa liberdade de imprensa.

Mas o problema maior não parece estar em programas como o de Sheherazade e outros de sua espécie, que, pelo caráter francamente sensacionalista e vulgar que assumem, não prometem muito mais do que um diário show de horrores, que alimenta um público já em busca do grotesco. Por isso, é importante que não nos enganemos: os ilustrados que leram O Globo ou assistiram aos telejornais da Globo sobre esse assunto receberam rigorosamente o mesmo recado, a mesma mensagem de legitimação da violência branca e elitizada sobre a população negra marginalizada, só que sob uma capa de notícia, objetivamente apurada e redigida, recheada de um discurso ideológico travestido de informação. E isso é muito mais grave, porque muito mais eficaz. Esse episódio, aliás, é muito representativo do papel ideológico que o modelo atual de jornalismo, com seu falso equilíbrio imparcial de versões e lados, tem desempenhado na manutenção de uma ordem excludente, opressora e profundamente violenta.

A barbárie como instinto natural

Nas duas primeiras matérias veiculadas no RJTV sobre o assunto, a notícia – o inédito e improvável, como ela é bem caracterizada nos manuais de redação da grande imprensa – era a agressão contra o menino. Faça-se justiça de que uma das matérias destaca dois depoimentos que condenam o ato e a outra enfoca principalmente a investigação sobre os culpados. Mas aí vem a edição da quarta-feira (5/2) em que o crime bárbaro, o improvável que a imprensa não pode recusar, é reduzido a um gancho para a pauta que realmente importa: a violência que assombra os moradores do Flamengo, bairro de classe média e alta da zona sul do Rio de Janeiro. A tal violência, na qual a vítima da notícia original vira o criminoso, tem mais preconceito do que concretude: um dos entrevistados “denuncia” que há sempre pessoas dormindo por ali e que isso causa medo porque não se sabe se é “bandido” ou só “vagabundo”. Esse encadeamento de pautas, que além de facilitar a continuidade da notícia, exerce uma importante função na conformação da opinião pública sobre os temas de relevância social, não é aleatório; ao contrário, garante coerência aos fragmentos de notícia.

E a edição impressa do Globo do dia 4 de fevereiro, que traz a matéria sobre o episódio, é bastante representativa do discurso que resulta desse processo. O título da matéria era “A violência de quem faz justiça com as próprias mãos”, acompanhado de um subtítulo segundo o qual “grupo surra e prende em poste um adolescente que teria praticado assaltos no Flamengo”. Considerando-se uma distração o uso da palavra “justiça”, que indica que uma atitude como essa pode ser justa, esses elementos até pareciam anunciar uma matéria de denúncia. Para completar essa primeira boa impressão, imprescindível para o falso equilíbrio que o jornal sempre argumenta em defesa própria, a legenda da foto chamava atenção para a “cena aterradora” do menino “preso pelo pescoço a um poste”. Mas o que vem depois é uma sequência de depoimentos artificialmente buscados e editorializados para justificar o injustificável.

A primeira parte do texto, que sequer ocupa uma coluna de uma matéria de página inteira, trata de descrever o ocorrido. Em seguida, com o sugestivo entretítulo “Levados pelo instinto”, lança-se mão de um discurso pseudocientífico vocalizado por um desses intelectuais midiáticos de plantão. Primeiro, os jornalistas caracterizam sozinhos, sem qualquer fonte ou respaldo de outra ordem, que esse crime bárbaro foi um “ato de vingança”. A conclusão parece se referir ao fato de se suspeitar que o adolescente posto no tronco seja um ladrão. Isso abre o terreno para que uma doutora em psicanálise da USP explique, em detalhes, que atitudes como a dos “justiceiros” são reações instintivas que vêm do inconsciente e estão presentes em todos os seres humanos, inclusive nos bebês. Ela deixa claro que “nada justifica essas atitudes”. Que bom!, respira o leitor, um pouco aliviado. Mas aí, como uma mãe disciplinadora mas generosa com as desobediências do filho, ela fecha com chave de ouro: “Somos seres humanos. Sei que é difícil, mas as pessoas precisam tentar controlar os instintos, puxar a razão ao máximo, reforçar o que têm de racional”, diz. Não por acaso, é a fala dessa senhora que ganha destaque no “olho” da matéria.

Reacionarismo violento

Se fossem menos medíocres e mal intencionados, e dessem apenas um passo atrás nessa tentativa de ampliar a análise para além do mero fato, os jornalistas poderiam ter perguntado a algum dos seus especialistas também quais são as razões para que um menino dessa idade esteja na rua roubando em vez de estar na praia, no shopping ou na academia. Talvez eles se dessem conta de que outros sentimentos e sensações também podem ser instintivos (que tal a fome?) e que “as autoridades” que “não estão dando conta de garantir a segurança” da população de classe média e alta da zona sul do Rio, como destaca a psicanalista da vez, também não estão dando conta de garantir muitos outros direitos e necessidades básicas de uma população crescente de miseráveis absolutamente abandonados pelo Estado. Se reclamássemos um mínimo de totalidade na visão jornalística, exigindo uma coerência maior do que a que um jornal de má qualidade como o Globo pode ter, poderíamos voltar alguns meses atrás e perguntar se esse instinto de vingança, marcado pelo “ódio” e pelo “rancor” não explicaria tão tolerantemente também as ações violentas que ocorreram durante as manifestações Brasil a fora. Independentemente da avaliação política que se pode fazer sobre a prática dos Black Blocs e outras táticas presentes nessas manifestações, não é possível naturalizar que um mesmo jornal faça uma verdadeira campanha para prender e difamar como vândalo criminoso quem joga pedra em prédios ou coloca foto em lixeiras e depois busque justificativa científica – o que, sejamos claros, é quase a absolvição, pelo menos moral – para quem espanca e humilha um adolescente de forma brutal.

Como se não bastasse, o parágrafo seguinte da matéria reproduz posts de internautas que apoiaram a ação dos criminosos nas redes sociais, sempre com o discurso de que bandido bom é bandido morto. Qualquer jornalista sabe que os acontecimentos que viram notícia indicam um caminho mínimo obrigatório de apuração. O resto, companheiros, é escolha editorial. Os jornalistas optaram por dar espaço a uma psicanálise de botequim e decidiram, editorialmente, dar destaque às falas reacionárias de um senso comum difuso, sem nome e sem rosto, que se manifesta nas redes sociais. Quantas matérias vão buscar o que se está dizendo nas redes sociais sobre o tema tratado? Como se ‘mede’ a temperatura de um ambiente incontável e heterogêneo como as redes sociais para se chegar a reconhecer uma maioria ou uma tendência qualquer?

Como disse o comunista italiano Antonio Gramsci: “O senso comum é um agregado caótico de concepções disparatadas e nele se pode encontrar tudo o que se queira”. Misturando-se referências “científicas”, relato de experiências pessoais e meras opiniões, que pretensamente dariam um retrato da percepção social, esse jornalismo produz uma sopa de elementos e informações desencontradas e incoerentes que podem apontar em qualquer direção. No caso de um jornal como O Globo, a direção apontada tem ido além do conservadorismo – que, segundo o próprio Gramsci, caracterizaria o senso comum –, chegando às raias de um reacionarismo violento, que ignora inclusive conquistas civilizatórias que pareciam consolidadas.

O leitor do Globo

O resto da matéria trata do que realmente importa: a violência que assombra os moradores de classe média e alta do Flamengo, bairro da zona sul do Rio. Qualquer semelhança com a edição do RJTV veiculada no dia seguinte não é mera coincidência. Todo o espaço é ocupado por números e depoimentos sobre os assaltos no bairro. Um integrante da associação de moradores, “embora abomine a agressão ao adolescente”, explica o ato como uma “consequência da precariedade do policiamento da região”. Uma vereadora reclama da falta de segurança, enumera as cobranças feitas às autoridades, conta uma experiência pessoal de quase assalto e condena a atitude dos tais “justiceiros”, defendendo que “os menores que circulam pela região” sejam “acolhidos e tratados”. Depois de opiniões e experiências, volta o discurso especializado, dessa vez de um professor e doutor em sociologia que “manifestou preocupação” com o ocorrido e dá ares de ciência à nova explicação que a matéria (leia-se: os jornalistas) editorialmente criou: além de ato instintivo, o crime bárbaro foi resultado da descrença nas autoridades, omissas em relação à segurança pública. Diz ele: “O episódio indica que há falta de credibilidade na polícia de alguns setores da população”. Num claro elogio às UPPs – menina dos olhos das Organizações Globo no Rio de Janeiro –, ele dá uma verdadeira aula de sociologia psicologizada feita sob medida para o tom vulgar da matéria: “Melhora-se muito a segurança numa área, piora-se um pouco em outras. O Rio está ficando uma cidade objetivamente mais segura. Mas cresce uma subjetividade de medo. Multiplicada, a desconfiança é um caldeirão de cultivo para movimentos de ‘vigilantismo’.”

No parágrafo seguinte, um inspetor de polícia é chamado a condenar “a agressão”. Mas, como em todos os momentos em que essa ‘condenação’ aparece na matéria, ela vem seguida de conjunções como “mas, “embora”, “apesar de”, “no entanto”… Nesse caso, ele, “no entanto”, “avalia a atitude como resultado da fragilidade da lei”. Diz o entrevistado escolhido pelos jornalistas para quase finalizar a matéria: “Menores cometem dez, 15 roubos, são detidos e soltos. A falta de resposta do Estado acaba sendo muito fraca. E o cidadão, às vezes de forma errada, acaba perdendo as estribeiras.”

Vejam como, no espaço de apenas uma página, cidadãos virou um eufemismo para criminosos, um crime bárbaro foi transformado em “vigilantismo” – seja lá o que isso for –, e uma violência que deveria parar o país para que se pensasse sobre que sociedade é essa em que vivemos ganha chaves de explicação (e desculpa) diferentes, com justificativas para todos os gostos: instinto humano natural, vingança, perda de paciência. Espancar e acorrentar um adolescente como numa cena de terror do século 19 é reduzido a “perder as estribeiras”. Depois dessa aula de psicologia e sociologia para reacionários medíocres, a matéria finge desempenhar sua função investigativa, terminando com a denúncia de que haveria outros grupos de jovens de classe média agredindo mendigos no bairro – um parágrafo que deve ter garantido o sono tranquilo dos jornalistas, empenhados no importante papel social que a sua profissão lhes garante.

Felizmente, alguma coisa aconteceu de um dia para o outro. Talvez tenha sido resultado da reação de outra parte da tal opinião pública, que se indignou com essa violência; talvez tenha sido a exposição do jornal a partir da comparação evidente com a abordagem dos outros jornais, como Folha de S.Paulo, Estado de S.Paulo e, principalmente, o Extra, que deu um show colocando o sensacionalismo popular a serviço do interesse público. Mas o fato é que a edição do dia seguinte recuou um pouco – embora não totalmente.

Nada que sugira absolvição, no entanto. O Globo, pior jornal da grande imprensa escrita desse país, tanto pela editorialização conservadora sem disfarces – quase uma Veja mal feita – quanto pela má qualidade técnica, é representativo da doença social que a grande mídia tem representado neste país. Em nome da humanidade que nos resta, já passou da hora de criarmos uma imprensa verdadeiramente nova, verdadeiramente nossa. Pois essa é parte constitutiva da barbárie que nos invade, e precisa ser superado junto com ela.

******

Cátia Guimarães é jornalista e doutoranda em Serviço Social