Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Jovem espancado e a emissora: quem é o infrator?

Nos últimos dias, muito se tem comentado a respeito do grupo de pessoas no Rio de Janeiro que agrediu e prendeu, em um poste, um jovem negro, supostamente assaltante.

Dentre tantos comentários, destacou-se o veiculado no telejornal SBT Brasil por parte da jornalista Rachel Sheherazade. Com efeito, no dia 4 de fevereiro passado, a mencionada profissional sustentou ser compreensível a atitude dos vingadores contra o rapaz, pois, segundo seu entendimento, o Brasil atravessa um grave estado de violência, de modo a não restar outra alternativa àqueles que chamou de “cidadãos de bem”. Por fim, procurou a jornalista embasar juridicamente sua fala, dizendo que o contra-ataque às pessoas que ela considera bandidas consiste em verdadeira “legítima defesa coletiva”.

Pois bem. Vários textos já foram escritos por especialistas em Comunicação sobre esse inusitado comentário. Pretende-se aqui prestar uma breve colaboração ao tema, acrescentando observações jurídicas à discussão.

SBT, uma concessão pública

O Sistema Brasileiro de Televisão (SBT) é uma empresa privada cuja principal atividade, aos olhos dos telespectadores, centra-se na transmissão de programação televisiva. Eis uma circunstância que, em princípio, proporciona a tal grupo empresarial ampla autonomia de ação, conforme o direito fundamental à liberdade de expressão e ao regime de livre iniciativa, nos termos, respectivamente, do artigo 5º, IV e IX e do artigo 170, todos da Constituição Federal (CF).

Há, porém, uma importante circunstância a se considerar, possivelmente esquecida pelo SBT.

A despeito de o caráter privado da atividade, a empresa SBT, como emissora de televisão, veicula sua programação por intermédio doespectro de radiofrequência.Cuida-se de bem delimitada possibilidade de uso, tendo sua disponibilidade restrita somente aos beneficiários de concessão pública.

O SBT é, portanto, uma concessionária de serviço público. Realiza sua atividade por intermédio de vínculo regrado por normas de direito administrativo. Em tais termos, o SBT recebe do Estado a outorga do exercíciodo serviço de radiodifusão de sons e imagens; em contraprestação, tem direito à remuneração por anúncios publicitários.

Importante salientar: a outorga é do exercício da atividade; o titular do serviço continua a ser o Estado.

Deveres jurídicos

Ao realizar um serviço cujo dono é o Estado (e, portanto, o povo, de quem emana o poder – artigo 1º, § único da CF), tem o SBT o dever de exercê-lo conforme o interesse público. Em termos constitucionais, isso significa preferência à programação: de fins educativos, artísticos, culturais e informativos; que promova a cultura do país e das diversas regiões, com estímulo à produção independente; que regionalize a produção cultural, artística e jornalística e que respeite os valores éticos e morais da pessoa e da família (artigo 221, da CF).

Ao realizar um serviço de titularidade estatal, o SBT ainda deve ater-se aos fundamentos do Estado concedente, previstos no artigo 1o da CF, consistentes na soberania, na cidadania, na dignidade da pessoa humana, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como no pluralismo político. Da mesma forma, deve observar os objetivos do mesmo Estado, estipulados no artigo 3º da CF, quais sejam a construção de uma sociedade livre, justa e solidária; o desenvolvimento nacional; a erradicação da pobreza e da marginalização bem como a redução das desigualdades; e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e discriminação.

O descumprimento dos deveres

Conhecidas as noções acima colocadas, não são necessárias muitas palavras para demonstrar a infelicidade, do ponto de vista jurídico, da fala veiculada pela jornalista do SBT.

Vive-se em um país onde subsiste um dos maiores (senão o maior) número de linchamentos em todo mundo, contra quem é sumariamente julgado criminoso;onde milhares de pessoas morrem em confrontos com policiais, a ponto de superar o número de pessoas que perdem suas vidas no sofrimento de pena capital em Estados que admitem tal punição; e onde estão encarceradas centenas de milhares de pessoas sem condenação criminal definitiva, em sua imensa maioria, pobres, negras e moradoras de regiões carentes de serviços públicos básicos. Vive-se, portanto, em um país que penaliza pessoas sem a observância do ditame do devido processo legal, banaliza a violência e criminaliza a pobreza.

Ora, a afirmar, como fez o SBT por meio da citada jornalista, ser compreensível e configurar legítima defesa coletiva o ato de amarrar nu, em um poste, um pobre negro que teria praticado crimes é incentivar a justiça privada, a banalização da violência e a criminalização de pessoas carentes. Tudo a configurar violação aos deveres constitucional de veicular programação educativa apta a respeitar os valores éticos e morais (artigo 221, da CF), a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF) e o fim de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, da CF).

Quem é o infrator?

Há ainda muito a se falar a respeito do caso do SBT Brasil, até porque, diante da forma pela qual a televisão brasileira tem noticiado a violência urbana e rural que atinge o país, possivelmente não será o último. Além do mais, sequer se tem conhecimento, com segurança, se o jovem negro efetivamente cometeu alguma infração penal, assim como não se sabe quem praticou os atos de agressão contra ele.

A despeito dessas incertezas, há um fato que já se encontra coberto pelo manto da certeza: uma das principais emissoras de televisão do país infringiu seus deveres de concessionária de serviço público. Isso, sim, deveria ser divulgado aos cidadãos de bem, seja qual for o significado que se dê à expressão.

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André Augusto Salvador Bezerra é juiz de Direito em São Paulo, membro da Associação Juízes para a Democracia e doutorando na USP