Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não foi a fé, foi o terror que matou Wolinski

 

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“Não se pode fazer a crítica das armas com as armas da crítica.” (Karl Marx)

Um atentado terrorista na sede do jornal Charlie Hebdo matou 12 pessoas e feriu 10. Entre os mortos, além de uma psicanalista, um economista, um revisor e dois policiais, os cartunistas Charb, Cabu, Wolinski, Tignous e Honoré. O atentado foi em represália às frequentes charges satirizando o profeta Mohamed e a religião islâmica, na linha extremamente mordaz que caracteriza o semanário.

Os cartunistas do Charlie, assim como aquele dinamarquês que também fez desenho semelhante há alguns anos, tinham uma estranha crença: a de que desenhos satíricos não desencadeiam efeitos concretos no mundo real – como se as críticas desenhadas circulassem apenas no plano das idéias ou do discurso.

Há anos, no programa “Saca-Rolha”, entrevistado por Marcelo Tas, Mariana Weickert e Lobão, fui confrontado com a questão que opõe binariamente dois lados irredutíveis: o humor deve ter limites? a religião deve ser respeitada? Respondi que uma charge ofensiva aos radicais islâmicos não seria respondida com outra charge, mas da forma terrorista: explodindo uma estação do metrô e matando pessoas a esmo. Vale a pena praticar o humor sem limites e lavar as mãos, se o atingido revidar de forma violenta e indiscriminada? Cabe ao artista, e ao jornalista, avaliar os efeitos possíveis da publicação no mundo real. Errei o foco da vingança, que foi mais preciso.

“A tolerância é uma virtude burguesa”, dizia um amigo publicitário, ex-militante comunista. Enquanto o ofendido pertencer ao mesmo mundo das liberdades democráticas, típico da época histórica em que a classe dominante é a econômica, a pior represália que pode receber um cartum é um processo judicial e uma multa. O Charlie Hebdo vive num mundo iluminista, burguês e racionalista, ainda que animado por uma iconoclastia revolucionária. Não teria sido possível fazer charge com Robespierre no tempo do Terror, mas o ambiente legal e cultural disto que chamam “civilização do Ocidente” permite críticas extremamente violentas à própria estrutura da civilização ocidental, sem que ela se abale muito com isso e até as transforme em negócio rentável e expressão cultural absolutamente aceita.

Tarefa demolidora

Como lembra Walter Benjamin: ”o aparelho burguês de produção e publicação é capaz de assimilar uma quantidade surpreendente de temas revolucionários e, inclusive, de propagá-los, sem pôr em risco sua própria permanência e a classe que o controla” (citado por Heloísa Buarque de Holanda, Impressões de Viagem, Editora Brasiliense, pag. 31).

Graças à esta “tolerância burguesa”, ativistas do grupo Femen puderam exercer a liberdade de pensamento comemorando a renúncia de Bento XVI de topless na Catedral de Notre Dame de Paris; as militantes foram processadas, mas absolvidas.

Porém, quando o atingido é o radicalismo islâmico, abre-se um fosso civilizacional entre o chargista e seu alvo. Não existe, envolvendo ambos, ambiente legal e cultural que estabeleça as normas polidas que obrigam a responder uma ofensa midiática com outra ofensa midiática. Os cartunistas do Charlie não possuíam poder algum para estabelecer limites à resposta dos ofendidos, moderar sua intensidade, foco e natureza. Não apenas a cultura e a religião são outras; além disso, entre os ofendidos – todos os muçulmanos – haviam terroristas.

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O terrorismo do radicalismo islâmico não é, como costuma ser interpretado no Ocidente, a expressão exagerada da religião islâmica, mas uma criação do século XX, do pensador Said Kutb, uma das principais influências do Al-Qaeda.

Said Kutb estudou em universidades nos Estados Unidos por dois anos, o que lhe deu subsídios para criar uma obra deplorando a decadência ocidental nos aspectos que lhe pareceram mais repulsivos, como a violência do boxe, o mau gosto nas artes, o apelo sexual no jazz etc. Para tanto, colaboraram intelectuais críticos do Ocidente da esquerda e da direita, como Marx, Nietzsche, Heidegger e o eugenista Alexis Carrel, defensor da pureza racial (https://listenandobey.wordpress.com/category/refutations/sayyid-qutb/).

Muitos muçulmanos não hesitariam em qualificar a doutrina da Fraternidade Muçulmana como herética, um desvio do islamismo. Porém, é a forma que se tornou politicamente dominante, tanto nos governos teocráticos quanto nos grupos terroristas. Por ter como alvo preferencial os Estados Unidos, é a face do Islã que conta com mais admiradores nos meios progressistas ocidentais (o que é bastante bizarro e contraditório, considerando suas leis repressivas contra as mulheres e homossexuais).

O Terrorismo, ensina Lênin, é a “propaganda armada”. Não visa derrotar o inimigo militarmente, mas provocar o caos, intimidar a população, manter as forças do inimigo dispersas e ocupadas e utilizar a ação como manifesto ideológico, ou para desviar a atenção do público em determinado momento.

Assim, é ilegítimo atribuir tanto a motivação quanto os meios de ação ao “fundamentalismo religioso”. Explodir, metralhar e cortar cabeças não são ações de proselitismo evangelizador, mas a forma de comunicação essencial dos terroristas.

Por isso, interpretar, generalizando, o ataque de cunho nitidamente terrorista, praticado por radicais islâmicos, de modo a abranger as religiões ocidentais devido à irracionalidade que aparenta unir os dois fenômenos, é a utilização desonesta e maniqueísta que busca a todo custo tirar proveito político de uma tragédia, que se inicia com a ingenuidade de artistas que acreditavam estar protegidos pela civilização ocidental (que lhes serve tanto de alvo como de abrigo) para exercitarem a crítica franco-atiradora e anárquica do cartum – e debitar uma chacina de cunho ideológico antiocidental, na conta das religiões ocidentais há muito pacificadas e até, em grande parte, parceiras na tarefa demolidora de abalar os pilares do Ocidente.

Inimigo comum

A inibição de criticar especificamente os radicais islâmicos se deve ao ódio aos Estados Unidos, considerado a quinta-essência da Civilização Ocidental e da Nova Ordem Mundial, que une progressistas e radicais islâmicos. Isto leva a nossa mídia e intelectualidade a procurar bodes expiatórios menos vingativos, do tipo que oferece a outra face e se deixa sacrificar de forma mais cordata.

Quando o cartunista Glauco e seu filho Raoni foram estupidamente assassinados por um frequentador da seita do Santo Daime, ninguém acusou o “fundamentalismo religioso” de ser o mandante do crime. Foi obra de um louco ou de alguém que se fez de louco (para depois racionalmente fugir em direção à fronteira, como faria qualquer assassino são). De fato, o assassino foi preso novamente ano passado, envolvido em roubo de carro e latrocínio. Dizer que Glauco foi morto pelo “fundamentalismo religioso” seria mentira ou estupidez.

Da mesma forma, quem matou Charb, Cabu, Wolinski, Tignous, Honoré e as outras sete pessoas não foi “a fé”, mas um enxerto ideológico na fé – no qual tomou parte a tradição antiocidental que o próprio Ocidente ajudou a criar. E não foi uma idéia, foram pessoas e armas, que decidiram materializar sua “crítica radical” não com lápis, mas da forma como se viu. Execrável e brutal.

Os radicais islâmicos aprenderam a lição que o “Ocidente anti-Ocidental” lhes ensinou; esperar que eles tivessem respondido apenas com as “armas da crítica” é esquecer que a Fraternidade Islâmica não inclui a ”Fraternité” gaulesa, apesar do radicalismo que os aproxima em torno do inimigo comum:

“As armas da crítica não podem, de fato, substituir a crítica das armas; a força material tem de ser deposta por força material, mas a teoria também se converte em força material uma vez que se apossa dos homens. A teoria é capaz de prender os homens desde que demonstre sua verdade face ao homem, desde que se torne radical. Ser radical é atacar o problema em suas raízes. Para o homem, porém, a raiz é o próprio homem. A prova evidente do radicalismo da teoria alemã e, portanto, de sua energia prática, consiste em saber partir decididamente da superação positiva da religião.” (Karl Marx, “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”).

"Eu só penso..." "Naquilo!"