Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cartas abertas e falsificações históricas

A cada avanço obtido no processo de aprovação do projeto de cotas – há 10 anos em tramitação no Congresso Nacional –, sempre ecoam as vozes do inconformismo. Se o assunto é de interesse de toda a sociedade brasileira, por que ele só pode ser discutido nas páginas dos grandes jornais por meia dúzia de acadêmicos e diretores de jornalismo? Por que a mídia recorre sempre às mesmas fontes? O pensamento de 180 milhões de pessoas encontra consenso naqueles que monopolizam a informação? Quem os legitimou, senão os 10% mais ricos do país, consumidores do ‘supra-sumo’ da produção jornalística e detentores de privilégios seculares?

Aqui, não está sendo sugerido que os críticos deixem de exercer suas funções laborativas de opinar e especular. O que se questiona é a falta de ‘conhecimento de causa’ do grupo que se julga ser o único capacitado para refletir o assunto. Para justificar a ausência de negros nas universidades, elegeram um bode expiatório: o ensino básico. Diz-se, incessantemente, que basta melhorá-lo e o problema estará resolvido. Querem, com isto, transformar a escola num pré-vestibular de 12 anos de duração. A escola não pode estar focada apenas no vestibular. Ela deve ser um espaço de exercício pleno da cidadania. Essa idéia ainda ignora dois pontos essenciais. O primeiro é existencial e o segundo é político-econômico.

Contradição dos críticos

Suponhamos que os governantes se disponham a dar à educação a atenção merecida e os investimentos sejam capazes de melhorar a qualidade do ensino básico. A medida daria aos pobres (negros e brancos) meios de enfrentar o vestibular em condições similares às dos não-pobres. Plausível! Resta, então, saber o que fazer com os jovens que já concluíram o ensino médio. Vamos transformá-los numa ‘geração perdida’ ou fazê-los voltar para a pré-escola? As cotas buscam atender a esse grupo. Por isso, como toda ação afirmativa, possuem um caráter provisório. Verdade mantida sob sigilo nos editoriais e cartas abertas dirigidas aos congressistas e dirigentes das diversas instâncias de poder.

O segundo desafio em torno da reforma educacional do ensino básico é conseqüência dos desdobramentos da Nova Ordem Mundial. A política neoliberal, imposta ao mundo subdesenvolvido como a única alternativa possível, proíbe os governos de investirem em políticas sociais. A educação, ao lado da saúde e outros direitos constitucionais, se tornaram menos importantes que os compromissos com os credores internacionais. É ilusório acreditar que os gestores do conservadorismo monetário estejam dispostos a inverter essa lógica, sobretudo em tempos de crise econômica.

Do ponto de vista da genética, as raças humanas não existem. Para que isso ocorresse, as possibilidades de reprodução entre um indivíduo de pele negra e outro de pele branca, por exemplo, deveriam ser nulas, como ocorre num suposto cruzamento entre um gato e uma ratazana. Há uma contradição nas declarações dos críticos vocacionados, dos críticos convictos e dos críticos contratados para serem críticos. Primeiro, dizem que as raças humanas não existem e nunca existiram. Em seguida, dizem que elas não existem mais porque passamos por um processo de miscigenação. Ora, se não existem mais, quer dizer que existiram um dia? Por acaso, não foi nesse contexto que surgiu o mulato, resultado do cruzamento de uma raça ‘nobre’ com outra sem pedigree?

A ‘antropologia não-acadêmica’

Outro grupo que se revestiu de autoridade para tratar a questão racial é o dos intelectuais. Alguns desses zeladores do conhecimento científico acabam tendo surtos de leviandade. Quem se dispuser a analisar um problema sem ter a curiosidade de conhecer suas diversas facetas e a conjuntura que deu origem a ele, estará produzindo ideologia, e não ciência. Existem muitos pesquisadores com esse perfil nas universidades. Não produzem nada. Apenas reproduzem, com os mesmos vícios e falsificações históricas. Quando da abolição oficial da escravatura, há 120 anos, os negros foram impedidos de se tornarem uma classe trabalhadora remunerada, sendo substituídos por imigrantes europeus e, mais tarde, pelos asiáticos. A marginalização dos negros, ainda em vigência, foi impulsionada por uma política pública do Estado de incentivo à imigração.

Essa ‘academia viciada’ nega a existência de diferenças raciais (as mesmas apontadas por praticamente todos os indicadores sociais de agências oficiais, como o Ipea e o IBGE). Tendo a miscigenação como argumento, alega que a mobilidade social é uma questão de esforço pessoal e que não existem entraves impostos pelo racismo. No entanto, um simples depoimento é capaz de desfazer a cortina de fumaça lançada sobre a questão racial. Matthias Kennert, um jovem alemão – de fenótipo ariano – que faz intercâmbio na Educafro (rede de cursinhos pré-vestibulares comunitários), disse ficar surpreso com a maneira como ele, sendo estrangeiro, recebe ‘melhores tratos do que os negros nascidos no Brasil’.

Há um preconceito nauseabundo presente nas construções de pensamento de parte dos acadêmicos brasileiros, um deboche desnecessário acerca da expressão ‘afrodescendente’. A ciência da qual são devotos desconsidera qualquer idéia que não tenha sido publicada numa página impressa e que não tenha sido concebida dentro de uma universidade ou na redação de um grande veículo de comunicação. A ‘antropologia não-acadêmica’ chama de afrodescendente todas as pessoas que possuem características de fenótipo parecidas com as dos africanos e seus descendentes, que foram escravizados por três séculos e meio aqui no Brasil. A propósito, quantas pessoas com essas características estão presentes nas universidades e nas redações?

Contra a intolerância, a intransigência

Em agosto de 2007, movimentos sociais de diversos segmentos se organizaram para fazer a ‘Jornada de Lutas pela Educação Pública’. O gesto político de maior repercussão foi a ocupação da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo. Após horas de confinamento, a tropa de choque da Polícia Militar entrou em ação e os manifestantes foram duramente reprimidos e expulsos daquele espaço público. A partir daí, foi intensificada a campanha de criminalização dos movimentos sociais. As vozes da resistência foram silenciadas. A pauta de reivindicações propostas não chegou ao público. A narrativa oficial e tendenciosa julgou e condenou os manifestantes sem ouvi-los antes. Sem dar-lhes o direito de defesa. O episódio teve grande repercussão no rádio, televisão, internet e mídia impressa.

A Constituição de 1988, cuspida às pressas para que a ‘redemocratização’ pudesse ser forjada, assegura o direito à propriedade privada. A elite brasileira, como nos ensina Sérgio Buarque de Holanda, nunca soube dissociar o público do privado. A USP (a exemplo de tantas outras) é uma universidade pública sob jurisdição privada. Os dinossauros que se apossaram dela se consideram donos legítimos. Até alegam usucapião. Por isso, a tropa de choque foi acionada. O defasado aparelho repressivo do Estado é a herança mais cortejada pelos órfãos da ditadura militar. Sempre recorrem a ele para fazer valer o direito à propriedade, colocando até o direito à vida em segundo plano. Polícia não massageia. Reparem nas cicatrizes, nas costelas quebradas e nas certidões de óbito!

Uma das funções vitais do Estado é mediar o conflito de interesses das classes. Os poderes constituídos não podem abraçar nenhum dos lados em detrimento do outro. A igualdade de direitos deve ser respeitada em qualquer circunstância. Quando as políticas universalistas não são capazes de atender a todos os cidadãos, faz-se necessário a criação de políticas públicas direcionadas, as chamadas ações afirmativas. Elas não têm outra função que não seja a de tirar o princípio da igualdade da dimensão utópica e ucrônica na qual foi posto. A ‘meritocracia’ ignora a desigualdade de condições no acesso às oportunidades. É legal, porém, ilegítima. Exemplo? 90% dos estudantes de universidades públicas – majoritariamente brancos – cursaram o ensino básico em colégios particulares.

O ponto positivo dessa contenda armada em torno das cotas é que a educação foi aclamada por unanimidade. Todos a reconhecem como o mais valoroso instrumento de emancipação. Cabe agora refletir qual parte do latifúndio cabe aos negros e não-negros pobres, tradicionalmente privados dessa benesse. A Constituição preocupa-se muito em definir e distribuir o poder entre as instituições e oligarquias, limitando a participação popular. A mobilização e conscientização dos setores menos instruídos da sociedade se sobrepõem ao mero direito de participar. É uma das vias seguras pela qual superaremos a universidade de uma cor só. ‘Contra a intolerância dos ricos’, Florestan Fernandes recomenda ‘a intransigência dos pobres’.

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Jornalista, São Paulo, SP