Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cobertura de violência sexual ainda é falha

 

Em dezembro de 2012, a morte de uma jovem indiana chocou o mundo. Uma estudante de fisioterapia de 23 anos foi estuprada por cinco homens, espancada com uma barra de ferro e lançada de um ônibus em movimento em Nova Délhi. A mulher morreu em consequência de lesões internas duas semanas depois do estupro coletivo. O assassinato repercutiu imediatamente e uma série de protestos foi articulada para reivindicar um endurecimento da legislação indiana sobre crimes sexuais. Uma nova lei foi aprovada às pressas pelo governo para reprimir crimes sexuais, mas ativistas indianos pedem que ela seja revogada para dar lugar a um texto mais abrangente.

Os cinco acusados de terem participado do estupro coletivo declararam-se inocentes perante o tribunal e um menor de idade envolvido também será interrogado. Testemunhas estão sendo ouvidas para esclarecer o caso. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (5/2) pela TV Brasil, primeira edição ao vivo de 2013, discutiu a postura da imprensa diante do grande número de estupros no país. No Brasil, de acordo com estimativas do Conselho Estadual de Direitos da Mulher (CEDIM), a cada doze segundos uma mulher é estuprada.

Martha Rocha é chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro. É Pós Graduada em Direito Penal e Processo Penal e em Administração Pública pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde o início da carreira, luta pelos Direitos da Mulher e ocupou o cargo de diretora da Divisão de Polícia de Atendimento à Mulher (DPAM), entre outros. Aparecida Gonçalves é secretária de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Presidência da República desde 2003. Militante e ativista do movimento feminista, é especialista em gênero e violência contra a mulher. Foi assessora técnica e política da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Mulher no Governo Popular de Mato Grosso do Sul. Florencia Costa é jornalista. Trabalhou no Jornal do Brasil, em O Globo e na revista IstoÉ. Foi a primeira correspondente brasileira na Índia, onde morou por cinco anos. É casada com um indiano, também jornalista. Lançou o livro Os Indianos.

A Índia é aqui

Na abertura do programa, em editorial, Alberto Dines ressaltou que mulheres e crianças são as principais vítimas em casos de brutalidade e desrespeito contra o ser humano. Para Dines, o relativo espanto da sociedade diante do estupro coletivo da jovem indiana decorre da rotineira negligência da mídia, mais preocupada em entreter do que denunciar. “Apesar da imagem plácida e mística que se irradia da Índia, a brutalização da mulher faz parte da sua realidade cotidiana, está embutida na sua cultura, no seu modo de viver. A Índia não é uma exceção nos Orientes, do Oriente próximo ao Oriente Médio e deste ao extremo Oriente”, sublinhou.

Antes do debate no estúdio, o programa mostrou uma reportagem com a opinião de especialistas na proteção do direito das mulheres. A ex-ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres Nilcéa Freire destacou que, quando as mulheres respondem coletivamente pelas agressões, como ocorreu recentemente na Índia, são capazes de mudar o paradigma existente na sociedade e de intervir no jogo social. “A mulher agredida sexualmente tem muita vergonha. A denúncia da violência sexual é mais difícil de acontecer até porque muitas vezes as mulheres que foram agredidas sexualmente foram transformadas de vítimas a algozes. São criadas situações em que [as pessoas] dizem: ‘mas também, o que ela estava fazendo naquele lugar, com aquela roupa?’”, explicou a ex-ministra.

Para Angela Fontes, superintendente de Direitos da Mulher do Estado do Rio de Janeiro, o papel dos meios de comunicação é fundamental. Quando se altera o modelo de vida das mulheres, mudam as relações de empregabilidade e autonomia e, sobretudo, a questão cultural em torno do papel dos gêneros.

Schuma Schumaer, coordenadora-executiva da Rede de Desenvolvimento Humano, criticou o enfoque da cobertura da imprensa tradicional: “A mídia, não só a mídia brasileira como a mídia internacional, deu muito destaque ao caso do estupro coletivo que aconteceu com a jovem estudante na Índia. Eu acho que esse espaço da mídia tradicional foi provocado pelas redes sociais no mundo inteiro. As redes sociais de repente se manifestaram num crime que acontece há dezenas e dezenas de anos na Índia e no mundo inteiro. Parecia, pelo enfoque que foi dado para o caso do estupro coletivo na Índia, que era uma barbaria acontecendo em um país bárbaro. Não é verdade. No Brasil nós temos inúmeras denúncias de estupro de mulheres e crianças de todas as idades”.

Cobertura parcial

Para Schuma Schumaer, há casos de violência sexual no Brasil tão graves quanto o que ocorreu recentemente na Índia, mas a imprensa não dá destaque. Ela cita o caso de músicos de uma banda de axé na Bahia acusados de estuprar duas adolescentes dentro do próprio ônibus e o caso de uma festa no interior da Paraíba em que seis mulheres foram estupradas por oito homens, das quais duas morreram. “Mataram duas delas porque reconheceram os estupradores”, diz, ressaltando que estes são exemplos tão horrorosos quanto o que aconteceu na Índia. E, no entanto, a cobertura da mídia no Brasil se restringiu a pequenos noticiários em jornais locais.

Na avaliação de Jacira de Melo, diretora-executiva do Instituto Patrícia Galvão, a mídia no Brasil foi hipócrita porque não estabeleceu uma relação direta com o panorama brasileiro, onde as mulheres não denunciam a violência sexual por medo, vergonha e risco de impunidade. “O Brasil é o país campeão de abuso sexual contra crianças, dentro da família ou com pessoas próximas. Isso é pauta da mídia? Isso tem sido tema abordado e discutido seriamente pela sociedade brasileira? Não, por conta de tabus e preconceitos; por entender que o lugar da família ou do seu entorno é o lugar mais seguro para as mulheres, e não é nem no Brasil nem no mundo. Falta debate, faltam políticas públicas e falta uma mídia que aprofunde o tema”. Falta um debate contextualizado, além do factual, na opinião de Jacira de Melo.

No debate ao vivo, a chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, delegada Martha Rocha, ponderou que a questão da violência contra a mulher passa por um “caldo cultural”. É um fenômeno que atinge as mulheres independente de padrões de beleza, faixa-etária, nível de renda ou de escolaridade. “Se já é difícil você chegar em uma delegacia e dizer que foi vítima de violência física, muito mais difícil é dizer que foi vítima de uma violência sexual. Até porque, no contexto social, antes de se preocupar com o autor, a sociedade vai indagar qual é o papel da mulher como protagonista daquela violência”, disse Martha Rocha.

Repressão e punição

Para a delegada, o papel da imprensa na luta pelos direitos da mulher é fundamental: “A mídia pode dar poder a esta mulher [vítima de violência sexual] quando questiona e cobra das autoridades o resultado daqueles atos investigativos, a punição daqueles autores dos crimes”. As conquistas das mulheres nas últimas décadas não seriam possíveis sem o apoio da imprensa. Martha Rocha ressaltou que as mulheres precisam buscar os seus direitos e entender que as relações afetivas não podem ser pautadas pelo medo.

Romper a barreira do silêncio é essencial para enfrentar os abusos sexuais: “Os nossos maiores aliados são os homens. Os homens não podem olhar essas condutas como condutas aceitáveis. O homem não pode aceitar de outro homem a parcimônia na prática da violação sexual. Eles têm que ser solidários por questões de Direitos Humanos, estar ao nosso lado e ser os primeiros a lutar pela reprimenda dessas condutas”, defendeu. Martha Rocha fez um apelo para que toda a sociedade, não só as mulheres, dê o primeiro passo para vencer o medo e denuncie os crimes sexuais pelo telefone 180, procurando as delegacias especializadas ou através do disque-denúncia

No Brasil, ainda impera a “cultura do machismo”, na opinião da secretária de Enfrentamento à Violência. Aparecida Gonçalves enfatizou que uma diminuição significativa nos índices de crimes sexuais contra as mulheres só será possível se o poder público brasileiro for capaz de combater a impunidade. É preciso criar um aparato de segurança em torno das vítimas para que se tenha a certeza de que o criminoso será punido. Outro aspecto fundamental é aumentar o espaço reservado pelas autoridades para a apresentação das denúncias, como delegacias especializadas. Uma alternativa é a notificação compulsória de casos de violência sexual por parte dos serviços de Saúde, dinâmica implantada recentemente pelo governo. No plano social, as mulheres não podem ser “culpabilizadas” pela violência que sofreram e medidas de prevenção devem ser adotadas com urgência, incluindo a capacitação dos profissionais de Saúde.

Aparecida Gonçalves ressaltou que a mídia – uma importante aliada – tem a obrigação de acompanhar as denúncias, monitorar os procedimentos do governo e promover novos comportamentos na sociedade em relação aos direitos das mulheres.

O preconceito embutido na sociedade

Florência Costa contou que, na Índia, a imprensa noticia e discute a questão da violência sexual contra as mulheres com frequência. No ano passado, por exemplo, uma das maiores revistas do país, Tehelka Magazine, publicou uma extensa reportagem sobre o comportamento da polícia indiana em relação às mulheres agredidas. A investigação da publicação comprovou que, na maioria dos casos, os agentes públicos demonstravam preconceito e transferiam a culpa para as mulheres. “Isso não é um fato isolado da polícia ou de uma instituição. Isso faz parte da cultura geral lá, que o governo tenta combater com campanhas”, relatou a jornalista.

A jornalista avaliou que a cobertura da imprensa brasileira poderia ter contextualizado melhor o papel da mulher na sociedade indiana. Casos como aborto de fetos femininos, que apresentam índices alarmantes e estão ligados à pouca valorização das meninas na cultura oriental, foram pouco explorados. “A mulher é um peso para a família. Quando ela vai casar, a família tem que dar um dote monstruoso, mesmo que a Lei proíba o dote. Na Índia, muitas Leis são só no papel”, exemplificou Florência. Quando os dotes são abaixo do esperado, há casos em que as mulheres são assassinadas por seus maridos como vingança.

 

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Estupros no mundo globalizado

Alberto Dines # editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 671, exibido em 05/02/2013

Estupro, abusos sexuais e violação de mulheres são violências que não existem isoladas. Onde há brutalidade e desrespeito pelo ser humano, mulheres e crianças são as suas primeiras e maiores vítimas.

O estupro coletivo e assassinato da estudante indiana em dezembro passado, assim como o espancamento até a morte do seu namorado, não aconteceram por acaso. O espanto do mundo inteiro não decorre de um suposto ineditismo. A surpresa, se houve, teve mais a ver com a negligência da mídia – sempre mais interessada em ser agradável e entreter do que em exibir os horrores e denunciar.

Apesar da imagem plácida e mística que se irradia da Índia, a brutalização da mulher faz parte da sua realidade cotidiana, está embutida na sua cultura, no seu modo de viver. E a Índia não é uma exceção nos orientes, do Oriente Próximo ao Oriente Médio e deste ao Extremo Oriente. As três religiões monoteístas – o judaísmo, o cristianismo e o islamismo – são visivelmente discriminatórias e preconceituosas com relação à mulher. Do apedrejamento das adúlteras ao estupro é um passo.

A Índia está brilhando em todos os rankings de desenvolvimento econômico, junto com o Brasil, a Rússia, a China e a África do Sul. Está na vanguarda dos emergentes, os BRICs. Mas o que é desenvolvimento econômico se a barbárie mantém-se intocável e incólume?

A Índia está aqui, nós também somos Índia.

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A mídia na semana

>> O Brasil não se mete em guerras, não tem terremotos ou tsunamis, as catástrofes climáticas são recentes. A tragédia em Santa Maria pegou um país que não sabe lidar com o luto, sobretudo o luto coletivo, sobretudo no verão, a época mais festeira do ano.

Com 238 mortos e 75 hospitalizados, a grande mídia se esforçou para vencer as resistências ao sofrimento. Mas o que está colando mesmo são as investigações para apurar responsabilidades no incêndio da boate Kiss. Principalmente a imediata reação das autoridades estaduais e municipais dos grandes centros urbanos, agora forçados a evitar outras catástrofes em boates, discotecas e casas de espetáculo.

O sofrimento das quatrocentas famílias vitimadas pelo fogo e pela incúria produziu comoção e solidariedade nos quatro cantos do país, mas os sentimentos dominantes e crescentes são a revolta e a indignação. Os fortes indícios de irresponsabilidade, negligência e imprudência que começam a aflorar no inquérito policial trazem ao noticiário ingredientes tradicionais da agenda brasileira relacionados com propinas, chantagem e corrupção em diferentes áreas e níveis. Esses ingredientes são de fácil combustão e a imprensa não precisa de muito esforço para convertê-los em cruzada.

Ao lado dos jovens heróis que salvaram tantas vidas começa a brilhar a figura do delegado de polícia de Santa Maria, encarregado de levar todos os responsáveis à barra dos tribunais. Enlutada ou não, a sociedade quer xerifes.

>> O documentário biográfico Garrafas ao mar, de Geneton Moraes Neto, sobre o repórter Joel Silveira, exibido na Globo News no último fim de semana, é uma ponte entre jornalismo e arte. Prova cabal de que informação é muito mais do que entretenimento e lazer. Inesquecível o conselho do velho repórter aos seus coleguinhas mais jovens: “Jornalista vê a banda passar, não faz parte dela”.