Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem mente sobre Romulo Maiorana?

A geração Maiorana mais recente e parte da opinião pública estão convencidas de que persigo os irmãos Ronaldo e Romulo Maiorana Jr., mais a irmã, Rosângela, por despeito e vingança. Seria porque fui demitido da empresa e com isso perdi o poder que escrever no jornal O Liberal (onde trabalhei durante 13 anos) colocava ao meu alcance.

De tanto ouvir essa história, que é absolutamente falsa, mas repetida pelos interessados, com base na presunção (do mago da propaganda nazista, Joseph Göebbels) de que uma mentira passa a valer como verdade se repetida mil vezes, publico um documento que põe fim a essa versão maliciosa e falsa. Só os desonestos continuarão a repeti-la.

Na verdade, nunca fui demitido dos empregos que tive: sempre me demiti. Foi assim que saí duas vezes de O Liberal, por não aceitar que meus artigos fossem censurados. Da primeira vez, em agosto de 1977, cinco anos depois de ter começado na empresa, Romulo foi me buscar de novo em A Província do Pará.Da segunda, não pôde: morreu antes, três meses depois da carta que lhe enviei.

Mas sua viúva, Déa, me disse, diante do corpo do marido, velado na igreja do Rosário, que um dos seus propósitos era restabelecer a paz entre nós. Admitia seu erro, de não autorizar a publicação da minha coluna, com artigo meu em resposta ao que Jader Barbalho e seus aliados divulgaram no Diário do Pará.

Nosso último contato, quando ele já estava sem esperança de sobreviver à leucemia que o acometera, foi esta carta, que lhe enviei em 12 de março de 1986:

Prezado Romulo,

É duplamente penalizado que sento à mesa para te escrever esta carta. Não esperava que ela se tornasse necessária. Nem pretendia te mandar algo assim neste difícil momento que atravessas. Ainda assim tomo a iniciativa por achar que, no fundo, depurados os atritos, ela te possa ser muito mais útil do que nociva. Apesar do seu tom, é a carta de um amigo, que não tinha e não tem por essa amizade nenhum outro interesse que não o de usufruir uma convivência amiga.

Infelizmente, foi justamente a essência dessa amizade que atingiste com teu telefonema. Nosso relacionamento sempre foi muito bom, invejável até, porque se baseou no mútuo respeito, na admiração recíproca. Não faço parte daquela confraria do teu escritório, nem sou daquelas pessoas que podem ser tratadas no grito, aos palavrões. Ouvia falar desta tua faceta, mas a desconhecia pessoalmente. Mesmo nos momentos de maior desentendimento, por causa do conteúdo dos meus artigos mais críticos, sempre dialogamos no nível que deve ser mantido por pessoas respeitosas, até mesmo quando brigamos. O tom daquele teu telefonema de ontem foi completamente novo para mim, em 36 anos de vida e 20 anos de profissão. Ouvi e engoli, tentando contra-argumentar calmamente, com razão, em respeito a ti e à tua situação, com a qual estou plenamente solidário e para cujo agravamento espero jamais contribuir. Com a franqueza que existe entre nós, te garanto que ouvi as coisas que disseste pela primeira e última vez. Foi tão surpreendente que nem pude afastar de perto do telefone meus filhos pequenos, que viram o pai numa situação completamente nova (te mando cópia do bilhete que a minha filha deixou na minha cama antes de ir dormir, no final da noite, para sentires um pouco do impacto causado do outro lado da linha telefônica). A revolta e a indignação, que consegui segurar e filtrar através de coisas civilizadas e enérgicas que te disse ao telefone, por ouvir o que ouvi sem reagir à altura, me causaram um mal enorme e virei a noite pensando em te escrever esta carta. Não esquecerei o que aconteceu. Fico sem mágoa ou rancor, mas fico por aqui na nossa amizade, para manter o que nela foi bom e expurgar este desfecho.

Mas te escrevo esta carta também porque preciso te dizer, ou reafirmar o que já disse na nossa conversa, certas coisas importantes.

Em primeiro lugar, agi com toda a lealdade, correção e honestidade contigo. Quando fui ao Rio de Janeiro, acertamos que apenas o R-70 faria a campanha do Hélio [Gueiros] e mesmo assim “em poucas linhas”, com algumas incursões na parte de cima. Eu não seria obrigado a fazer notas sobre o Hélio e até me pediste autorização para transmitires a ele a minha oposição à candidatura dele. Autorizei na hora repassares a ele o que te dissera a respeito. Tenho feito exatamente isso e até fui mais longe: redigi três notas sobre o Hélio porque tinha informações que valiam a pena publicar, fosse ele ou não teu candidato. Quanto à minha coluna, me deste total liberdade para escrever, inclusive contra o Hélio e o Kayath [Henry Kayath, já falecido, era então o superintendente da Sudam]. Só me pedias que não fizesse campanha, o que não fiz antes e não tentei fazer agora. Critiquei o Jader e o Kayath quando ambos foram notícia, quando havia “gancho” para o artigo com base em fatos. Quanto aos artigos mais recentes, apenas reagi, depois de ter suportado uma longa e sórdida campanha, sem cair na linguagem do “Diário” [do Pará]. Lembro que mandaste um recado pelo [Cláudio] Leal [diretor de redação de “O Liberal”], elogiando um desses últimos artigos, na sexta-feira, e incentivando-me a continuar em frente. Fiquei sensibilizado.

A cada nova porcaria lançada pelo “Diário”, procurava reagir com calma e discernimento. Controlava a fúria aqui no escritório [do jornal “O Estado de S. Paulo”, do qual era correspondente] e só quando estava no perfeito domínio sentava para responder. Nunca consultei ninguém sobre como devia escrever, nem pretendia usar a resposta como instrumento de campanha, ou para forçar um confronto entre “O Liberal” e o “Diário”, ou tu e teus amigos. Era o exercício do direito de resposta de um jornalista agredido e que sabe que por trás desses ataques está a intenção intimidatória de um tiranete de província. E que sabe que sua cidadela é a última. Se cair, não haverá mais ninguém atrás. Todos recuaram ou deserdaram. Ninguém, senão eu, critica este governo. Não quero o monopólio da crítica: ela me caiu porque muitos acabaram por submeter-se à máquina de trituração de resistências que Jader Barbalho montou e administra com cínica competência. Sou jornalista e o que sei fazer é jornalismo. Era o que vinha tentando na minha coluna. Jader Barbalho não me fará vergar, nem ninguém. Não porque eu esteja em algum esquema de combate a ele ou com algum interesse pessoal no governo. É por causa de uma orientação velha em jornalismo: dizer que o boi é boi quando estamos diante do boi e que ladrão é ladrão se diante do ladrão. Era este o lema do primeiro jornal do nosso Estado, “O Paraense”, em 1821.

Quanto à inclusão de referência ao nome de Hélio Gueiros. Ele empresta o nome e as imunidades parlamentares para proteger as sujeiras do “Diário”. O jornal me ataca há muito tempo. Em nenhum momento o Hélio se lembrou de que, para todos os efeitos legais e formais, o responsável pelo que sai no “Diário” é ele. Fazem todas as velhacarias porque sabem que, na hora de ir à Justiça, será preciso ir além, pedindo o licenciamento do senador para qualquer punição, o que não virá. Por um dever mínimo de consideração a amigos e de honradez pessoal, o senador deveria explicar-se. Dizer que está ali por causa de determinado esquema político, mas não pactua com o que é publicado. Ou, em ato de maior dignidade, mandar tirar seu nome do expediente. Mas não faz nada disso. Acoberta a ressurreição da mais torpe tradição de pasquinada desta terra. E não só contra mim, mas contra todo aquele que for um entrave aos objetivos da quadrilha que assaltou este infeliz Estado. Sobrou para ti e tua família naquela coluna de terça-feira, não apenas por minha causa (e não principalmente, posso dizer), mas por causa da notícia sobre as fazendas do Jader, de tua responsabilidade. Quem está protegido desses abutres se ninguém lhes barra a ousadia?

Sacrificas a ti, à tua família e um amigo leal e desinteressado por conta de um compromisso político que só te trará prejuízo, dissabores e desilusão, mais uma vez. O comportamento do Hélio, sua omissão diante da velhacaria do “Diário”, não têm justificativa. Ele quer tua fidelidade ao compromisso, o que entendo, mas quer também as vantagens de emprestar seu nome ao esquema político do qual só ele tem benefício. Quer dos dois lados, portanto. Não é correto. E o pior, Rômulo, como já te disse, é que ele nem será o candidato do governo porque os planos do Jader são outros.

Depois que procurei repor a nossa conversa num nível respeitoso, te dispuseste a ouvir novamente a leitura do artigo e rever tua posição. Reviste mesmo (e este é um traço da tua personalidade que nunca deixei de elogiar: a capacidade de admitir o erro e mudar o rumo da conduta). A solução foi digna para todas as partes. Nem eu me violentei, sem alterar um milímetro o sentido do artigo, nem tu foste constrangido a abrigar em teu jornal consideração tão dura em relação ao amigo. Podíamos ter chegado a esse entendimento como nas ocasiões anteriores, nas quais estivemos diante do mesmo impasse e sempre deste demonstração de clarividência e compromisso com a missão jornalística.

No artigo anterior eu escrevera que raros jornalistas desfrutariam de tanta margem de liberdade como eu no teu jornal. Não disse isso para te agradar. É a pura verdade e o digo na pele do jornalista que mais sofreu esse tipo de constrangimento na imprensa paraense de hoje. Mas antes que chegássemos a um entendimento civilizado jogaste contra mim argumentos inaceitáveis, numa linguagem e numa ênfase que jamais pretendi ouvir e nunca mais aceitarei. Estou plenamente consciente de que teu comportamento resultou da gravidade da doença e da crueldade do tratamento que sofres aí. Foi apenas por isso que contemporizei. Mas não posso mais apagar esse episódio da minha cabeça, nem a dor do coração. Meu único patrimônio é meu nome e a coerência da minha vida. Vou mantê-lo a qualquer preço.

Em função disso, no final do mês deixo “O Liberal”. Vou pedir férias a que tenho direito (espero que também pelo 70), ficar 30 dias arrumando as minhas coisas para a nova situação e, ao encerrar as férias, escreverei um artigo explicando que optei por me dedicar de novo às grandes reportagens e ao trabalho sobre a Cabanagem, que espero realizar se conseguir voltar aos Estados Unidos para um período de um ano (começarei a tentar isso imediatamente, já que o descartara na época aprazada, em setembro do ano passado). Pedirei demissão, desde já solicitando dispensa do aviso prévio, mas espero contar também com todos os direitos, a forma de fazer um fundo para financiar a minha vida nas novas condições e, talvez, algum novo empreendimento jornalístico solitário. Se “O Liberal” estiver interessado, acertaremos algumas matérias. Se aprovadas, o jornal me pagará como “free-lancer”, o que voltarei a ser, mantendo apenas o vínculo com “O Estado de S. Paulo”.

É este o meu rumo. Não sei quando e se cruzaremos de novo. Quero te dizer, tirando as palavras do “fundo da alma”, como dizem os poetas, que este é um dos momentos mais difíceis da minha vida, em prolongamento ao de ontem. Mas que, ao fim desta carta, não termina minha amizade, nem meu apreço por ti, pela Déa e tua família. Guardarei as coisas boas do nosso relacionamento, que são muitas e eternas, enquanto eterno eu for. Um abraço, com toda minha solidariedade e o desejo de que o mais breve possível estejas de volta a Belém e ao mundo que construíste com tua pertinácia incomum”.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista e editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]