Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A justiça como uma ameaça à democracia

Saí satisfeito da apresentação que Isadora Mota do Amaral fez da sua dissertação de conclusão do curso de direito da Universidade Federal do Pará, no mês passado. A banca examinadora lhe conferiu a nota máxima. Ela mereceu a aprovação unânime e eu fui ao campus da UFPA não apenas porque o tema do seu trabalho era “O efeito silenciador do judiciário paraense: o caso Lúcio Flávio Pinto à luz da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos”.Minha satisfação se devia ao fato de, finalmente, o meu “caso” receber uma análise jurídica. Pioneira e do mais alto nível.

Esperei por esse momento desde que eu próprio tomei consciência do significado do acúmulo de processos judiciais contra mim, a partir de cinco ações sucessivas (quatro criminais e uma cível) propostas por Rosângela Maiorana Kzan, diretora administrativa do grupo Liberal. Eu era inocente e não sabia.

Minha experiência direta com a justiça se restringia a um processo instaurado na Auditoria Militar de Belém. Fui enquadrado na terrível Lei de Segurança Nacional e devidamente palmilhado pela Polícia Federal. Meu crime tinha sido publicar matérias em O Liberal que mostravam a violência usada pela polícia ao perseguir presos que conseguiram fugir quando eram conduzidos à noite para “interrogatório” na ilha de Cotijuba.

Quando as reportagens saíram, o governador Aloysio Chaves mandou instaurar inquérito para apurar a violência dos policiais. Quando o procedimento terminou, Paulo Ronaldo e eu estávamos incursos na LSN. Fomos acusados de tentar indispor a população contra as autoridades.

A principal prova do delito? Colegas da imprensa tinham admitido diante do presidente do inquérito, coronel PM Antonio Carlos Gomes, que montaram as fotografias dos espancamentos e baleamentos dos presos para provocar a reação. Paulo e eu dissemos a verdade: as cenas eram reais.

A conclusão da apuração era tão absurda que a Auditoria desqualificou o crime, remetendo o processo para a justiça comum, onde a ação foi extinta e aquela farsa remetida ao destino devido: o arquivo. Tudo isto em 1976/77, em plena ditadura, como hoje se diz à larga.

Processo legal

Quando a primeira ação de Rosângela pipocou no fórum, me apresentei espontaneamente em cartório, para espanto e incredulidade geral. Tomei conhecimento da algaravia tisnada de formalidade jurídica e apresentei minha defesa prévia. Mantinha minha convicção de que aquelas idiossincrasias não prosperariam. Dava-me por citado e contestava cada uma das peças na presunção de que a julgadora, Ruth do Couto Gurjão, rejeitasse a pretensão da autora.

Descobri, estupefato e indignado, que podia usar todos os meios de defesa sem mudar o que já estava predisposto nos autos: a minha condenação. Começava a se formar ali o pacto entre pessoas poderosas, por seu dinheiro ou sua influência, e o aparato da justiça. O objetivo era tirar de circulação um jornalista incômodo, que teimava em repetir a diretriz de Batista Campos e de todos os profissionais da informação com um nível mínimo de decência; relatar os fatos como os fatos são. Doa a quem doer.

Na esteira estendida pelos cinco processos de Rosângela Maiorana Kzan vieram mais 28 processos, com as mesmas características: motivação frívola e fútil, fundamento legal frágil; mas muita pressão fora dos autos para que viesse a condenação. E ela tinha que vir, mesmo passando por cima de regras processuais, da norma escrita da lei, do bom senso, da racionalidade e de tudo mais. As marcas surreais dos meus processos extrapolam a própria imaginação dos cronistas do absurdo, conforme Leo Gilson Ribeiro definiu Kafka, Beckett e Ionesco.

A princípio eu também me conformava ao entendimento local de que meus processos eram apenas mais alguns na congestionada pauta do judiciário de um Estado completamente lateral na federação controlada pelos entes poderosos. Se agora posso ter a presunção de que aquelas ações iniciadas com leviandade em 1992 têm um caráter de infame pioneirismo é porque já disponho de parâmetros como a dissertação de Isadora, submetida a uma banca examinadora exigente e rigorosa, constituída por Antônio Maués, Paula Arruda e Laércio Franco.

Isadora situou alguns dos desfechos de ações interpostas contra mim sobre o pano de fundo das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Resulta comprovada por essa justaposição o atraso da lei brasileira e o dissenso dos julgados de um tribunal como o do Pará em relação às conquistas do direito continental.

Violam-se – no Estado, como no país – garantias que já têm plena tutela internacional. Daí a reação, por vezes raivosa, dos que desrespeitam o direito supranacional quando questionados nessas instâncias, para as quais deviam se voltar aqueles que já não encontram tutela jurisdicional nos limites territoriais do seu país.

Esse questionamento não viola a soberania nacional quando se trata de questão que constitui consenso mundial, estabelecido com a adesão do Brasil. Quando o país assina determinadas convenções devia ter a consciência de que o ato é para ter consequências, provocadas pelo próprio país ou a partir de provocação perante as cortes respectivas. Nesse ponto, só há um jeito civilizado de resolver as pendências: pela apreciação das razões invocadas no devido processo legal, garantidas todas as formas de defesa.

Situação inversa

Na evolução de 33 processos ao longo de 20 anos, o “efeito silenciador” tão bem definido por Isadora levou a justiça do Pará ao paroxismo do absurdo. Simplesmente me vedou o acesso aos institutos disponíveis na lei processual ou a interrupção de sua tramitação por atos de puro arbítrio. Como classificar de outra maneira o procedimento de uma desembargadora que retira dos autos a arguição de suspeição suscitada contra si e continua a dar andamento ao processo principal? Ou a aplicação de decisões padronizadas que impedem o prequestionamento de matéria federal ou constitucional nos embargos de declaração, bloqueando artificialmente a subida dos autos à última instância recursal, o STJ e o STF?

Fiquei muito impressionado ao ler Behemoth, o clássico estudo do nazismo (ainda em seu início) feito por Franz Neumann. Estávamos na segunda metade dos anos 1960, uma época aziagamente apropriada para a leitura dessa obra. Antes que Adolf Hitler desencadeasse a guerra expansionista para o seu império de mil anos, Neumann já advertia: a justiça de Weimar fertilizou o caminho legal (ou ilegal, daí a referência a Behemoth, a entidade mitológica do caos), ao ser parcial, tendenciosa, refratária à incorporação das conquistas da república de Weimar, brilhante, efêmera e débil tentativa de trégua entre as duas maiores carnificinas humanas (animais, melhor dizendo).

Nossa esperança é sempre no sentido de ver a justiça como a garantia do estado democrático de direito, conforme a ladainha dos advogados. Meu caso – e, depois dele, casos cada vez mais numerosos – revelam uma situação inversa: a justiça como fator fortemente impeditivo do estabelecimento da democracia pela repressão aos direitos humanos, sobretudo a liberdade.

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[Lúcio Flávio Pinto é jornalista, editor do Jornal Pessoal (Belém, PA)]