Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

O fim da compaixão

Relevante, no recente jogo da seleção brasileira em Londres, foi nem tanto o futebol “redondo” que os russos têm adotado recentemente, tampouco o estilo “burocrático” que reina no futebol brasileiro nos últimos anos, mas o fato de a TV inglesa não exibir qualquer tipo de manifestação de violência por parte dos torcedores. Mesmo uma prosaica invasão de campo por um adepto russo não foi focada pelas câmeras. Foi adotando estratégias como essa que os ingleses se livraram (ou ao menos minimizaram) a ação dos outrora hooligans em seus estádios. Essa não valorização da violência nos meios de comunicação, se não foi decisiva, certamente contribuiu para o fim dos conflitos.

No documentário Tiros em Columbine, de Michael Moore, há um momento em que se compara o cotidiano de Detroit com a vizinha Windsor, no Canadá. Para entender os baixíssimos níveis de violência no lado canadense, contrastantes com Detroit, Moore observa o que a TV local passa e constata variadas campanhas de cidadania, como prevenção a acidentes de trânsito, por exemplo. Não havia sobrevalorização de catástrofes, tampouco grande incidência de programas ou filmes policiais, frequentes na TV americana e na brasileira.

Por cá, não há uma emissora de TV (exceto, talvez, as religiosas), seja de alcance local ou nacional, que deixe de exibir o sangue das ruas, dia e noite, obtendo audiência, lucro e quase sempre a ascensão política dos apresentadores, que se elegem vereadores, deputados, executivos. Entretanto, a superexposição da violência termina por gerar na opinião pública o que Susan Moeller chamou de compassion fatigue (“cansaço da compaixão”, em tradução livre), levando as populações de contextos violentos a assimilarem como “naturais” a violência exposta e repisada na mídia, retroalimentando e legitimando práticas criminosas, por exemplo, bem como suas repressões violentas. Parece ter sido esse o estágio consolidado no Brasil, com 50 mil mortes por assassinato ao ano.

Ex-secretário “pegou o beco”

Em termos locais, em Fortaleza, longe de qualquer niilismo, as estatísticas comprovam, dia após dia, o cenário trágico e atual de uma cidade devastada ao longo da última década. O jornal O Povo de 26 de março trouxe outra amostra disso: “235%. Foi o aumento na mortalidade por armas de fogo, entre 2000 e 2010”.

Recentemente, um secretário de Segurança do Ceará tentou coibir a exibição de presos em programas policiais das emissoras em Fortaleza. O (ex)secretário, que apesar de todos os riscos constantemente caminhava sozinho à beira-mar, teve que “pegar o beco”, para dizer como a gíria local: foi demitido, partiu e com ele se perdeu o rumo de uma política de segurança hoje periclitante, que faz de Fortaleza a 13ª cidade mais violenta do mundo (1.600 mortes por arma de fogo em 2012). Enquanto isso, o público assiste, cada vez mais, aos programas policiais na TV, fazendo de seus apresentadores vereadores, deputados, executivos…

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Túlio Muniz é historiador e doutor pela Universidade de Coimbra, Portugal, e jornalista