Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Físico midiático quer unir darwinismo e criacionismo

Já pensei em colocar na coluna de links de meu blog um item chamado Antibibliografia. Nele certamente entrariam todos os livros do midiático físico indiano Amit Goswami. Por dever de ofício, tive de ler quase todas as suas obras. Na mais recente, Deus Não Está Morto: Evidências científicas da existência divina (trad. de Marcello Borges. São Paulo: Editora Aleph, 2008, 304 pp., R$ 46,00), a estratégia retórica é a mesma dos livros anteriores: dizer a leitores ávidos por uma prova de existência divina exatamente aquilo que eles esperam, fugir da confrontação com aspectos polêmicos e dar um ar de erudição às suas considerações com o apelo à superficialidades e até a equívocos próprios da cultura de almanaque.


O aparato de divulgação de Goswami costuma apresentá-lo ora como ‘um dos principais físicos da atualidade’, ora como um ‘revolucionário em um corpo crescente de cientistas renegados’ (ver seu site oficial). Ele é, de fato, um dos físicos mais conhecidos da atualidade, não por causa de sua atuação na física, mas devido ao sucesso com vendas de seus livros, com suas palestras organizadas em vários países pelos editores de seus livros e também por sua participação nos filmes Quem Somos Nós?, em 2004, e O Segredo, em 2006. Em outras palavras, seu sucesso se deve somente à mídia.


Uma coisa é tentar promover a discussão entre partidários de teses contrárias. Certamente isso não levará nunca a um consenso. Nem deve se esperar por esse resultado, mas o processo é sempre enriquecedor para aqueles que se esforçam para compreender argumentos contrários. Porém, outra coisa é a pretensão de Goswami de ter formulado um novo paradigma científico no qual coexistiriam os princípios do evolucionismo e do criacionismo. Essa formulação, que dependeria de muita pesquisa e reflexão científica e filosófica, cresce à vontade em muitos nichos midiáticos.


Conclusões forçadas


Nesse livro, o físico indiano repete, sem dar novos argumentos, a mesma tese apresentada em publicações anteriores, de que o universo é matematicamente inconsistente sem a hipótese da existência de Deus.




‘O primeiro tipo de evidência científica para a existência de Deus é o que chamo `as assinaturas quânticas do divino´. A física quântica nos oferece novos aspectos da realidade – as assinaturas quânticas – e, para compreendê-las, explicá-las e apreciá-las, somos obrigados a introduzir a hipótese de Deus. Um exemplo é a não-localidade quântica, a comunicação sem sinal. A comunicação normal é uma comunicação local, realizada por meio de sinais que transportam energia. Mas, em 1982, Alain Aspect e seus colaboradores confirmaram em laboratório a existência de comunicações que não exigem esses sinais’ [pág. 5].


Goswami se refere nesse trecho a um dos mais importantes experimentos da física do século 20. Seus resultados foram publicados em 20/12/1982 no mais conceituado periódico especializado em física, o Physical Review Letters. O estudo, apresentado no artigo ‘Experimental Test of Bell´s Inequalities Using Time-Varying Analyzers‘ pelo francês Alain Aspect e seus colaboradores do Instituto de Óptica, de Paris, contrariou a previsão da Teoria da Relatividade para velocidades maiores que a da luz e provocou muitas questões não só na física, mas também na filosofia [ver Sílvio Seno Chibeni, ‘Implicações filosóficas da microfísica‘, Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 141-164, 1992].


No entanto, as implicações do trabalho de Aspect, assim como as de outros, trazem muito mais interrogações do que conclusões forçadas como a de Goswami. Por mais que dela se discorde, seria perfeitamente compreensível a atitude daqueles que crêem na existência divina de responder a essas questões com base em sua crença. No entanto, para aqueles que não são crentes – como o físico indiano até antes de refletir sobre esses problemas, segundo ele afirma – não faz sentido se apegar a essa hipótese.


Argumento da ignorância


Feita por parte de alguém que se diz ter sido ateu e que se defrontou com essas questões da microfísica, a opção de Goswami incorre naquilo que em lógica é chamado de falácia do argumento da ignorância, como mostram os trechos a seguir.




‘(…) Recentemente, tem surgido muita controvérsia sobre teorias criacionistas/desígnio inteligente versus evolucionismo. Por que toda essa polêmica? Porque, mesmo depois de 150 anos de darwinismo, os evolucionistas ainda não têm uma teoria à prova de falhas. Não podem sequer explicar os dados fósseis, especialmente as lacunas fósseis, e também não podem dar explicações satisfatórias sobre como e por que a vida parece ter sido projetada de forma tão inteligente’ [p. 5].


E, pouco mais adiante, ele acrescenta:




‘A chave, neste sentido, seria perguntar: `Haverá uma alternativa para ambas essas abordagens que concorde com todos os dados?´ Minha resposta é sim, e vou demonstrá-la nesta obra. Porém, a resposta exige a existência de um Deus com poderes causais e de um corpo sutil que atua como gabarito da forma biológica; o materialismo não permite nenhuma dessas duas entidades. E, assim, problemas impossíveis requerem soluções impossíveis!’ [p. 6]


Em outras palavras, em face do desconhecimento de explicações no âmbito das teorias que são alvos de suas críticas, ele conclui que não há explicações possíveis, uma vez que postula a existência divina como única alternativa.


Precariedade filosófica


Não bastassem essas e outras saídas forçadas, o físico indiano mostrou nessa obra com mais clareza sua precariedade no plano filosófico. Sua forma de lidar com a idéia de um princípio finalista revela sua confusão entre essa noção e a de criação, que até para alguns pensadores medievais teve de ser objeto de demonstração. Muitos séculos antes deles, o próprio Aristóteles, que formulou a causa final (télos) exterior aos processos por ela guiados, em seu livro Sobre o Céu (Livro B, Capítulo 1, 283b26-29) afirmou que ‘(…) o mundo certamente não foi gerado nem pode ser destruído, como alguns alegam. É único e eterno, não tem começo nem fim em sua extensão e contém o tempo infinito’ [On the Heavens. Texto grego estabelecido por Immanuel Bekker. Tradução de William Guthrie. Cambridge: Harvard University Press (Loeb Classical Library, Aristotle, vol. VI), 1934, pp. 130-131].


Outra interpretação precária de Goswami é a do pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900), apontado simploriamente por ele como o niilista que proclamou ‘Deus está morto’ (págs. 53 e 60). No entanto, o pensador alemão foi um crítico do niilismo, este entendido como a incapacidade de o Ocidente construir valores para nortear a civilização, que se encontra cada vez mais, desde o início da modernidade, diante da falência de todos os valores supremos:




‘Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e o mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará este sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos teremos de inventar?’ [A Gaia Ciência, § 125. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 148].


Longe de discussões


Apesar de ter sido lançado pouco antes das recentes discussões no Brasil sobre o evolucionismo e o criacionismo (ver ‘A torre de marfim e o risco de macaquear o evolucionismo‘ de 15/12), Deus Não Está Morto escapou desse confronto. É bem possível que o subtítulo dado ao livro pelos editores brasileiros tenha ajudado a não evidenciar seu conteúdo relativo a esse antagonismo. A versão original é God is Dead: What quantum physics tells us about our origins and how we should live (Deus Está Morto: O que a física quântica nos diz sobre nossas origens e como deveríamos viver).


Na verdade, não existe a tal polêmica na ciência em torno das obras de Goswami, como pregam os divulgadores de seus livros. Eu mesmo afirmei isso pessoalmente a ele durante sua entrevista ao programa Roda Viva exibido em 11/02/2008 pela TV Cultura, de São Paulo.


Durante a gravação desse programa, que se realizou 27/08/2007, apresentei os registros dele na base de dados Web of Science, que mostravam, naquela data, nove trabalhos publicados por ele após janeiro de 1986, quando deixou a ‘ciência materialista’. Esses nove artigos tiveram, até aquela ocasião, apenas 46 citações em pesquisas indexadas nessa base de dados em todo o mundo, quase todas feitas por ele próprio ou por pesquisadores ligados a ele. Em outras palavras, não havia, como até hoje não há, qualquer repercussão significativa da atuação dele na ciência, muito menos uma polêmica científica em torno de suas idéias.


Eu também lhe disse que seus livros não discutem verdadeiramente as idéias científicas neles abordadas, pois ele apenas as cita seus aspectos que lhe interessam, diferentemente do que costuma ser feito por cientistas, por mais parciais que eles sejam. Goswami, que tanto alega se basear na mecânica quântica, fez em seus livros várias considerações en passant sobre Albert Einstein (1879-1955) sem deixar claro que esse cientista, durante as três últimas décadas de sua vida, se posicionou contrariamente a essa teoria. À minha pergunta sobre esse procedimento que nada tem a ver com a forma de se resolver dúvidas na ciência, ele respondeu:




‘Infelizmente, o confronto não é o estilo recomendado pela visão de mundo que tenho… e a visão de mundo que explica a física quântica e que agora parece explicar muitos fenômenos inexplicáveis, e que nem mesmo podem ser abordados pela visão de mundo materialista. Essa é uma abordagem muito amigável, inclusiva. Eu não acho que bater de frente em debates com cientistas específicos fará alguma coisa a favor da nossa causa de mudança de paradigma. O paradigma será mudado a partir do peso de evidências em favor dele. Atualmente, o que nos ajuda muito é que temos aplicações práticas na área da medicina, da psicologia… Infelizmente, eu acho que você não consultou quantas vezes a minha obra é citada em trabalhos de psicólogos, de profissionais da saúde e de outros, ainda, não-pertencentes às ciências puras. Sim, é verdade que aqueles das ciências puras, os físicos, os químicos e até mesmo os biólogos, preferem oferecer a chamada `negligência benigna´. Eles não se envolvem com essa questão, pois fazendo isso acabarão dando maior publicidade para mim, algo considerado por eles prejudicial à sua causa. Então, deixá-los viver do modo deles e nós do nosso é agora a melhor abordagem.’


Mudanças e preferência popular


Em outras palavras, a explicação de Goswami é que não existe discussão na comunidade científica em torno das idéias dele porque existe uma conspiração para evitar dar-lhe maior publicidade. Por mais que ele mereça ter seus livros incluídos em antibibliografias, como eu disse acima em tom de brincadeira, o melhor mesmo é forçá-lo ao confronto de idéias. No entanto, mesmo para isso teremos dificuldade, dada a crescente apatia da comunidade científica em geral para tratar de temas polêmicos. Enquanto isso, os espaços midiáticos vão sendo ocupados.


Em meio à sua decadência e à ascensão da burguesia mercantil, a Igreja Católica foi duramente abalada com a revolução gutenberguiana. Não sei se o capitalismo está em decadência, mas um de seus principais suportes ideológicos, o pensamento laico, vem sendo desprestigiado há algum tempo. Nesse contexto, em que algumas questões científicas já chegaram aos tribunais sem serem discutidas em outras instâncias, há bons motivos para pensar na possibilidade de a revolução da internet trazer surpresas. Já pensaram em mudanças científicas baseadas na preferência popular?

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Jornalista especializado em ciência e meio ambiente