Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Contardo Calligaris, sobre ‘A Paixão de Cristo’

Contardo Calligaris

 

‘A Paixão de Cristo’, copyright Folha de S. Paulo, 18/03/04

 

‘‘A Paixão de Cristo’, de Mel Gibson, estréia amanhã no Brasil.

1) Muitos perguntarão: por que representar a paixão de Cristo com tamanha violência e tanto sangue? O cristianismo não seria mais bem apresentado pelo Cristo da ressurreição e pela mensagem generosa dos Evangelhos?

Ora, em 1521, Lucas Cranach publicou um pequeno livro, ‘Passional Christi und Antichristi’ (Paixão do Cristo e do Anticristo). A gravura em que o anticristo era coroado com muita pompa, como um papa ou um imperador, era contraposta à que representava o Cristo escarnecido e humilhado, com sua coroa de espinhos.

Como milhões de homens e mulheres ocidentais, passei minha infância sob o olhar protetor de dois tipos de imagens: de um lado, os heróis nacionais com faixas, gala, espada e bandeira; do outro, o crucifixo. Cuidado: não era o Cristo sentado à direita de Deus nem o Cristo conversando amavelmente com os apóstolos ou sarando leprosos e ressuscitando mortos. Era o Cristo na cruz. Seu poder era obviamente diferente do poder dos heróis a cavalo: ele parecia se originar no próprio martírio.

Em matéria de religião, prefiro conviver com perguntas que não têm resposta. Mas uma coisa me parece certa: sem o mistério (absurdo, como dizia Tertuliano) de um deus que teria aceitado viver um suplício horrível para redimir os pecados dos homens, o cristianismo não passaria de uma ideologia social-democrata. Ótimo e simpático, mas não precisa do Cristo para isso.

No filme de Mel Gibson, a paixão acontece na presença constante do demônio, que é o único derrotado. Se o Cristo desistisse de seu martírio e recorresse a uma mágica divina para evitar o sofrimento, o demônio triunfaria. E prevaleceria, em nossa cultura, uma única idéia do poder, a idéia da qual gosta o maligno e segundo a qual o poder está com o mais forte.

2) Vários críticos acusam Mel Gibson de ser hollywoodiano. Dizem que, na ‘Paixão de Cristo’, o sangue escorre como num filme de ação de segundo escalão.

É uma inversão. O Cristo crucificado é a imagem que mais foi reproduzida e divulgada no segundo milênio do Ocidente. Não é estranho, por conseqüência, que um tema básico de nossas narrativas populares seja o seguinte: um homem é massacrado, surrado, deixado numa poça de sangue, mas ele é um justo e voltará um dia para ajustar as contas.

A paixão de Cristo não precisa do sangue falso de Hollywood, mas há muito sangue de Hollywood que seria impensável sem nosso fascínio pela paixão de Cristo. O próprio Mel Gibson, como ator, já foi ‘crucificado’ mais de uma vez.

3) Ao achar que a violência do filme é excessiva, somos fiéis à modernidade. A partir da segunda metade do século 15, somem das praças da Europa as brutais encenações teatrais do suplício de Cristo, e as imagens da paixão na arte sagrada se tornam menos cruentas. O historiador suíço Valentin Groebner, num livro recente e admirável (‘Defaced, the Visual Culture of Violence in the Late Middle Ages’; Desfigurado, a Cultura Visual da Violência na Idade Média Tardia, Zone Books), nota que, a partir de 1525, as representações de Jesus crucificado, em vez de mostrar a agonia de um torturado, começam a apresentar ‘um redentor delicadamente suspenso na cruz’.

Há exceções: o barroco brasileiro produziu, por exemplo, algumas estátuas do corpo doloroso de Cristo que não ficam para trás de nenhum Mel Gibson. Mas, no conjunto, o Renascimento do século 16 (e a gente com ele) prefere esquecer pragas e dores para exaltar as potencialidades do homem. O que era o crucifixo para um sujeito medieval? Uma consolação? Um exemplo de resignação? Pode ser. Mas, quando os pestilentos, os supliciados em praça pública, os famintos e os destroçados das mil guerras olhavam para o crucifixo, eles deviam encontrar um curioso espelho. O que havia de mais real em seus corpos, o sofrimento e a fragilidade mortal, fora também o lote de Deus. Talvez, com isso, eles reconhecessem que sua desgraça não os excluía da humanidade.

A modernidade continua pendurando crucifixos nas paredes, mas prefere esquecer pudicamente a paixão representada. Se precisássemos da imagem de um corpo comum, seria mais um ginasta que um crucificado.

Mel Gibson nos lembra de algo incômodo. E também útil: não há como entender o que é um homem moderno sem considerar que, para muitos, desde a infância, a imagem de um jovem torturado e agonizante foi o primeiro símbolo (paradoxal) de grandeza e o primeiro ideal de um corpo masculino amável e venerável.

Notas

1) Alguns acham que ‘A Paixão’ é um filme anti-semita. A obra confirmaria o antigo argumento segundo o qual ‘os judeus’ quiseram supliciar o Cristo (argumento que, de fato, a Igreja Católica usou durante séculos para supliciar judeus). Ora, no conto evangélico como no filme, Caifás e o ‘establishment’ judaico de Jerusalém (não ‘os judeus’) pediram a crucifixão de um profeta de sucesso, que minava o poder religioso instituído. Esse profeta era Cristo, um judeu.

2) De fato, Tertuliano (terceiro século de nossa era), no ‘De Carne Christi’, não disse ‘credo quia absurdum’ (creio porque é absurdo), mas ‘credibile est, quia ineptum est’: é acreditável porque é inepto, ou seja, porque é uma história fraca.

Aliás, a paixão serve para isto: para que acreditemos nos fracos.’

Luiz Carlos Merten

 

‘O Jesus Cristo nada superstar de Mel Gibson’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/03/04

 

‘Há 15 anos, os católicos sentiram-se ultrajados com o Jesus humano de A Última Tentação de Cristo, de Martin Scorsese. Agora, são os judeus que reclamam do anti-semitismo de Mel Gibson em A Paixão de Cristo. Os gays também acusam o diretor de homófobo – todo mal em seu filme, do próprio Diabo a Herodes, remete à androginia e ao homossexualismo. O mais curioso é que cada grupo faz seu protesto em separado. Se o objetivo de Gibson era provocar polêmica, ele conseguiu.

A Paixão de Cristo estréia hoje nos cinemas brasileiros. Serão mais de 500 cópias, um megalançamento justificado pela discussão que o filme provoca e pelo estouro de bilheteria nos EUA, onde A Paixão de Cristo rendeu, só no primeiro dia, quase todo o custo da produção. Nada mal para um filme que os distribuidores, no princípio, rejeitaram. Um filme sobre Cristo, falado em aramaico. Mel Gibson devia estar louco, diziam. Você pode não gostar de A Paixão de Cristo. Gostar ou não gostar, é o de menos. O importante é não se subtrair à experiência rara que é ver este filme.

Os detratores vão dizer que o que impressiona é a sangueira. Nunca houve filme mais violento sobre Cristo. Nunca houve outro filme no qual a carne humana é tão flagelada. O Cristo de Mel Gibson é fatiado em cena. Quando o corpo é destruído desta maneira, só resta a elevação do espírito. Parece simples, mas não é – e, de tudo o que A Paixão de Cristo mostra, o que talvez permaneça em definitivo com o espectador seja o olho de Jesus.

Nicholas Ray, que fez O Rei dos Reis, com Jeffrey Hunter (leia abaixo), definia o cinema como ‘a melodia do olhar’. Mel Gibson deve concordar com ele. Gibson constrói sua Paixão num fascinante e, às vezes, agoniado jogo de olhares, mas, mais do que o olhar, o olho é o emblema do filme.

Você pode não ter notado antes, mas Jim Caviezel, que faz o Cristo, tem um olho de boi. No filme, um olho é estourado no começo e fica só o outro – um olho de bicho levado ao matadouro, que revira nas órbitas e passa a agonia do animal ferido. E existem as conexões – o olhar de Maria, o de Maria Madalena, o de Judas, todos conectados com o do Cristo. Remetem a outro detalhe que só fica claro agora. A produtora de Mel Gibson chama-se Icon. O ícone que a representa é o olho de uma representação bíblica. O cinema como olho, o olho como testemunho.

Verdade – Gibson fez da sua Paixão uma tragédia sofocliana. O tema do filme é o encobrimento e a descoberta da verdade do Criador. Pôncio Pilatos e a mulher – Cláudia – têm um diálogo revelador sobre a verdade. Discutem se a verdade pode ser reconhecida, e como. O Cristo de Gibson é a Verdade, mas quem a reconhece? Na primeira cena, no Jardim das Oliveiras, ele próprio duvida. É um Cristo que antecipa o sacrifício e desmorona. Não por acaso, ele pede aos discípulos que não contem que o viram assim, fragilizado. Esse começo avança por sofismas. O Cristo pede ao Pai que afaste dele esse cálice, mas também pede que seja cumprida Sua vontade, se assim for. O pai desnaturado é um personagem recorrente no cinema de Mel Gibson. O pai é ausente em O Homem sem Rosto, é um rei despótico (e também sem rosto) em Coração Valente. O próprio Cristo fatiado vira agora um homem sem rosto, só olho.

Você pode achar que o filme é anti-semita, mas os guardas de Caifás não são menos brutais que os centuriões romanos. E há sempre um elo que se rompe na cadeia – o guarda cuja orelha decepada é recomposta no começo, o sacerdote que tenta deter Caifás, o soldado romano que crava a lança no peito do Cristo morto e é borrifado pelo sangue do Justo, convertendo-se, ali mesmo, sem a necessidade de uma palavra. O arrependimento é uma constante no filme.

Caifás transmite no olhar o horror da consciência do que fez. Sua troca de olhares com Maria, quando ela o acusa silenciosamente, só com o olhar, é uma coisa muito forte. O templo que desmorona fornece ao sacerdote a suprema consciência desse mal que os homens exercem, por ambição ou o quê.

Talvez A Paixão de Cristo seja mesmo blasfemo. A principal acusação é contra o Pai – e a lágrima que ele verte, no desfecho, por mais brega que seja, vira um signo de arrependimento. Deus celebrou por meio do Filho sua aliança com os homens. Um Deus culpado não é a menor das perturbações que A Paixão de Cristo pode causar. Todos são muitos humanos – o Cristo, os discípulos que o negam, Caifás, Pilatos. Só o gay, aquele Herodes ridicularizado e cruel, não revela sua substância humana. Mel Gibson permanece homófobo. Tudo isso se presta à discussão, mas Gibson, como encenador, dá um salto imenso.

A cena de Maria correndo para socorrer o menino Jesus que caiu se contrapõe à de Maria que vê o filho tombar, sob o peso da cruz. O menino ela conseguiu acarinhar. O Cordeiro de Deus não consegue tocar. E o que significa a insanidade de Maria e Maria Madalena tentando secar o sangue de Cristo, no pátio onde ele foi flagelado?

Gibson pediu a seu fotógrafo, Caleb Deschanel, que buscasse inspiração nas sombras de Caravaggio, mas realiza um percurso muito interessante. Parte do genial renascentista que usou o homem como modelo e rejeitou a idealização das figuras, proposta pela Igreja do seu tempo. Caravaggio retratou o isolamento humano ante o destino e esse é o sentido da luz (e da sombra) no filme. De Caravaggio, Gibson e Deschanel fazem um arco para chegar ao expressionismo. O Cristo que inicia o calvário escancara a boca e lança um grito silencioso – como o do quadro de Edward Munch. E os soldados são sempre representações grotescas, como nos quadros de Bruegel. Tudo isso está no filme, para desgosto dos que acham que o durão da série Máquina Mortífera não tem estofo intelectual para pensar essas coisas. O próprio Gibson diz, o que pode ser uma ironia, que foi iluminado pelo Espírito Santo.

Mas a verdade é que o ponto possivelmente mais interessante dessa polêmica está sendo minimizado. O Cristo antiespetacular de Mel Gibson – ao carregar a cruz, ele lembra a entrada triunfal em Jerusalém, mas olha sempre para baixo, para o inferno dos homens – traz uma linguagem de amor. Qual é a recompensa de amar os que nos amam? Difícil, e necessário, é amar os inimigos. A guerra, Pilatos faz sua reflexão em voz alta, só tem perdedores.

A retórica é anti-Bush, total. O fato de o filme estar fazendo esse sucesso no mercado americano pode ser um sinal de saturação do poder que só cria tragédia e se volta contra os que o exercem.’

Antonio Gonçalves Filho

 

‘Um Messias selvagem, sem espaço para pregações’, copyright O Estado de S. Paulo, 19/03/04

 

‘A iniciativa de realizar mais um filme sobre a maior história da cultura ocidental – e ainda falado em aramaico e latim – provocou há um ano a suspeita de que Mel Gibson talvez estivesse enlouquecendo. Vendo o resultado, que estréia hoje, há razões suficientes para arriscar um diagnóstico: paranóia, homofobia crônica e megalomania. Num surto psicótico, Gibson chegou a dizer que seu A Paixão de Cristo foi dirigido pelo Espírito Santo. Não foi. Falta ao filme o registro poético e sagrado que faz do texto evangélico um manifesto resistente à profanação das instituições e do poder.

O cineasta representa uma corrente ortodoxa da Igreja. É um católico integrista, que não aceita a celebração da missa na língua dos fiéis – Gibson defende que ela tem de ser em latim, contrariando a orientação litúrgica introduzida pelo Concílio Vaticano II. Sempre que a missa termina, ele e outros fiéis integristas continuam rezando pela conversão dos judeus, como o faziam todos os católicos antes que o papa João XXIII excluísse a oração final para não alimentar a paranóia anti-semita.

Registra-se, portanto, um retrocesso – e não somente religioso e político, mas artístico, considerando que o Messias de Gibson não chega aos pés do Cristo de Pasolini ou mesmo de Scorsese. Pasolini, por trás de seu ateísmo, escondia um criptocristão, um homem que tendia à contemplação mística da natureza, como ele mesmo assumia. Concordando com Jung, o cineasta italiano dizia que, para um ocidental, é difícil não ser cristianizado. Morreu sem acreditar na divindade do Cristo, o que não o impediu de realizar um filme profundamente cristão, testemunho sincero de sua nostalgia de um mundo mítico, onde tudo era sagrado.

Scorsese, tampouco um militante religioso, conseguiu fazer de A Última Tentação de Cristo um filme mais equilibrado que o descontrolado A Paixão de Cristo, acusado, com justa razão, de ser uma espécie de Massacre da Serra Elétrica na Palestina. Pasolini, como marxista, poderia ter transformado Cristo num agitador político, mas não o fez. A seqüência final de O Evangelho Segundo São Mateus é uma prova vigorosa de sua honestidade: o Messias caminha em direção ao público e promete aos espectadores que estará com eles até o fim dos tempos. Com todos eles. Além de ecumênico, é um dos momentos mais tocantes e grandiosos da história do cinema. Não exclui ninguém.

Da mesma forma, a imagem do Cristo de Scorsese que desce da cruz – e assume a vida comunitária como sendo outra cruz – resiste a qualquer espécie de profanação. O escândalo é que essa cruz pertence a todos. Nenhum povo é eleito. Já Mel Gibson é francamente excludente, ao transformar judeus em estereótipos e ignorar o contexto histórico em que se moviam. O supremo sacerdote Caifás e o rei Herodes parecem ter saído de uma chanchada da Atlântida, e não de uma Palestina ocupada pelos romanos, combatidos por várias facções políticas.

Gibson dá mais atenção ao calvário de Cristo que à pregação do Messias, contrariando a orientação teológica da Igreja. Seu Jesus é acorrentado, espancado e açoitado mais de dois terços do filme. Ouve-se pouco sua voz.

Numa rara seqüência pacífica, Jesus aparece brincando com a mãe ao criar, como marceneiro, uma mesa para um homem rico. É uma cena artificial, que destoa do resto. O cineasta está mais interessado em explorar a violência.

Justifica-a ao dizer que quer transmitir ao público a dimensão do martírio do Cristo para nos redimir. Não precisa. Já carregamos culpa suficiente. Seu filme é apenas mais um fardo.’