Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Jornalismo chapa-branca travestido de popular

Em recente artigo veiculado neste Observatório (edição 362, de 3/1/2006) [ver remissão abaixo] falei do atrelamento de grande parte da mídia de Cuiabá e Várzea Grande ao esquema do transporte, que envolve banditismo político e administrativo, mas cometi um grave erro. Esqueci-me de mencionar o jornal diário Página Única, um dos que estão na linha de frente em relação à defesa da prefeitura de Cuiabá na situação em tela.

O Página Única é um jornal de quatro páginas (duas coloridas e duas em branco e preto), distribuído gratuitamente nos fins de tarde em vários pontos estratégicos da cidade. Os pontos de ônibus são alguns deles. As matérias são curtas. Resumos. Algumas das características que fazem do impresso um veículo de comunicação popular, aparentemente.

No entanto, quando a matéria é sobre transporte coletivo, assunto realmente popular, o Página Única tem se demonstrado bem chapa-branca, pelegão. Tem valorizado sobremaneira o discurso oficioso da prefeitura. E a edição da sexta-feira 13 foi mais uma demonstração disso. A coluna ‘Sem censura’, publicada na capa, foi toda dedicada à defesa do aumento do preço da passagem de ônibus, bandeira encampada conjunta e oficialmente pela administração municipal e pelos empresários do setor. Nada popular.

Nas cinco notas da coluna, o intento maior foi o de desqualificar a CPI do Transporte da Câmara de Vereadores da capital, que no dia 27 de dezembro de 2005 revelou que a tarifa dos coletivos estava superfaturada em 100% e deveria custar R$ 0,81 (hoje vale R$ 1,60), que as empresas deviam mais de R$ 138 milhões em multas, taxas de outorga e impostos, que 74% da frota de ônibus estão sucateados (287 dos 389 com idade acima da permitida, que é de 4,5 anos). A CPI também defendeu a imediata cassação das concessões das firmas pelos diversos desrespeitos ao contrato de concessão com o poder público.

Fixando-se na questão da tarifa, o Página Única disse que o valor de R$ 0,81 era demagogia pura, no entanto não apontou nenhum elemento técnico que sustentasse a qualificação. O máximo que fez, como têm feito os empresários do setor, o secretário de Transportes (Emanuel Pinheiro) e o prefeito da capital, Wilson Santos, foi dizer que nenhuma cidade do país cobra a citada tarifa.

Argumento jornalístico fraco. Por que não se perguntar, também, se as demais cidades não estão com preços superfaturados, uma vez que o sistema de transporte coletivo é um dos mais visados quanto à prática de espúrias transações político-econômicas? O Caso Santo André é exemplo nacional. Muitas vezes essas espúrias transações se iniciam durante as campanhas eleitorais.

O Página Única citou na coluna uma capital do Centro-Oeste, a saber, Campo Grande, cuja passagem custa R$ 1,90, com o intuito de dizer aos leitores: ‘Vejam só como nós, aqui em Cuiabá, devemos ficar felizes, pois temos ônibus a R$ 1,60!’. Mas o Página Única fez questão de não mencionar Goiânia, onde dezenas de linhas cobram a tarifa deR$ 1,80, contudo as linhas-tronco custam R$ 0,45. Exatamente isso: R$ 0,45.

Jornalismo fraco e nada militante, nada popular, esse o do Página Única. E para mostrar que é isso mesmo, o impresso ressaltou ainda que a CPI deveria acabar com o benefício do passe livre, insinuando um ataque ao setor estudantil, agindo, assim, de forma preconceituosa e demonstrando deliberada falta de interesse em compreender e ou de debater o que seja política pública.

Na verdade, o Página Única, ao fazer isso, tenta criar uma falsa polêmica, pois não leva em consideração que quem paga o passe livre é o próprio pai ou a própria mãe do estudante. E que o benefício auxilia no orçamento da casa, visto que a família pode canalizar o dinheiro do passe do jovem ou da criança para comprar comida, roupa, remédio.

E o Página Única faz questão de não se aprofundar no superfaturamento da tarifa, que vem sendo apontada não é de agora, não, mas desde 2001, por meio dos estudos do Sindicato dos Contabilistas de Mato Grosso. O impresso, oficioso no caso do transporte, também não fala do lucro abusivo dos empresários, de 12%, embutido na tarifa superfaturada de R$ 1,60. Da mesma forma, o pseudo-senso crítico do Página Única quanto ao mencionado tema passa longe quando é para falar da postura da prefeitura em também defender o aumento da passagem de ônibus.

E não é difícil entender. Basta olhar o expediente do jornal. Lá está como editor o jornalista João Negrão, que trabalhou ativamente em 2004 na equipe de campanha do atual prefeito Wilson Santos. Também está lá, como diretor-geral, o jornalista Mário Marques. Segundo a coluna ‘Cuiabá Urgente’ do jornal Diário de Cuiabá, edição de 28 de dezembro de 2005, Mário é amigo há décadas de Wilson Santos, ‘uma espécie de consultor voluntário’ dele, ‘um dos poucos que têm acesso direto ao prefeito e não o poupa de críticas’.

Tá explicado por que o Página Única defende tão pouco a população no caso do transporte.

É bom que se registre que as críticas contidas neste artigo não dizem respeito às trabalhadoras Najar Tubino e Andréia Cruz, que são repórteres do Página Única, nem aos trabalhadores Guilherme Filho e Ricard Cristian, respectivamente fotógrafo e editor de arte do impresso.

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Jornalista em Cuiabá e militante do Comitê de Luta pelo Transporte Público