Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O professor não é coitado; coitadas, são as estatísticas

Na edição 2038 da revista Veja, o economista Gustavo Ioschpe escreve artigo com intuito polêmico. O título antecipa a conclusão de Gustavo: o professor não é um coitado. A sua argumentação, baseada na ‘frieza dos dados’, procura desmistificar esse nosso professor-herói, que heroísmos precisaria fazer se enfrentasse – Ioschpe provará que isso tudo é ilusão – graves dificuldades e problemas no seu dia-a-dia profissional.

O texto merece ser lido com realismo, ou passaremos a pensar que a imprensa brasileira, nos últimos vinte anos, movida pelo mais baixo sensacionalismo, trouxe à luz algumas exceções terríveis (um ou outro caso de violência nas escolas, um ou outro caso de salas superlotadas), exceções apenas, pois a verdadeira situação educacional seria outra. Situação, de acordo com o economista, até favorável…

O que realmente atrapalha, segundo o articulista, são as reivindicações do professorado. Reivindicar a recuperação da dignidade do magistério e melhores condições de trabalho, entre outras providências, seria uma desculpa para adiar a discussão que interessa: os modos concretos de elevar a qualidade da educação.

Primeiro indício: o fato de muitas pessoas quererem atuar no magistério. O magistério no Brasil seria uma profissão tão ou mais almejada do que Direito, por exemplo. A última Sinopse Estatística do Ensino Superior (2005) revelava a existência de 904.000 alunos matriculados em cursos da área de educação, ou o equivalente a 20% do total de alunos do país. Área de estudo tão popular (somos hoje cerca de três milhões de professores) daria a entender que se trata de carreira promissora.

‘Masoquistas’ e ‘desinformados’

As estatísticas, os números – todos sabemos que estatística é como biquíni, parece mostrar tudo, mas esconde o essencial – não justificam que o articulista pergunte, ironicamente, se tantas pessoas optam pela carreira por serem masoquistas ou desinformadas.

Algumas ponderações são oportunas:

1. Muitos advogados, e outros profissionais liberais, além de atuarem em suas carreiras de origem, tornam-se professores no ensino superior, compondo aquela cifra de três milhões. Para eles, atuar no magistério não é o ganha-pão. Não são masoquistas ou desinformados. E também não fizeram curso de pedagogia…

2. Também não se formaram em pedagogia os chamados ‘professores leigos’, que lecionam para alunos das primeiras séries do ensino fundamental. Representam algo em torno de 10% do total de docentes (300 mil heróis…), mas não concluíram ou sequer cursaram o ensino médio. Vivem sobretudo nas localidades mais carentes. Não são masoquistas ou desinformados. São brasileiros fazendo o que podem.

3. Dentre os alunos que ingressam em cursos da área de educação, a imensa maioria é do sexo feminino (92,4%, segundo o INEP, em pesquisa publicada em 2002). Essas professoras, na maior parte das vezes, atuam no ensino fundamental. A feminização do magistério tem sido muito estudada, mas o que podemos dizer, no contexto desta discussão, é que os homens, em busca de melhores salários, voltam-se para outras profissões, sim. O salário da esposa professora contribui para a renda familiar, sem dúvida, somando-se ao salário do marido. As mulheres não são masoquistas ou desinformadas por optarem pela profissão docente. Querem ser professoras porque querem ser professoras.

4. Por outro lado, faltam professores no Brasil. Por que o articulista não trouxe esse dado igualmente ‘frio’? Hoje, só no ensino médio, temos um déficit de 250 mil professores. (Não parece que faltem advogados no mercado…) Estudo da Unesco situa o Brasil entre as nações com a pior relação professor-aluno no ensino básico.

Noites são tempo de trabalho

Para Gustavo Ioschpe, muitos querem ser professores porque, no fundo, conhecem a verdade que a mídia oculta: o magistério não está tão desvalorizado assim, e não é trabalho tão trabalhoso.

Segundo a Unesco, 58,5% trabalham em uma única escola; 32,2% fazem dupla jornada; 9,3% trabalham em três escolas ou mais. Carga horária: 31% trabalham entre 1 e 20 horas em sala de aula por semana; 54% ficam entre 21 e 40 horas; 15% trabalham mais de 40 horas semanais. Com relação ao trabalho que os professores realizam fora da sala de aula (correção de tarefas, preparação de aulas etc.), Gustavo argumenta que todos os outros profissionais liberais enfrentam essa realidade: ‘Qual o médico que não estuda fora do consultório ou o advogado que não pesquisa a legislação nos horários fora do escritório?’

De novo, vale a pena colocar em dúvida as certezas do articulista. Que provavelmente desconhece a realidade concreta do professor, e por isso se apega aos números ‘frios’, longe do cotidiano escolar.

Um professor que trabalhe 30 horas em sala de aula por semana, expõe-se seis horas por dia a um número variado de alunos. Digamos que esse professor trabalhe em duas escolas diferentes, de ensino médio, para um total de oito classes, cada classe com cerca de 35 alunos. Ao longo dos meses, acompanhará 280 adolescentes. São 280 pessoas com qualidades e circunstâncias que, em tese, o professor deve conhecer para que o processo educacional corra bem. São 280 adolescentes que precisam ser motivados, acompanhados, avaliados. Quem leva a sério essa tarefa (planejamento, aulas interessantes, avaliação justa etc.) sabe que as noites, os sábados e os domingos tornam-se tempo de trabalho, excedendo em muito aquelas 30 horas semanais.

Mudanças positivas

O número de professores estressados e com problemas de voz é significativo. As causas desses transtornos estão no ‘clima’ da sala de aula, em escolas públicas ou privadas, no ensino fundamental ou superior. A Unesco (2002), ao pesquisar o perfil do professor brasileiro, detectou que 54,8% têm dificuldades para manter a disciplina em sala de aula; 51,9% enfrentam diferentes problemas por causa das características sociais dos alunos; e 44,8% consideram difícil a relação com os pais dos alunos, em não poucos casos porque esses pais estão ausentes!

Para citar estudo recente, a pesquisadora Gisele Levy (UERJ) divulgou um resultado preocupante, que reflete a realidade de muitas cidades brasileiras: cerca de 70% dos professores de cinco escolas públicas em Niterói sofrem da chamada síndrome de Burnout, que se traduz em exaustão emocional, despersonalização e falta de realização.

Outro mito seria imaginar as escolas brasileiras sem condições mínimas de infra-estrutura. Escolas de lona ou de lata seriam casos raros, aberrações. ‘Mais de 90% de nossas escolas de ensino fundamental têm banheiro, água encanada e esgoto, e 87% contam com eletricidade. Quase um terço tem quadra esportiva, e 42% dispõem de computadores.’

De fato, com FHC e Lula houve mudanças positivas, como demonstra o

trabalho A infra-estrutura das escolas brasileiras de ensino fundamental: um estudo com base nos censos escolares de 1997 a 2005, de autoria de Sergei Soares e Natália Sátyro (Ipea).

Violência nas escolas

Até 1997, porém, 41% das nossas escolas não tinham acesso à energia, 13% não tinham água, 43% careciam de biblioteca ou sala de leitura, 63% não dispunham de computadores. E as ‘escolas de lata’ existiram (terão desaparecido mesmo?) e foram até defendidas, em 2005, pela Secretaria de Educação de São Paulo, em plena gestão Alckmin: ‘Têm bom isolamento térmico, ventilação e iluminação basicamente idênticas às das escolas de alvenaria…’

Por outro lado, os resultados referentes à aprendizagem continuam estáveis ou em queda. As melhorias materiais ajudam, tornam a escola um lugar digno, mas sozinhas, pouco resolvem. O investimento mais urgente é na formação profissional e cultural dos professores.

E de que adianta a escola ter luz elétrica e computadores se a violência estiver instalada ali? Onde deveríamos ensinar e aprender, entre outros valores, os da cidadania, da convivência e do respeito mútuo, acaba por imperar o medo.

Neste ponto, Ioschpe evitou procurar com diligência a ‘frieza’ dos dados. Pois são muitos e chegam a gelar a alma. Dentro das escolas há vandalismo, violência física entre alunos, ameaças a professores e funcionários, consumo e tráfico de drogas. Em 1999, 82% de 520 escolas estaduais de São Paulo sofreram algum tipo de violência, conforme o estudo Violência nas escolas, do Sindicato de Especialistas em Educação do Magistério Oficial do Estado de São Paulo. Depredações a móveis, lâmpadas, vidros e outros objetos aconteceram em 72% das escolas; brigas (62%), pichações (53%) e casos de explosões de bombas (48%) em banheiros ou telhados da escola.

Autênticas ‘regalias’

Pesquisa da Unesco (2002/3) mostra que existe violência em 83,4% das escolas brasileiras. Os furtos ocorrem em 69,4% delas. O artigo de Ioschpe traz uma foto cuja legenda (‘Patrulha na porta de uma escola em São Paulo’) foi escrita para gerar sensação de alívio: ‘Ufa, agora estamos a salvo!’ Que a patrulha seja necessária demonstra que o problema da violência é real, e grave.

E há ainda sutilezas que as estatísticas, coitadas, não alcançam. Em pesquisas acadêmicas menos fascinadas pelos números e mais atentas à complexidade do real, percebe-se que o fato de alunos e professores verem armas dentro da escola não leva necessariamente à consideração de que exista violência no espaço escolar. É tão ‘normal’, é tão ‘natural’ ver canivetes, facas e até revólveres nas mãos de alunos que perde força a associação entre armas e violência.

O articulista refere-se, então, ao salário do professor. Admite que ‘o professor brasileiro tem um salário absoluto baixo’ porque, afinal, é brasileiro, como brasileiros e com baixos salários são os nossos médicos, carteiros, bancários, jornalistas etc. Mais ainda: o salário dos professores é até melhor, em comparação com o de outras categorias, quando se leva em conta diferença de férias e aposentadoria (no caso dos servidores públicos), autênticas ‘regalias’. E em comparação com o rendimento dos professores da OCDE e da América do Sul, também o professor brasileiro estaria em situação vantajosa.

O salário médio

No entanto, esses não são os únicos dados e raciocínios em jogo.

Para já, o salário do professor não está destinado apenas aos itens da sobrevivência de um ‘cidadão comum’. Além da alimentação, habitação, vestuário, saúde, transporte, estudo dos filhos, lazer etc., o professor precisa investir numa vida pessoal de estudo contínuo e de contínua inserção na cultura. É preciso adquirir livros, assinar revistas, jornais (e dispor de tempo para lê-los), participar de cursos e seminários, ir ao cinema, ao teatro, viajar, ter um bom computador e estar conectado à internet.

Se há aumentos salariais que garantam a cesta básica, ótimo, mas o impacto desses aumentos no aperfeiçoamento humano, intelectual e profissional do professor será mínimo. O aumento salarial que um professor consciente exige terá esses dois objetivos: primeiramente, sobreviver, o que se agradece, mas também poder viver como profissional do conhecimento e tudo o que isso implica.

Analisa-se mal a complexa questão da remuneração docente se não se pensa nas diferenças regionais e nas diferenças dentro da própria categoria. Não é incomum encontrarmos em Recife, para mencionar capital importante do Nordeste, um professor trabalhando em dois colégios privados de ensino médio, com formação em nível superior, com salário de R$ 1.000. Conseguirá sobreviver, mas nem sobreviver talvez consiga o outro professor pernambucano, sem ensino superior, que trabalha em cidade pequena ganhando R$ 1,00 a hora-aula.

Mas quanto recebe o professor brasileiro, afinal? A média nacional gira em torno de R$ 4,00 a hora-aula entre professores sem ensino superior. Os que têm diploma universitário recebem em média R$ 6,00 a hora-aula. O valor da hora-aula não é o mesmo no território nacional. Conforme a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), o piso inicial de um professor estadual com ensino superior oscila entre R$ 4,62 no Piauí, R$ 4,46 no Ceará, e R$ 13,16 no Acre e R$ 12,89 em Roraima.

Dados escolhidos a dedo

Gustavo Ioschpe conclui:

‘A mitificação do nosso professor impede que o vejamos como ele é: um profissional, adulto, consciente de suas decisões e potencialidades, inserido em uma categoria profissional que, como todas as outras, abriga muita gente competente, muita gente incompetente e muitos outros medíocres e que, portanto, deve receber não apenas encorajamento e defesa condescendentes, mas também cobranças e críticas construtivas e avaliações objetivas de seus méritos e falhas. Só assim melhoraremos o desempenho das nossas escolas e daremos um futuro ao país.’

Que entre os docentes haja profissionais competentes, incompetentes ou medíocres é uma daquelas obviedades que nada explica. O parágrafo, na verdade, faz uma acusação: os professores, com a conivência da mídia, alimentam o vitimismo, fingem ser pobres coitados, para que ninguém se lembre de lhes fazer exigências.

Se a avaliação objetiva da atuação docente e a cobrança de resultados são a única forma de melhorar o desempenho da escola, supõe-se que não haja obstáculos ou dificuldades externas. Vivemos, segundo o jovem economista, no melhor dos mundos educacionais. Tudo dependeria de o professor tornar-se mais responsável. Esta imagem de um professor que se queixa de barriga cheia é a que o articulista da Veja nos apresenta e na qual ele parece acreditar piamente, baseado em números e dados estatísticos selecionados a dedo…

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br