Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Para que servem os ombudsmans?

Devo ser um recordista: já tive negado meu direito de resposta ou de apresentar o ‘outro lado’ em revistas como a Veja, jornais como a Folha de S.Paulo, veículos de internet como o JB Online, sites de ultra-direita como o Ternuma etc. Nem me lembro mais de quantas vezes as boas práticas jornalísticas foram olimpicamente ignoradas ou engenhosamente contornadas em episódios no qual eu estava envolvido.


E o pior é que os ombudsmans pouco ou nada resolvem. Um deles chegou a me confessar que não tem o poder de modificar as decisões da Redação, só podendo mesmo dialogar com os editores para tentar convencê-los do erro cometido. Virou muro de lamentações para os leitores indignados, tanto quanto as seções de cartas, que jamais repõem realmente o prejuízo causado por um texto informativo ou opinativo errôneo.


A lista acaba de ser engrossada pela ombudsman do UOL, a quem enderecei um e-mail na quinta-feira (4/12), alertando-a para o erro grosseiro cometido na notícia ‘Itália aprova decisão do Conare sobre ex-membro das Brigadas Vermelhas‘.


Ocorre que aquele a quem o Comitê Nacional para os Refugiados negou o refúgio humanitário, Cesare Battisti, jamais militou nas Brigadas Vermelhas nem foi disto acusado.


Ora, dos aproximadamente 500 grupos armados de esquerda que pulularam na Itália durante a década de 1970, apenas um ficou com imagem negativa nitidamente impressa na memória dos cidadãos brasileiros: exatamente as Brigadas Vermelhas, por conta do chocante e inadmissível assassinato de Aldo Moro. Encontrei por aqui, inclusive, dois filmes sobre tal episódio, um lançado em VHS, outro exibido na TV a cabo (pode haver mais).


Então, ao apresentar o escritor italiano Cesare Battisti como membro das BV, e não do seu verdadeiro e desconhecido agrupamento (PAC – Proletários Armados para o Comunismo), o UOL Notícias causou um flagrante dano à sua imagem, neste momento em que precisa desesperadamente do apoio da opinião pública brasileira.


Cego e surdo


Expliquei o caso à ombudsman Mara Gama e pleiteei que, ao invés de uma mera nota de ‘erramos’, ela oferecesse espaço para a apresentação do ‘outro lado’, mediante a publicação de meu artigo ‘Ministro Tarso Genro: salve o companheiro Cesare Battisti!‘.


Nem uma coisa, nem outra. Aquela notícia estapafúrdia desde o título foi a versão com a qual os leitores do UOL tiveram de se contentar. E a pergunta que não quer calar é: para que servem, afinal, os ombudsmans?


De resto, toda a grande imprensa foi muito mal na cobertura desse episódio, minimizando a possível quebra de uma tradição que sempre enobreceu o Brasil: a de oferecer refúgio para os perseguidos de todas as tendências e quadrantes.


Até Ronald Biggs, o assaltante do trem pagador britânico, foi aqui acolhido. Cesare Battisti, condenado em circunstâncias extremamente suspeitas e que durante longo tempo foi deixado em paz na França (só voltando a ser perseguido após a posse de Berlusconi), será menos digno da hospitalidade brasileira do que Biggs?


Vale a pena recapitular o caso, para que se possa avaliar se é tão irrelevante quanto o julgam os editores da nossa grande imprensa.


Com vinte e poucos anos, Cesare Battisti pertenceu àquele grupelho de esquerda radical na Itália, o tal de PAC. É o que relatou em carta ao Conare (Comitê Nacional para os Refugiados, vinculado a Ministério da Justiça), o qual permaneceu cego e surdo ao seu apelo desesperado.




[‘Fui membro do PAC, mas nunca pratiquei atos de violência… A verdade é que eu já havia publicamente renunciado à luta armada quando da morte de Aldo Moro. Tão logo percebi o caminho pelo qual a esquerda radical italiana poderia estar indo, fui radicalmente contra e cheguei mesmo a dizer a meus companheiros minha discordância.’]


Aberrações jurídicas


Havia uma imensa frustração entre os idealistas que tentaram e não conseguiram mudar o mundo, em 1968 e anos subseqüentes.


Nos países prósperos da Europa, parecia mesmo que, como o filósofo Herbert Marcuse escrevera, a combinação de uma situação de conforto material com a atuação atordoante dos meios de comunicação de massa fechara totalmente as brechas através dos quais os homens poderiam chegar ao pensamento crítico.


Então, na segunda metade da década de 1970, uns poucos tentaram abrir novas brechas com dinamite, cometendo um terrível e trágico erro histórico.


A sofreguidão, entretanto, é uma tendência avassaladora no mundo moderno. Muito mais entre os jovens. E mais ainda entre os idealistas, que exasperam-se por ter uma visão muito nítida das mazelas do seu tempo e de como poderiam ser erradicadas, mas se chocam com a indiferença e o egoísmo da maioria bovinizada.


Battisti, jovem e idealista, acreditou que devesse trilhar um desses atalhos para a transformação da sociedade, já que a estrada principal estava bloqueada. Pagou caríssimo por isto.


Depois que as Brigadas Vermelhas executaram Aldo Moro, criou-se um estado de ânimo fascistóide na Itália. Semelhante, por exemplo, aos que levaram os EUA a lincharem pelas vias legais tanto Sacco e Vanzetti quanto o casal Rosenberg, cujas inocências saltavam aos olhos e clamavam aos céus.


Foi em processo deste tipo, no qual se registraram verdadeiras aberrações jurídicas em detrimento dos réus, que Cesare Battisti acabou condenado por quatro homicídios cuja autoria ele nega.




[‘Hoje estou cansado. Se volto para a Itália sei que vou morrer. Embora nunca tenha matado ninguém, me acusaram de ter matado policiais com base em um depoimento de um `arrependido´ por delação premiada, que jogou a culpa por muitos atos praticados por ele próprio em mim… Nunca pratiquei atos de violência contra quem quer que seja, e não há testemunha presencial que me acuse de tal prática.’]


Tédio e indiferença


Conseguiu escapar da prisão do seu país e leva existência de judeu errante há quase três décadas, perseguido, acossado, finalmente preso no Brasil, a pedido da Itália.




[‘Fugi para a França, e da França para o México, e do México para a França, e da França para o Brasil. A pé, de ônibus, de avião, de carro, enfim, da forma que fosse possível. Fugi cruzando territórios e fronteiras, que nem sempre eram a minha destinação original. Fugi muitas vezes pensando que nunca mais veria minhas duas filhas, meus amigos, minhas referências de vida.’]


Constituiu família, escreveu livros, reconstruiu-se, bem ao contrário dos que preferiram seguir o rumo insensato até o mais amargo fim, como Carlos, o Chacal.


Hoje, é um homem que, livre, não faria mal a uma mosca. Poderia, finalmente, viver em paz com seus entes queridos e continuar exercendo brilhantemente sua atividade literária.




[‘Vim para o Brasil pois sabia do calor e do acolhimento que aqui receberia. Sabia também que o Brasil acolhe perseguidos políticos. Hoje tenho certeza que reúno condições de aqui trabalhar, de trazer minha família para perto, de estar ao lado de meus amigos que, mesmo vivendo do outro lado do Atlântico, nunca me deixaram só.’]


Que verdadeiro benefício a sociedade tirará do seu encarceramento por 30 anos, ou até a morte? Nenhum. O olho por olho, dente por dente pertence à pré-História da humanidade. Mas, Battisti se debate numa dessas armadilhas da História, sem saída pelos caminhos legais.


O recurso ao ministro da Justiça Tarso Genro parece ser sua última esperança de escapar da extradição e de uma pena de 30 anos, o que provavelmente significará a morte na prisão para um homem de 53 anos que tem levado uma existência de muita dor e sofrimento.


Se Genro não se comover, o Supremo Tribunal Federal, aplicando a letra fria da lei, tende a atender a pretensão italiana. E o presidente Luiz Inácio da Silva dificilmente irá contra a decisão do STF e o precedente aberto por seu próprio governo no caso dos pugilistas cubanos, que agora a direita lhe atira na cara.


Isto é o que está em jogo neste instante, sob o olhar entediado e indiferente dos editores de jornalões e revistonas.

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Jornalista, escritor e ex-preso político, mantém dois blogs: aqui e aqui