Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Paul Krugman

‘‘Todos nós somos capazes de acreditar em coisas que sabemos não serem verdade, e então, quando finalmente se comprova que estávamos errados, pura e simplesmente distorcemos os fatos para indicar que estávamos certos. Intelectualmente, é possível levar esse processo adiante por tempo indefinido: o único problema é que, cedo ou tarde, uma idéia falsa se choca com a realidade sólida, geralmente no campo de batalha.’ O trecho é tirado do ensaio de George Orwell ‘In Front of Your Nose’ (diante de seu nariz), de 1946. Parece ser especialmente relevante agora, quando vemos os destroços da aventura americana no Iraque.

Amanhã um ano terá se passado desde que George W. Bush aterrissou sobre um porta-aviões, anunciando ‘missão cumprida’. Ao longo de todo esse ano, até o aumento da violência verificado neste mês, autoridades do governo nos asseguraram que as coisas estavam indo bem no Iraque. O padrão de vida, disseram, estava melhorando. A resistência consistia só de um punhado de combatentes, auxiliados por alguns estrangeiros -e cada momento de calmaria entre ataques era acompanhado de declarações de que a campanha contra os insurgentes já passara pelo pior.

Quer dizer que mentiram para nós. E o que há de novo? No entanto há mais em jogo aqui do que a credibilidade do governo. A história oficial apresentou um círculo virtuoso de reconstrução nacional, algo que, com o tempo, levaria a um Iraque democrático, aliado aos EUA. Na realidade, parece que estamos diante de um círculo vicioso, no qual a deterioração da situação de segurança solapa a reconstrução. Pode essa situação ainda ser salva?

Mesmo entre os críticos acirrados da política do governo para o Iraque, a posição mais comum é que precisamos concluir o trabalho. Você já ouviu os argumentos: nós compramos a briga, nós quebramos o que havia. Não podemos simplesmente dar o fora. Precisamos continuar até acabar o serviço. Compreendo o apelo desses argumentos, mas a aritmética me preocupa.

Todas as informações às quais pude ter acesso indicam que a situação no Iraque está realmente ruim. Não é bom sinal quando, um ano depois de iniciada uma ocupação, o Exército ocupante manda vir mais tanques.

Os civis ocidentais se refugiaram em encraves armados. As forças americanas têm condições de defender esses encraves e, provavelmente, de manter o fluxo de suprimentos essenciais. Mas não dispomos de tropas suficientes para forçar uma mudança no círculo vicioso. As forças iraquianas que supostamente iriam preencher o vácuo de segurança desabaram -ou se voltaram contra nós- diante dos problemas.

E todas as propostas que ouvimos para resolver essa situação grave parecem ser ou pouco praticáveis ou muito aquém do que é necessário. Alguns dizem que deveríamos enviar mais soldados ao Iraque. Mas as Forças Armadas americanas não têm mais soldados a enviar.

Outros dizem que devemos buscar mais apoio de outros países. Pode ter havido um tempo -por exemplo, no último verão americano- quando os EUA poderiam ter fechado um acordo: cedendo muita autoridade à ONU, talvez tivéssemos conseguido persuadir países que têm Exércitos grandes, como a Índia, a contribuir com grande número de tropas de paz. Mas é difícil imaginar que qualquer país, hoje, vá enviar forças significativas para o caldeirão iraquiano.

Alguns depositam suas esperanças numa solução política: acham que a violência vai diminuir se se permitir que a ONU indique um governo interino que os iraquianos não vejam como sendo fantoche dos EUA.

Esperemos que eles tenham razão. Mas vale a pena lembrar que, neste momento, os EUA ainda pretendem entregar a ‘soberania’ a um organismo, ainda sem nome, que praticamente não terá poder algum. Para todas as finalidades práticas, quem vai presidir o país será o embaixador americano. Os americanos podem acreditar que tudo vai mudar em 30 de junho, mas é pouco provável que os iraquianos se deixem enganar. Por falar nisso, boa parte do mundo árabe acredita que cometemos crimes de guerra em Fallujah.

Não tenho um plano para o Iraque. Mas desconfio que todos os planos que se ouvem agora sejam irrelevantes. Se os líderes americanos não tivessem tomado tantas decisões erradas, poderiam ter tido uma chance de moldar o Iraque da maneira como queriam. Mas essa janela se fechou. Tradução de Clara Allain’



Mauro Santayana

‘O dever da imprensa’, copyright Agência Carta Maior (www.agenciacartamaior.com.br), 29/04/04

‘Editorial do New York Times publicado antes do depoimento de Bush e Cheney à Comissão que investiga os atentados de 11/9 está entre as mais relevantes contribuições da imprensa para a seriedade do mundo.

O editorial do New York Times desta quinta-feira (29), publicado antes do depoimento de Bush e Cheney à Comissão que investiga os atentados de 11 de setembro, é um documento que deve incluir-se entre as mais importantes contribuições da imprensa para a seriedade do mundo.

O maior jornal dos Estados Unidos qualifica como oscilando entre discutíveis e ridículas as condições impostas pelo Presidente – entre elas a de depor em companhia do seu vice-Presidente. O propósito claro, é evitar que surjam contradições entre um e outro depoimento.

Além disso, o depoimento (uma conversa informal, segundo membros da Comissão) não foi gravado. Incumbiram-se de anotar as perguntas e as respostas algumas pessoas, e de acordo com as informações chegadas à imprensa, logo depois, não se sabe se eram taquígrafos, ou não. Em suma, o editorial tinha razão em antecipar a farsa do depoimento, que consumiu três horas: o Presidente poderá dizer que não disse o que disse, se é que disse alguma coisa que venha a preocupá-lo depois. Sobretudo porque as declarações dos dois não foram prestadas sob juramento, como as dos outros que os antecederam.

Ao comentar o argumento de que a divulgação do depoimento de Bush poderia colocar em perigo a segurança nacional dos Estados Unidos, o editorial volta a usar o adjetivo ridiculous. E adverte contra o perigo de que essa evasiva poderá ser um gravíssimo precedente para as instituições norte-americanas e o sistema democrático. O editorial conclui afirmando:

Se Mr. Bush, ou algum de seus sucessores, tiver a desventura de estar no comando em um tempo em que os terroristas golpeiem o país (como ocorreu em 11 de setembro), matando milhares de civis inocentes, é de se esperar que cooperem com as investigações oficiais, e de forma a que suas declarações sejam gravadas e registradas pela História.

Os Estados Unidos têm passado por bons e maus momentos. Mas, em todas as épocas, um dogma tem sido respeitado: o de que os seus dirigentes não podem mentir a respeito de seus atos, públicos ou privados. Quando o assunto é de economia íntima, como ocorreu com Bill Clinton, há certa margem de tolerância. Afinal, até a senhora Hillary Clinton aceitou as desculpas do marido. Mas a situação de hoje é bem mais grave.

Um erro de avaliação política, ou de deliberada manipulação, como o que foi cometido, atribuindo a Saddam Hussein os atentados de 11 de setembro, custou a morte de milhares de seres humanos, entre eles soldados norte-americanos. Ao não aceitar falar sob juramento, e ao impedir o registro fiel de suas palavras, o chefe do governo norte-americano permite a suspeita de que esteja mentindo. E isso representa a quebra do principal pilar da democracia norte-americana.

O New York Times, com o editorial, nos mostra que Jefferson tinha razão, ao preferir uma sociedade sem governo, mas com jornais independentes, a uma sociedade com governo, mas sem uma imprensa livre.’



José Meirelles Passos

‘Medo e censura no trabalho dos jornalistas’, copyright O Globo, 2/05/04

‘Exatamente um ano depois da guerra no Iraque ter supostamente (ou oficialmente) acabado, pelo menos na avaliação do presidente George W. Bush, os jornalistas americanos estão sentindo na própria pele a verdadeira gravidade da situação. O risco de vida é bem maior agora do que durante os combates no período da invasão do país. E, por isso mesmo, cada vez mais os repórteres estão utilizando informações de segunda mão, relatos nem sempre isentos, de pessoas que dizem ter testemunhado um fato.

‘Este repórter, que chegara à cena do ataque cerca de seis horas depois de ele ter acontecido, ficou apenas 45 minutos ali, muito menos do que poderia ter permanecido meses atrás’, admitiu Ian Fisher, do ‘New York Times’, numa reportagem publicada na segunda-feira a respeito de um confronto em Bagdá.

Com medo, repórteres evitam sair dos hotéis

Fisher disse ainda que ‘nas últimas semanas tornou-se mais difícil para repórteres ocidentais peneirar relatos conflitantes de incidentes como esse. Eles só saem à rua brevemente. Muitos estão com medo, a maioria escondida em hotéis e casas protegidos por enormes muros de concreto anti-explosivos, por causa da recente onda de sequestros e assassinatos de estrangeiros.’

O mês passado, apelidado de ‘Abril Vermelho’ por ter sido o mais letal para as tropas dos Estados Unidos, parece ter marcado definitivamente o início de um processo temido pelos americanos em geral: o da vietnamização do conflito, tanto em termos bélicos quanto de comunicação.

– O mais assustador é que já não sabemos a quem temer: os militantes do Partido Baath (de Saddam Hussein), os da al-Qaeda, os militares americanos, a resistência antiamericana, ou os criminosos comuns. Eu tenho passado cada dia mais tempo atrás de portas trancadas no meu quarto de hotel, longe das janelas, assistindo DVDs, e rezando para que um homem-bomba não venha nos visitar – contou ao GLOBO, via e-mail, Christina Asquith, uma free-lancer que tem escrito para os jornais ‘New York Times’, ‘Guardian’, ‘Christian Science Monitor’ e para a revista ‘The Economist’.

Brian Bennett, da revista ‘Time’, acaba de voltar do Iraque onde passou um mês, mas se aventurou a sair de Bagdá apenas uma vez:

– Ainda assim eu me vi na obrigatoriedade, como outros colegas, de contratar gente local para ir à rua dar uma espiada, e levantar informações para nós. Há rumores insistentes de que os jornalistas estrangeiros são espiões do governo dos EUA, e alguns já passaram maus bocados por causa disso – disse o repórter.

Pamela Constable, do ‘Washington Post’, só tem conseguido sair em busca de informações por ter se incluído num contingente dos Fuzileiros Navais, mas sob um preço: o de se submeter às restrições do Pentágono. Dessa forma, conseguiu cobrir os intensos combates em Faluja:

– Nós estávamos proibidos, sob pena de sermos desligados do grupo, de informar sobre mortes de soldados nossos. É uma regra criada para proteger as famílias dos militares e que provocou distorções semânticas em nossas reportagens – contou ela.

Jornais driblam restrições impostas pelo Pentágono

Um outro detalhe tampouco foi publicado em reportagens do ‘Post’ ou de qualquer outro jornal, e muito menos transmitido pela TV:

– Às vezes os fuzileiros navais respondiam às orações muçulmanas (veiculadas periodicamente através de alto-falantes instalados no topo das mesquitas) com rock heavy metal. Isso é parte das operações psicológicas para levar os insurgentes ao desvario durante os combates – contou Pamela.

Na frente interna, algumas publicações apelaram à uma artimanha para escapar à proibição do Pentágono de se fotografar a chegada de caixões com os corpos dos soldados mortos em combate. Trata-se de um legado do Vietnã: segundo o governo, tais imagens minaram o apoio do povo à participação dos EUA. Diante disso, os jornais ‘Washington Post’ e o ‘USA Today’ publicaram, na sexta-feira, fotos 3×4 dos 116 soldados mortos nos últimos 30 dias, identificando cada um, e registrando as circunstâncias das mortes.’