Saturday, 12 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Um juiz no banco dos réus





Genocídio, terrorismo, corrupção, narcotráfico. Ao longo de décadas, o polêmico juiz espanhol Baltazar Garzón pontuou a sua atuação pela promoção dos direitos humanos. Integrante da Audiência Nacional, principal instância da Justiça espanhola, o magistrado desagradou a diversos setores da sociedade e partidos políticos e atuou em casos de repercussão mundial. Levou ao banco dos réus personagens como o ditador chileno Augusto Pinochet, denunciou casos de tortura e desaparecimento durante a ditadura militar na Argentina, criticou

o governo dos Estados Unidos pela detenção ilegal na base militar de Guantánamo, em Cuba, investigou a organização terrorista Al Qaeda.

Defendeu que crimes contra a humanidade não devem prescrever e chegou a ser ameaçado de morte. Nada parecia deter o combativo e midiático juiz. Mas em março deste ano, ao investigar os crimes cometidos durante a ditadura franquista (1939-1975), protegidos por uma lei de anistia, o magistrado foi acusado de prevaricação e suspenso de suas funções na Audiência Nacional pelo Conselho Geral do Poder Judicial, o órgão superior da magistratura da Espanha. O Observatório da Imprensa exibido na terça-feira (23/11) pela TV Brasil discutiu a repercussão do caso do juiz Baltazar Garzón. Durante uma passagem pelo Brasil, há algumas semanas, o juiz, que atualmente trabalha como assessor do Tribunal Penal Internacional em Haia, concedeu uma entrevista exclusiva ao programa.


Alberto Dines recebeu dois convidados no estúdio. No Rio de Janeiro, participou Wadih Damous, presidente da Seccional Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) desde janeiro de 2007. Formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre em Direito Constitucional e do Estado pela PUC e foi presidente do Sindicato dos Advogados. Em São Paulo, o convidado foi José Carlos Sebe Bom Meihy, doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor-titular da mesma universidade, Meihy é professor-visitante da Universidade Columbia, em Nova York, edita a revista Oralidades e é autor dos livros A Guerra Civil Espanhola e Brasileiros na Guerra Civil Espanhola, entre outros.


Antes do debate ao vivo, na coluna ‘A Mídia na Semana’, Dines comentou temas que estiveram em destaque na imprensa nos últimos dias: a cobertura sobre a polêmica em torno do prêmio literário Jabuti, concedido este ano a Chico Buarque pela obra Leite Derramado; a decisão do Conselho Curador da Empresa Brasil de Comunicação (EBC) de levar à votação a retirada dos programas de cunho religioso da grade da TV Brasil, e o grande destaque dado pela imprensa nacional ao fato de o vestido escolhido pela inglesa Kate Middleton para o noivado com o príncipe William, herdeiro da coroa britânica, ser de uma estilista brasileira [ver íntegra abaixo].


Virar a página


Em editorial, Dines destacou que para encarar o futuro é preciso primeiro conhecer o passado. ‘Garzón está nas manchetes novamente e de maneira patética porque está cumprindo o seu dever de magistrado, contrariando algumas instâncias judiciárias espanholas e, por isso, ameaçam cassá-lo como punição pela insistência em desenterrar os crimes cometidos durante a Guerra Civil’ [íntegra abaixo].


Baltazar Garzón revelou que, embora reconheça que o caso é complicado, tem expectativas positivas em torno do julgamento e reforçou a necessidade de que a data seja marcada o quanto antes, para que possa apresentar a sua defesa. ‘Eu espero que, uma vez que chegue o momento da decisão, nós possamos demonstrar a inocência’, sublinhou Garzón. O juiz comentou que cerca de sete resoluções foram emitidas em um único dia para possibilitar a suspensão. Essas medidas, segundo o juiz, já não eram necessárias uma vez que ele havia solicitado a incorporação à Corte Central Internacional como consultor externo e, por isso, deixaria temporariamente a jurisdição.


A partir de então, apenas duas decisões foram tomadas – o que, na visão do juiz, mostra a lentidão do processo. ‘Por que isso está acontecendo? É uma resposta que eu não tenho. Posso pensar que se está adiando a data do julgamento por razões que me escapam, mas este adiamento é injustificado’, disse. Para o juiz, esta demora pode estar ‘violentando’ seus direitos a um julgamento rápido e justo. O juiz explicou que enquanto o Ministério Público da Espanha pede a absolvição absoluta, duas organizações de extrema direita estão mantendo as acusações contra ele. ‘Portanto, se tem idéia do conteúdo ideológico, e não jurídico, da situação’, afirmou.


‘Sacrossanto dever’


Para Garzón, é contraditório e frustrante o fato de ter conquistado avanços importantes no campo internacional – e também na Espanha – e ser impedido de exercer a função justamente quando passou a investigar crimes cometidos durante o franquismo. ‘A minha ação como juiz sempre é dirigida a um duplo objetivo: a proteção integral das vítimas e a investigação de fatos gravíssimos que constituem delitos contra a comunidade internacional e perante as quais nenhum juiz e nenhum promotor deve permanecer impassível’, explicou. ‘Não se pode permanecer indiferente. Esse é o sentido do que se conhece como o princípio de Justiça universal. O último esforço para que a impunidade não se aninhe em determinados âmbitos e aqueles que cometeram fatos tão graves fiquem impunes. Se nesse caminho, ao final, eu me converto em vítima ou objeto de investigação, assumo esta posição. Porém, desde já, não vou mudar minha interpretação da lei porque acredito que é uma interpretação correta.’


Trinta e cinco anos após a morte do ditador Francisco Franco, que ficou no poder por mais de três décadas, o franquismo ainda tem força na Espanha. No último 20 de novembro, no aniversário de morte do general, partidários de Franco promoveram diversas manifestações em Madri. ‘Eu acredito que existem umas mentes e uns corpos antigos que insistem naquela situação e uma espécie de novo franquismo que inunda a extrema direita espanhola, o que é preocupante. E isto deveria estar claramente identificado entre todos os espanhóis. Não é lógico que organizações de extrema direita, confessados seus extremismos, impulsionem um procedimento contra um juiz que – por sorteio e por imposição as vítimas – toma decisões para a investigação dos crimes’, disse. Garzón classificou como ‘perigosa’ esta conjuntura que se desenha na Espanha.


Desde que foi afastado da Audiência Nacional, Baltazar Garzón é tema freqüente de reportagens na mídia espanhola. Para o juiz, a cobertura da imprensa foi intensa e, em alguns pontos, parcial. ‘Havia alguns segmentos dos meios de comunicação claramente identificados com o setor mais conservador da direita espanhola e da extrema direita. Claramente agressivos, manipulando os dados, faltando ao que deve ser o sacrossanto dever de objetividade em dar a informação e tomando partido, tomando uma posição’, avaliou. ‘O que eu não vejo como mal, não sou daqueles que dizem que a imprensa tem que ser asséptica, não. Se estou dizendo que nenhuma pessoa pode ser absolutamente asséptica ou amorfa, também a imprensa não deveria ser. Mas tem que contar as coisas, os dados objetivos, tais como são.’ Já a imprensa geral, na avaliação de Garzón, tratou o tema de maneira mais objetiva.


Mídia aliada


O caso ganhou repercussão na mídia internacional. Para o juiz, a pressão da mídia pode contribuir para que a data do julgamento seja marcada. ‘A intervenção e a posição dos meios internacionais de comunicação tem sido contundente contra os processos abertos. Eu acho que, independente do efeito que possa ter, é preciso divulgar porque é um fato relevante. E qualquer jornal que considere que este fato é relevante ou suficientemente importante – pela injustiça que pode transmitir, ou pelos valores que afeta, por exemplo, a independência do Poder Judiciário, os crimes em massa – tem que expor as questões para que os cidadãos tenham uma idéia ou possam ter elementos para discernir sobre o que está acontecendo’, disse.


Para o magistrado, o papel da imprensa na promoção dos direitos humanos é indispensável. ‘Há muitos jornalistas, em países próximos ou remotos, que estão morrendo por querer cumprir precisamente o direito fundamental à informação. No entanto, eles também têm, como atores, um trabalho fundamental porque a luta pelos direitos humanos é uma luta com base no conhecimento e na educação. Não é só esta idéia de protegê-los quando são violentados [os direitos humanos], mas também de conseguir que essa violação não aconteça’, afirmou. Garzón acredita que a imprensa deve ser implacável contra a corrupção e militante atuante nos casos em que a paridade entre os cidadãos esteja sendo afetada, como discriminação contra as mulheres e os desfavorecidos.


Outro tema tratado na entrevista foi a evolução da questão dos direitos humanos no Brasil. De acordo com Garzón, apesar de problemas como a violência, nos últimos anos o país tem dado exemplo na luta pelos direitos fundamentais. Garzón sugeriu que os governos federal, estaduais e municipais façam um grande esforço para desenhar um mapa da situação. ‘A luta da pobreza, a criação de moradias e as possibilidades para o futuro também são um êxito e isso também é luta pelos direitos humanos’, disse. ‘Pouco vale pedir a defesa dos direitos humanos para quem não tem nem o que comer. Primeiro, temos que atender ao que é urgente. É fundamental que sejamos conscientes de que, para passar páginas, temos que saber o que aconteceu.’


Direitos humanos como motor


Perguntado sobre o porquê de ter escolhido a defesa dos direitos humanos como bandeira, o juiz destacou que isto não é uma opção profissional, mas sim um modo de vida. ‘É obrigação de qualquer juiz. Não pode haver um só juiz ou membro do Ministério Público que diga que sua bandeira não é a dos direitos humanos. Nossa profissão está, na base, na proteção destes direitos dos cidadãos. Digo sempre que somos o último recurso ou podemos ser o primeiro também. Está na própria ciência de nossa profissão. É verdade que eu – a partir de um determinado momento e sobretudo como conseqüência das investigações dos massacres na repressão argentina, chilena e outras barbaridades como o terrorismo na Espanha – tive uma aproximação com as vítimas’, lembrou. A luta em favor delas levou o juiz a comprometer-se com a luta pelos direitos humanos.


O programa entrevistou, em Madri, a ombudsman do jornal espanhol El País, Milagros Pérez Oliva. A ouvidora explicou que o juiz defende na Espanha e no mundo um conceito de Justiça internacional que está enfrentando diversos obstáculos colocados por aqueles que não desejam que se possa julgar crimes de guerra, como genocídios. ‘O conceito de Justiça internacional, em que os crimes praticados neste aspecto não prescrevem e podem ser perseguidos a partir de qualquer país do mundo, isto tem muitos detratores’, disse Milagros. Garzón é admirado em faculdades de Direito em todo o mundo porque promoveu avanços na prática e, portanto, rompeu barreiras teóricas para o avanço deste tipo de Justiça.


Milagros destacou que, ao mesmo tempo, Garzón foi um juiz que promoveu investigações na Espanha de casos de corrupção ou de má conduta por parte do Estado que têm afetado os partidos políticos PSOE e PP. ‘Recentemente, sua investigação sobre o caso Gürtel é o que, em minha opinião, desencadeou a caça ao juiz Garzón. O detonador foi que o juiz Garzón investigou casos de corrupção que envolvem o PP’, afirmou. Outro fato que explica o afastamento do magistrado é que a Justiça espanhola é ‘provavelmente agora a única instituição que existe na Espanha que não passou por uma modernização e por uma revisão de acordo com os tempos atuais’.


D. Quixote moderno


Dines perguntou como José Carlos Sebe Bom Meihy vê a ‘luta solitária’ do juiz Garzón. ‘Metaforicamente, nós podemos pensar em uma modernização do personagem D. Quixote neste mundo globalizado’, avaliou. O professor destacou que o magistrado vem atuando no campo dos direitos humanos há algumas décadas, mas ‘o problema estourou’ em um momento em que, mais do que desagradar os dois partidos hegemônicos espanhóis, Garzón levantou a questão do franquismo. Para Meihy, a ditadura do general Franco impetrou uma cultura de apagamento, de anulação das barbaridades cometidas durante a Guerra Civil Espanhola (1936-39). Depois do estabelecimento da democracia, a possibilidade de um diálogo mais intenso entre diversos setores vitimados passa a ser uma matéria que chega à Justiça.


Temas como a cobrança de ressarcimentos e o reposicionamento moral de setores da sociedade vêm à tona com a investigação proposta por Garzón. ‘A Guerra Civil Espanhola, em termos de apropriação externa, sempre perdurou’, disse. Cinema, pintura e fotografia eternizaram algumas questões que estavam colocadas na Espanha e que agora, com o caso do juiz Garzón, tiveram amplitude mundial e cada país passou a ter uma leitura própria da questão.’ Meihy sublinhou que é preciso considerar o ‘teor espanhol’ do caso, mas verificar que as implicações dele podem ser constatadas em todo o mundo.


Dines comentou que, no Brasil, alega-se que a Lei da Anistia teria encerrado a discussão em torno dos crimes cometidos durante a ditadura militar e, assim, não se justificaria retomar o debate e o exame das violações. Para Wadih Damous, todos os países que passaram por regimes de exceção têm setores resistentes à memória, à revelação da verdade. ‘No Brasil, há um dado interessante. No julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei da Anistia, em que o Supremo lamentavelmente acabou por validar a anistia aos torturadores que cometeram crimes de lesa-humanidade, foi feita uma ressalva em relação à memória e à verdade’, disse. Pela lei, os torturadores estariam a salvo de processos judiciais, mas a decisão teve uma ressalva em relação à abertura dos arquivos. ‘A busca pela memória e a verdade não se encerrou com o julgamento do Supremo Tribunal Federal. É importante que se saiba disto’, destacou o presidente da OAB-RJ.


***


O justiceiro injustiçado


Alberto Dines – editorial do Observatório da Imprensa na TV nº 573, exibido em 23/11/2010


Bem-vindos ao Observatório da Imprensa.


Para virar a página temos que lê-la. Para encarar o futuro é preciso antes conhecer o passado. Inescapável, inexorável: está reaberta a luta pela reabertura dos arquivos do regime militar. Quem deu o sinal verde foi o Superior Tribunal Militar ao entregar à Folha de S.Paulo o processo contra a ex-militante Dilma Rousseff, agora presidente eleita. O processo já estava disponível nos arquivos da Unicamp, conforme revelou o concorrente, o Estado de S.Paulo, mas a decisão do STM sacramenta a doutrina de que as páginas antes de serem viradas precisam ser lidas.


Esta edição do Observatório da Imprensa vai tratar das dificuldades para ler as terríveis páginas que tratam dos regimes de terror. E o protagonista será o juiz Baltazar Garzón, que recentemente esteve no Brasil.


Garzón está nas manchetes novamente e de maneira patética porque está cumprindo o seu dever de magistrado contrariando algumas instâncias judiciárias espanholas e, por isso, ameaçam cassá-lo como punição pela insistência em desenterrar os crimes cometidos durante a Guerra Civil.


Baltazar Garzón é um justiceiro que está sendo injustiçado e simboliza hoje em todo o mundo o inalienável direito de saber e de ler todas as páginas antes de fechar o livro.


***


A mídia na semana


** Esquenta o rififi do Jabuti. A editora Record está brigando com a Companhia das Letras porque o prêmio do livro do ano não foi dado ao livro de Edney Silvestre, Se eu Fechar os Olhos Agora, escolhido pelo júri como o melhor romance, mas ao de Chico Buarque, Leite Derramado, eleito em votação. A Folha está apoiando a Companhia das Letras enquanto a Veja aposta no livro de Edney Silvestre. Ótimo: o meio literário precisa de menos conformismo e mais enfrentamentos e não apenas em matéria de prêmios, também na esfera dos imortais da Academia de Letras. Literatura é matéria quente e a imprensa precisa despertar para o seu papel de provocadora. A unanimidade sempre foi burra – no tempo de Nelson Rodrigues como agora.


** A TV Brasil vai oferecer uma contribuição muito positiva ao debate sobre o Estado laico que a campanha eleitoral não deixou prosperar. O Conselho Curador da EBC está decidido a suspender os programas religiosos da sua grade, tanto católicos como evangélicos. Uma TV pública deve atender a todas as confissões e inclusive aos ateus ou agnósticos. Não faltam programas religiosos nos demais canais.


** É a glória, viva o Brasil! A futura princesa, a plebeia Kate Middleton, que ficou noiva do príncipe William, herdeiro presuntivo da coroa britânica, escolheu uma modista brasileira para vesti-la. A mídia está babando de orgulho, inclusive os sisudos jornalões, todos republicanos desde que nasceram. Ninguém está preocupado com o fato de que a estilista fluminense Daniella Helayel fez a sua carreira em Londres, aqui na terrinha penou para ser reconhecida. Brasileiros e brasileiras adoram cetros e coroas, principalmente histórias de príncipes e contos de fadas.

******

Jornalista