Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Não havia só cheiro de churrasco no ar nas festas da Semana do Gaúcho

Milhares de pessoas visitaram os acampamentos farroupilhas, um ritual que se repete todos os anos (Foto: Reprodução)

Vou contar uma história de gaúcho que interessa ao Brasil por conta de ser um ano eleitoral e a disputa estar polarizada e contaminada pela beligerância do presidente da República, Jair Bolsonaro, que concorre à reeleição e tem como principal adversário o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Já aconteceram duas mortes e dezenas de pequenos incidentes. A primeira morte foi em Foz do Iguaçu (PR), na Tríplice Fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai. Em julho, o guarda municipal e tesoureiro do PT Marcelo Aloízio de Arruda comemorava o seu aniversário de 50 anos com uma festa decorada com fotos de Lula e símbolos do seu partido quando o policial penal federal Jorge José da Rocha Guaranhos invadiu o local atirando e gritando frases de apoio a Bolsonaro. Arruda revidou os tiros e morreu baleado. Guaranhos foi ferido e está preso – há vídeos e textos na internet. Na segunda semana de setembro, na cidade de Confresa (MT), durante uma discussão sobre política, Rafael Silva Oliveira, 24 anos, bolsonarista, matou com 14 facadas o seu colega de trabalho, o petista Benedito Cardoso dos Santos, 42 anos. Oliveira ainda fez um vídeo da vítima. Ele foi preso.

Essas e outras razões deixaram em alerta as autoridades policiais e os organizadores dos festejos da Semana Farroupilha, também conhecida como Semana do Gaúcho. Antes de seguir com a história vou dar uma explicação, por considerar necessária para quem não é gaúcho ou seu descendente. Dou a explicação por conta de que, no início da década de 90, eu estava fazendo a cobertura de conflitos agrários no Pontal do Paranapanema, interior de São Paulo. À noite, jantava e tomava cerveja com colegas de vários cantos do país. Um deles, do Rio de Janeiro, disse que para entender o linguajar e a música dos gaúchos era preciso ter um tradutor por perto. Ele tem toda a razão, a nossa cultura tem mais a ver com os nossos vizinhos castelhanos, os argentinos e uruguaios. Vamos à explicação. Entre 1835 e 1845, os gaúchos travaram contra o governo brasileiro da época a Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha, que tinha como principal objetivo a separação da província do Brasil. Fomos derrotados. Mas houve um acordo “honroso” com o governo central. Uma semana antes do 20 de setembro, data que marca o início da Revolução Farroupilha, os gaúchos montam acampamentos nas cidades e ficam ali durante dias e dias lembrando as tradições, comendo churrasco, bebendo e dançando. Não é exagero afirmar que existem acampamentos em mais da metade dos 497 municípios gaúchos. E que uns 70% dos 11 milhões de habitantes do Rio Grande do Sul frequentam esses locais. Só em Porto Alegre foram 1,5 milhão de pessoas. Nesses acampamentos, cultua-se a história gaúcha, que é sangrenta e repleta de guerras e revoluções. Há um livro do repórter Nilson Mariano que mostra essa realidade, chama-se Um tal Adão Latorra: A degola na Revolução de 1893. Desde aquela época, quando os gaúchos se dividiram em chimangos (usavam lenços brancos no pescoço) e maragatos (lenços vermelhos), e até os dias de hoje, a política no Rio Grande do Sul sempre foi polarizada. A tal ponto que houve um tempo em que as famílias politicamente adversárias não permitiam casamentos entre os seus filhos. No futebol, a polarização antagoniza os gaúchos entre gremistas e colorados. Voltando à história.

Dentro dessa realidade histórica que descrevi era legítimo o receio das autoridades de que a polarização política fosse contaminada pela beligerância de Bolsonaro e os festejos farroupilhas ficassem marcados por alguma tragédia. Não aconteceu nenhuma briga relevante envolvendo a disputa política nos acampamentos que tenha sido noticiada ou registrada nas delegacias da Polícia Civil. Vasculhei os noticiários de várias cidades gaúchas em busca de informações sobre brigas motivadas pela disputa política e não encontrei nada. Conversei com os brigadianos, responsáveis pelo policiamento ostensivo, e os relatos que ouvi posso resumir assim: “sem alteração”. As brigas que aconteceram foram as de sempre, causadas geralmente pelo excesso de bebidas alcoólicas. Como uma que aconteceu em São Gabriel, cidade na Fronteira Oeste do Estado. Durante o desfile farroupilha houve um desentendimento entre grupos de cavaleiros sobre a organização do evento. Acabaram trocando socos, desaforos e houve correria. A Polícia Civil está investigando. O principal suspeito é o excesso de álcool – há um vídeo do episódio na internet. Andei por acampamentos farroupilhas na Região Metropolitana e em três cidades do interior. Conversei com antigos políticos que por lá encontrei. Ouvi deles comentários muito semelhantes, que assim posso resumir. Descreveram com uma eleição diferente das outras. Onde uma das características é o silêncio das pessoas sobre em quem vão votar. Não é por medo, fui advertido. Mas por convicção. Tanto que, sem alarido, estão sendo feitas apostas em quem vai ganhar, uma tradição do interior gaúcho.

Ofato é o seguinte. A extrema direita se reorganizou no mundo inteiro. No Brasil, a eleição de Bolsonaro, em 2018, deu visibilidade para vários grupos, como nazistas, terraplanistas, ocultistas, saudosistas do golpe militar de 1964 e outros. Uma eventual derrota da reeleição do presidente da República não significará que a extrema direita brasileira vai desaparecer. Ela continuará organizada e tentando chegar ao poder. E a maneira de Bolsonaro fazer política usando a beligerância contra seus adversários para abrir caminho não é um modismo. Também veio para ficar. A democracia brasileira é jovem. Mas tem musculatura suficiente para manter todos os que disputam cargos dentro da lei. E de oferecer segurança aos eleitores. O resto é o resto.

 

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.