Wednesday, 08 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Alberto Dines

‘As enchentes de verão, a formidável disposição da Polícia Federal de começar a moralização do Estado e o inevitável impulso retrospectivo desta temporada nos levam ao Livro do Gênesis, mais precisamente ao capítulo 7 onde se conta como o Todo Poderoso, ante a incontrolável corrupção do gênero humano, acionou o apocalíptico Dilúvio.

Final conhecido, sobretudo a construção da Arca, confiada ao impoluto Noé para nela guardar um casal de cada espécie animal. A gigantesca embarcação, Titanic de madeira, tornou-se a metáfora da continuidade. De nada adiantou a divina bronca: depois dos 40 dias e 40 noites de chuva torrencial voltou tudo à estaca zero. A começar pelo comandante Noé cuja primeira providência em terra firme foi plantar uma vinha e tomar uma carraspana.

A mega-reunião ministerial que começou ontem no planalto goiano — nosso monte Ararat — e deve estender-se até hoje tem algo que lembra a Arca: tudo indica que será um show-room de mesmice estrelado por uma descomunal maquina administrativa que jamais poderá ser azeitada pela impossibilidade física de se produzir e armazenar tanto azeite.

Esperavam-se 30 ministros (21 propriamente ditos, nove secretários-ministros e apenas uma ausência) mas se cada um deles usasse apenas 30 minutos para mostrar o que fez e o que pretende fazer, o presidente Lula teria que ouvir 15 horas de falação. Mesmo que expurgada da incontida imodéstia e da irreprimível fantasia seria tão trepidante quanto uma edição do ‘Diário Oficial’.

A solução encontrada foi alvissareira e melancólica. Estabeleceu-se que deverão manifestar-se apenas seis super-ministros, cabeças-de-área (Luiz Dulci, José Dirceu, Aldo Rebelo, Jacques Wagner e Luiz Guishiken), representando respectivamente a esfera social, a infra-estrutura, a articulação política e social, o desenvolvimento e a segurança.

O lado bom da compactação retórica, além do evidente conforto para o corpo e a alma dos presentes, é que o governo finalmente reparou na sua dinossaurica dimensão e na realidade por ela gerada: a administração da República deixou de ser uma atividade-meio para transformar-se em atividade-fim. A inevitável burocracia gerou um infernal burocratismo com gavetas que nunca serão abertas e mesas que só se arrumarão na véspera da transmissão do cargo.

O enorme time do Lula Futebol Clube entrou em campo não para chutar em gol e executar políticas públicas mas para gerenciar as vaidades e os interesses partidários. É preciso lembrar que Educação e a Cultura deram talvez o seu maior salto neste país quando nos anos 30 estavam unidas no único MEC, Ministério da Educação e Cultura, criado por Vargas.

Agora, em plena era da eficiência e da eficácia, para promover a democracia e a justiça social atravanca-se a Esplanada dos Ministérios com pseudo-ministérios chamados de secretarias que se superpõem, competem, se desgastam e custam uma fábula. O que falta em Brasília são passarelas ligando aqueles prédios enormes, inermes e inertes.

Menos ministérios significa menos fisiologismo, menos apetites para aplacar, menos cargos para distribuir, menos gabinetes para atulhar com as legiões de aspones desnecessários. A inalcançável reforma política seria substituída com relativa facilidade por uma reengenharia funcional que não depende de emendas à Constituição, nem troca de votos por verbas.

Ao criar este primeiríssimo escalão com a finalidade de energizar e animar o início do segundo tempo, o governo exibe ao mesmo tempo uma gigantesca e confusa estrutura de padrão soviético. Arcaica, reminiscência da Arca de Noé. Pré-diluviana, dilúvio algum conseguirá movimentar.’



Nelson Breve

‘A incompetência mora ao lado’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 9/12/04

‘Com maior ou menor grau, quase todos os integrantes dos principais escalões federais são refratários à mídia – a começar pelo presidente.

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso daria uma grande contribuição às ciências sociais do País se conseguisse explicar por qual razão dois terços do eleitorado brasileiro avaliam positivamente um governo que ele considera incompetente. Ao fim da primeira metade do governo Lula essa é a proporção dos índices de aprovação e confiança na gestão do presidente sindicalista, conforme apontou a pesquisa CNI/Ibope divulgada nesta terça-feira (7).

Curiosamente, a avaliação do atual governo no fim do segundo ano de administração é muito semelhante à que o governo de FHC teve no mesmo período do primeiro mandato do sociólogo. Em outubro de 1996, o Ibope apurou que 42% consideravam o governo ótimo ou bom, 43% regular, 13% ruim ou péssimo e 1% não soube opinar. Em novembro de 2004, os respectivos índices foram 41%, 41%, 16% e 2%. As diferenças estão praticamente dentro da margem de erro de 2,2 pontos percentuais.

O desempenho do governo atual é mais surpreendente se levarmos em conta que FHC pegou o governo flutuando no sucesso do Plano Real, que aumentou o poder aquisitivo dos mais pobres e impulsionou a economia, enquanto Lula assumiu a gerência do País com as linhas de crédito internacionais cortadas, a moeda instável e a inflação fugindo do controle. Onde está a incompetência, então? Será que a maioria do povo gosta de governo incompetente?

O príncipe dos sociólogos terá razão ao observar que ressalvou a gestão da economia nas críticas ao sucessor. Nem alguém tão dedicado a salvar a biografia de uma comparação desfavorável seria capaz de negar tal evidência. Por mais defeitos e vulnerabilidades que tenha a política econômica conservadora do presidente Lula, não há como contestar a criação de 2 milhões de postos de trabalho com carteira assinada em um ano. É ao sopro desse vento que navega a popularidade dele. O emprego é a primeira referência na expectativa das famílias e tem um peso formidável no julgamento dos governos.

Para FHC, a tucanagem e a elite sulista do País, a incompetência do governo Lula estaria no gerenciamento da área social e da administração pública. Pinçam exemplos aqui e acolá para sustentar que as coisas não andam ou caminham para trás. É verdade que existem problemas, mas o principal defeito das críticas está no ponto de referência. Se forem levados em conta apenas parâmetros quantitativos, talvez o governo não tenha avançado tanto quanto se esperava na área social. Mas, do ponto de vista qualitativo, nestes dois anos houve o maior salto da história na construção de políticas públicas para a próxima geração de brasileiros.

Os resultados ainda não são visíveis porque toda grande obra começa pelos alicerces, como costuma dizer o presidente. Ao contrário dos governos anteriores, que reuniam especialistas iluminados para elaborar políticas que seriam implementadas por pessoas que não participaram do processo e sem levar em conta a opinião dos beneficiários, a administração petista valorizou a discussão de baixo para cima, com todos os setores envolvidos. Isso dá mais trabalho, demora mais para florescer, mas tem mais legitimidade e maior perspectiva de sucesso.

Nestes dois anos, foram instituídas ou estão em fase final de elaboração políticas nacionais dos mais diversos setores da área social. Todas – ou quase todas – negociadas com os movimentos sociais e segmentos diretamente envolvidos ou interessados nos respectivos assuntos. O Plano Nacional de Reforma Agrária, a Política Nacional de Saúde, a Política de Segurança Alimentar, a Política Nacional de Assistência Social, as Políticas de Desenvolvimento Urbano, de Igualdade Racial, para Mulheres, para Drogas, para o Meio Ambiente, para a Cultura e outras.

Quem atua diretamente nessas áreas sabe o quanto foi importante esse processo de discussão amplamente participativa. Os passos foram grandes porque, na maioria dos casos, a legitimação de políticas nacionais – e não apenas governamentais – ocorreu pela primeira vez. Isso significa que a descontinuidade por parte de futuros governo será mais difícil, pois confrontaria a sociedade civil que se mobilizou para elaborar e implementar as ações de seu interesse. Alguns resultados desse processo podem ser colhidos pelo governo Lula, mas a grande maioria só florescerá em uma ou duas décadas.

Esses resultados qualitativos são desprezados por críticos arrogantes que não enxergam ou não querem enxergar os movimentos sociais como atores principais da nova ordem política nacional. Mas também são ignorados por muitos setores da sociedade – inclusive dos próprios movimentos – porque o governo Lula é incompetente para se comunicar com os formadores de opinião. Com maior ou menor grau, quase todos os integrantes dos principais escalões federais são refratários à mídia – a começar pelo presidente.

Em dois anos de mandato, Lula já visitou todas as dependências do Palácio do Planalto, da garagem à cozinha, menos o Comitê de Imprensa. Desde a vitória eleitoral, nunca concedeu uma entrevista coletiva aberta a todos os jornalistas credenciados da Presidência da República. Nenhum dos setoristas que cobrem diariamente o Palácio do Planalto foi convidado para a festa de despedida do ex-secretário de Imprensa Ricardo Kotscho.

Lula certamente acha que pode prescindir desses operários da informação governamental para se comunicar com a sociedade. Aposta nos canais de comunicação direta para conduzir o carisma de encantador de auditórios e palanques. Ignora que mídia é o espaço público onde a realidade é reconstruída cotidianamente para organizar os sentidos de tudo o que diz respeito às sociedades modernas.

Por desejar uma imprensa mais compreensiva e tolerante, Lula e seu governo rejeitam a mídia como ela é: narcisista, petulante, preconceituosa e vingativa. Se não providenciar um antídoto para esse veneno, o presidente não terá uma segunda chance de mostrar ao povo que um operário pode governar bem este país. Nelson Breve é chefe da Sucursal de Brasília da Agência Carta Maior’