Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Ana Maria Bahiana

‘Do ponto de vista cultural, é muito interessante o recente imbróglio envolvendo Lula e o correspondente do New York Times, Larry Rohter. Interessante porque o episódio revela um bocado sobre como se vêem, mutuamente, os dois lados desta equação norte-sul.

Não conheço Rohter, mas suspeito que seus laços com o Brasil sejam profundos – profundos o bastante para que ele tenha formado uma família aqui. Mesmo antes deste arranca-toco, e antes de saber deste detalhe da vida do correspodente, eu lia com assiduidade suas matérias sobre arte e cultura do Brasil, no New York Times – foi Rohter, por exemplo, que me apresentou ao trabalho do escritor Luiz Alfredo Garcia-Roza, através de uma ótima entrevista publicada pelo NYT em 2000. Uma pesquisa recente que fiz para um outro trabalho revelou uma abundância de boas matérias de cultura com sua assinatura, cobrindo áreas e personalidades diversas, de arquitetura a modismos, de Chico a Mutantes, de Gil a Zeca Pagodinho.

O curioso para mim, em todo o episódio, foi o agudo desconforto causado pela publicação, num jornal do vulto do NYT, de um assunto que, no Brasil, não provocaria mais do que sorrisos numa conversa de bar – onde, aliás, não duraria mais que dez minutos.

Não é fenômeno novo – ninguém gosta que alhures e por vozes alheias se discutam temas familiares e espinhosos. Foi a reação, por exemplo, que os americanos tiveram com meu livro América de A a Z (Objetiva, Rio de Janeiro, 1994) no qual fui carinhosa mas acidamente crítica com mazelas que todo americano conhece de trás para frente.

A reação de Brasília, desproporcional ao nível de, como disse Caetano à Época, ‘um mico planetário’, deu à matéria – preguiçosa, na melhor das hipóteses, pelas fontes citadas – uma importância desmedida e desnecessária.

Foi aí que comecei a refletir sobre o curioso diálogo de clichês, desconfianças, paranóias, lugares comuns, invejas, ressentimentos e paixões mal resolvidas que se trava há séculos entre estas duas Américas tão aparentadas, Norte e Sul, EUA e Brasil.

O New York Times, quintessência do establishment mediático americano, é o veículo da imprensona ianque que melhor cobre o Brasil, em assiduidade e profundidade de pautas. Nos anos da ditadura, quando as mazelas do país eram as mazelas ‘deles’, a expressão ‘deu no New York Times’ (eternizada em canção por Jorge Benjor) era quase um código para indicar que, em algum lugar do mundo, alguem sabia o que estava se passando pelo avesso do ‘milagre brasileiro’.

Mas o NYT, é claro, cobre o Brasil como um ianque. Um ianque bem informado, capaz de dar a capa do Arts and Leisure de domingo para um (brilhante, aliás) ensaio de Caetano Veloso sobre Orfeu e a questão racial no Brasil, mas ainda assim um ianque, vendo o país sob um curioso prisma que às vezes é condescendente, às vezes é sinceramente preocupado, às vezes é deslumbrado, às vezes é faminto de ‘exotismo’.

E às vezes é tudo isso junto. Em agosto de 1993 um outro correspondente, James Brooke, conseguiu assassinar uma pauta excelente – a ambígua posição da sociedade e da cultura brasileiras com relação ao homossexualismo – com um show de desinformações que incluía uma pérola que irritou Caetano particularmente, como ele lembrou à Época: ‘escreveu que eu e o Gil íamos a festas vestidos de mulher porque queríamos alardear nossa bissexualidade. Mandei uma carta ao jornal, que não foi publicada. Aí fui danado da vida ao programa do Jô para chiar. Aquilo foi uma leviandade.’

É um lembrete para todos nós, especialmente nós, de cultura – não são os ‘fatos’, é o contexto em que os colocamos que revela o real teor de uma matéria.

Lendo uma seleta de matérias de Rohter e companhia sobre o Brasil, é inevitável perceber um olhar de cima, como o de uma figura patriarcal, quase avuncular, infinitamente poderosa, às vezes benignamente divertida, às vezes irritada, às vezes encantada com os insuspeitados dons deste vizinho ainda desconhecido.

E nós? Se eu ainda tivesse dúvida de que tememos nossa própria suposta fraqueza mais do que qualquer outra coisa, ela foi dissipada pelo famoso email que acusava Rohter de agente da CIA ou algo parecido. Na mesma semana em que um juri capitaneado por Quentin Tarantino dava a palma de ouro a Michael Moore e sua diatribe anti-Bush, Fahrenheit 9/11.

Espero ainda estar viva no dia em que os véus caírem e os dois lados desta fascinante equação se virem, finalmente, como eles são.’



O Globo

‘Para especialistas, Larry Rohter e Lula erraram’, copyright O Globo, 28/05/04

‘Os limites de atuação dos jornalistas, diante do conflito entre o direito à informação e à privacidade, e a relação da mídia com o poder foram temas do debate ‘O caso Larry Rohter: lições para jornalistas’, um evento da série Encontros no GLOBO que reuniu cerca de 300 pessoas, a maioria estudantes, na noite de anteontem. Quatro especialistas convidados para falar sobre o assunto foram unânimes na conclusão de que Larry Rohter, correspondente do ‘New York Times’ que escreveu sobre suposto excesso do presidente Lula com bebidas, cometeu erros na reportagem mas que o governo errou ainda mais ao tentar expulsá-lo do país.

Muniz Sodré, professor de comunicação da UFRJ; Jens Glusing, correspondente do ‘Der Spiegel’; William Waack, jornalista da TV Globo; e Luiz Garcia, colunista do GLOBO, deram seus diagnósticos e levantaram questões sobre a conduta dos jornalistas. O debate foi mediado por Aluizio Maranhão, editor de Opinião do GLOBO.

Episódio causa reflexão sobre respeito à privacidade

William Waack disse que uma reportagem ruim ‘cai sempre na lata do lixo da História’ e os seus autores costumam ser punidos com o que há de pior para um jornalista, que é o descrédito.

– Mas quando um governo reage da maneira como o nosso, ele não só transforma o mau jornalismo em vítima como acaba indo fazer companhia às más reportagens no lixo da História.

Luiz Garcia disse que o episódio provocou uma meditação sobre o que é a informação e o respeito que o jornalista deve à privacidade das pessoas. Para Garcia, há duas categorias de pessoas: públicas e particulares. A privacidade de cada uma é definida por ela mesma. Para ele, o trabalho diário nos jornais é verificar onde está o interesse público e onde está a privacidade:

– Para citar um exemplo bem banal: se uma moça posa sem roupa para a ‘Playboy’, ela não pode reclamar se for fotografada numa praia sem roupa, porque assim ela definiu a privacidade dela.

Muniz Sodré assinalou que o episódio com Larry Rohter revelou despreparo dos assessores de Lula para lidar com o caso. Ele disse que a frase ‘acertamos na mosca’, de André Singer, porta-voz do Planalto, foi ridícula:

– Há um despreparo de assessores e eu diria que há uma certa arrogância presidencial. Uma arrogância que tem acompanhado as figuras do Executivo brasileiro. A arrogância do Fernando Henrique Cardoso também era enorme. Esta típica arrogância na mudança do pronome nós pelo eu. Esta arrogância, é claro, é incentivada por assessores

Jens Glusing lembrou que, na Alemanha, há uma instituição que se chama Conselho da Imprensa (Presserat) – uma instituição da própria imprensa – que cuida de casos semelhantes. Segundo ele, o último caso na Alemanha de um político se sentiu ofendido foi exatamente o do chanceler Gerhard Schroeder quando um jornal publicou reportagem dizendo que ele pinta o cabelo. Entrou na Justiça, perdeu e jamais passou disso.

– Quando algum jornal publica alguma mentira, e grave, o conselho pode criticar o jornal e a crítica tem que ser publicada pelo próprio jornal. Todos os jornalistas temem isso – disse.

Ao responder sobre o que aconteceria nos EUA ou num país europeu, onde trabalhou como correspondente, se uma situação semelhante ocorresse, Waack disse que seria resolvida nos tribunais.

– Se o Jabor fosse perseguido pelo Bush pelas coisas que disse do Bush ao vivo lá de Nova York, estaria em Guantánamo há muito tempo, pelado e na coleira. Porque ele chamou o Bush de bêbado, pervertido, ladrão e louco – comentou.

Muniz Sodré disse que a credibilidade no jornalismo está sendo fortemente afetada pela mídia de entretenimento:

– Um sintoma claro disso é o fato de que cada vez mais, na grande imprensa americana, você está descobrindo ficções. Mas só é descoberto depois e isso provoca um grande escândalo. De repente, não sabemos se naquela reportagem o personagem entrevistado era fictício ou era real.’



Comunique-se

‘Jornalistas apontam erros de Rohter e Lula’, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 28/05/04

‘William Waac, jornalista da TV Globo, Luiz Garcia, colunista de O Globo, Muniz Sodré, professor de comunicação da UFRJ, e Jens Glusing, correspondente do Der Spiegel, acreditam que a reportagem assinada por Larry Rohter, do New York Times, sobre supostos excessos de bebida alcoólica do presidente Lula, continha graves erros e que o governo federal cometeu um erro ainda maior ao tentar expulsar o correspondente do Brasil. Eles participaram do debate ‘O caso Larry Rohter: lições para jornalistas’, evento da série Encontros no Globo, realizado nesta quinta-feira (27/05).

Segundo William Waac, uma reportagem ruim ‘cai sempre na lata de lixo da História’ e o pior prejudicado é o jornalista, alvo de descrédito. ‘Mas quando um governo reage da maneira com o nosso, ele não só transforma o mau jornalismo em vítima como acaba indo fazer companhia às más reportagens no lixo da História’.

Na opinião de Muniz Sodré, a reação do governo revelou despreparo dos assessores do presidente. ‘Há um despreparo e eu diria que há uma certa arrogância presidencial. Uma arrogância que tem acompanhado as figuras do Executivo brasileiro. A arrogância do Fernando Henrique Cardoso também era enorme. Esta típica arrogância na mudança do pronome nós pelo eu. Esta arrogância, é claro, é incentivada por assessores’, disse, referindo-se à seguinte frase de André Singer, porta-voz do Planalto: ‘acertamos na mosca’.

Jens Glusing contou que na Alemanha existe uma instituição que cuida de casos semelhantes ao de Rohter. Ela se chama Conselho da Imprensa (Presserat). Glusing lembrou que o último caso de um político que se sentiu ofendido com o conteúdo de uma matéria foi o do chanceler Gerhard Schroeder. Um diário afirmou em reportagem que o político pinta o cabelo. Schroeder entrou na Justiça, mas perdeu. ‘Quando algum jornal publica alguma mentira, e grave, o conselho pode criticar o jornal e a crítica tem que ser publicada pelo próprio jornal. Todos os jornalistas temem isso’.

Já para Luiz Garcia, o caso estimulou uma meditação sobre o que é a informação e o respeito que o jornalista deve à privacidade das pessoas. Ele citou duas categorias de pessoas: as públicas e as particulares. Garcia disse que o trabalho diário nos jornais é saber onde está o interesse público e onde está a privacidade. ‘Para citar um exemplo bem banal: se uma moça posa sem roupa para a Playboy, ela não pode reclamar se for fotografada numa praia sem roupa, porque assim ela definiu a privacidade dela’.

O jornalista da TV Globo disse que, se um caso semelhante acontecesse fora do país, ele seria resolvido nos tribunais. ‘Se o Jabor fosse perseguido pelo Bush pelas coisas que disse do Bush ao vivo lá de Nova York, estaria em Guantánamo há muito tempo, pelado e na coleira. Porque ele chamou o Bush de bêbado, pervertido, ladrão e louco’.

Sodré afirmou que a credibilidade no jornalismo está sendo prejudicada pela mídia de entretenimento. ‘Um sintoma claro disso é o fato de que cada vez mais, na grande imprensa americana, você está descobrindo ficções. Mas só é descoberto depois e isso provoca um grande escândalo. De repente, não sabemos se naquela reportagem o personagem entrevistado era fictício ou era real’.

O editor de Opinião de O Globo, Aluízio Maranhão, mediou o debate.’



Folha de S. Paulo

‘Entidade pede fim de expulsão de jornalistas’, copyright Folha de S. Paulo / Associated Press, 28/05/04

‘O Instituto Internacional de Imprensa, com sede em Viena, pediu ontem que o governo Lula mude a lei brasileira de imigração para que os vistos de jornalistas estrangeiros não possam ser cassados por causa de seu trabalho.

O pedido foi feito após o caso do correspondente do ‘New York Times’ Larry Rohter, que teve seu visto revogado por causa de texto que afirmava que o hábito de beber do presidente Luiz Inácio Lula da Silva era preocupação nacional. A decisão acabou revista.

Para o diretor da entidade, Johann Fritz, o uso do expediente ‘levantou uma série de questões problemáticas que precisam ser resolvidas’. ‘Deve haver um claro reconhecimento da separação dos poderes, com leis sendo aplicadas por razões objetivas, e não com o propósito de punir porque uma reportagem causou constrangimento’, afirmou, em nota.

‘O governo deve alterar a lei para excluir seu uso na expulsão de jornalistas. Assim, seguirá a legislação internacional sobre o direito dos jornalistas a trabalharem sem o constrangimento de governos.’’