Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Carla Rodrigues

‘‘Minhas histórias dos outros’ é um livro de paradoxos: revela episódios de quase 50 anos de atuação de um jornalista que não queria a profissão, mas hoje não se imagina fazendo outra coisa. Mostra a atuação engajada de um profissional que é totalmente contra o jornalismo militante. É uma aula de bom jornalismo, só que útil principalmente para leigos que desconhecem o modo muitas vezes ocasional ou despretensioso como se produzem as melhores reportagens. Mas, sobretudo, ‘Minhas histórias dos outros’ oferece ao leitor aquilo que Zuenir Ventura acredita ser o grande prazer do jornalista: o de voyeur. ‘Nós gostamos de olhar pelo buraco da fechadura’, brinca ele. Nas 260 páginas do livro, que chega às livrarias nesta sexta-feira, 29, o leitor conquista o direito de olhar pelo buraco da fechadura e espiar o melhor de Zuenir Ventura.

‘Camus, o humanista’ era o título do primeiro texto que Zuenir Carlos Ventura assinou num jornal. Arquivista da ‘Tribuna da Imprensa’, apresentou-se como voluntário para a tarefa de redigir o obituário de um de seus escritores favoritos no curso de Letras da Faculdade Nacional. Começava ali, ainda que a contragosto, uma carreira profissional que, com esse, soma seis livros e já se cruza com a de escritor. A narrativa de ‘Minhas histórias dos outros’ faz exatamente o que ele fez a vida inteira: funde profissão e vida pessoal, deixando que o leitor perceba o quanto é difícil para um bom jornalista separá-las. Ao mesmo tempo, a trajetória do homem que milita em causas como o combate à violência e ao tráfico de drogas mostra como é possível que esta mistura seja feita sem perder a ética de vista. Zuenir é um desses jornalistas que não se fabricam mais. Intérprete do vice-presidente João Goulart em Paris depois da renúncia de Jânio Quadros, testemunha da Revolução dos Cravos, da Nouvelle Vague, do Cinema Novo, amigo de Glauber Rocha, preso com o psicanalista Hélio Pellegrino.

A vida real de um jornalista bem-sucedido como Zuenir inclui fracassos simples, como gravações de entrevistas que precisaram ser refeitas porque o gravador não funcionou. Ou a conversa exclusiva com Fidel Castro que nunca foi publicada porque o comandante não autorizou, e a foto exclusiva da calcinha branca de Jackie Onassis que desapareceu no laboratório. Em contrapartida, oferece ao leitor uma vasta gama de sucessos: uma entrevista inédita com o amigo e escritor José Rubem Fonseca, gravada por acaso e encontrada anos depois numa gaveta, histórias de Glauber Rocha de uma biografia que nunca fez, e revelações sobre a ligação entre o cineasta João Moreira Salles e o traficante Marcinho VP. Seriam informações exclusivas, não fosse o acaso, sempre ele: o mesmo episódio está contado pelo ex-secretário de Segurança Luiz Eduardo Soares no seu recente ‘Cabeça de Porco’.

Para quem começa o livro dizendo que tem péssima memória, e que só depois de ouvir a escritora Rosa Montero contar que inventava suas próprias lembranças se convenceu que poderia contar as suas, as histórias que ele jura não lembrar são ricas em detalhes. Aluno de Alceu Amoroso Lima e Manuel Bandeira, ele recorda da visita que fez ao apartamento do poeta (leia trecho no link ‘Quatro histórias do livro’), no qual o que mais o impressionou foi a biblioteca. Hoje, a cena se repete com ele. A cada vez que recebe um jovem estudante para uma entrevista, ouve a pergunta que não fez a Bandeira: ‘Você já leu todos esses livros?’ Nesta entrevista em que o gravador funcionou – e que o leitor de NoMínimo pode ouvir na íntegra -, Zuenir, que desde muito cedo descobriu que no jornalismo trata-se de fazer as perguntas certas e de evitar as erradas, troca de lugar e mostra que também é bom de resposta.

A primeira sensação que o seu livro transmite é de que o jornalismo piorou muito. Será que daqui a 45 anos vai haver um jornalista para escrever uma história como a sua?

Espero que você não tenha razão, espero que daqui a 40, 50 anos, ainda tenha alguém para contar histórias. Nós vivemos disso, de contar. O jornalismo é testemunha do seu tempo, da sua época. O jornalista não tem que ser juiz nem promotor, tem que ser testemunha. É claro que hoje as coisas se substituem muito rapidamente, a informação por todos os lados, por todos os poros, faz com que haja esse risco de que tudo desapareça muito rapidamente. Espero que haja sempre alguém para apagar a luz.

Você só virou jornalista porque se ofereceu para escrever o obituário do escritor Albert Camus. Você acha que hoje um editor contrataria um arquivista que soubesse fazer um bom obituário? Ou os requisitos mudaram?

Hoje, o jornalista iria pesquisar sobre o Camus no Google (1.070.000 de respostas para Albert Camus). Todo mundo tem acesso a essa informação e o perigo é exatamente esse: se todos têm a mesma informação, o que faz a diferença? O que eu ainda acho que faz a diferença é o nosso olhar. O jornalismo realmente não pode perder essa capacidade de olhar. Não pode perder o registro individual, o olhar particular.

Você diz que não queria ser jornalista, que gostava mesmo era de dar aulas. Por que se ofereceu para escrever o obituário?

Foi medo do Hélcio Martins (professor que identificou em Zuenir o talento para a escrita). O Hélcio foi uma pessoa fundamental na minha vida, mudou a minha vida. Mas ele era muito mandão, muito autoritário, era preciso fazer o que ele queria. E ele cismou comigo, achou que de alguma maneira eu era um aluno que valia a pena. Mas eu estava resistindo. Aquilo foi um momento do destino, de levantar o dedo e me oferecer, apesar do medo que todos nós tínhamos do Carlos Lacerda. Aquilo mudou a minha vida, em primeiro lugar porque eu ganhava 4 mil e passei a ganhar primeiro 7 mil, depois, 10 mil, depois 12 mil. Não tinha como recusar.

A tarefa de escrever até então não te atraía?

Não, não me atraía. É curioso porque hoje não consigo me imaginar fazendo outra coisa, mas naquele momento não me atraía. Mas também porque o meu objetivo de trabalhar no arquivo do jornal era poder ficar lendo o que me interessava.

O livro mostra que você foi testemunha de muitos acontecimentos históricos, principalmente em 1961, ano em que você viveu em Paris. Aquela foi uma experiência fundamental na sua vida?

Aquele foi o ano mais importante da minha vida. Eu era um cara provinciano, criado em Nova Friburgo, que não conhecia nem o Rio de Janeiro muito bem. Vivia com dificuldades, não tinha dinheiro, só freqüentava a faculdade. Paris foi só revelação, foi a descoberta de um outro mundo. E a descoberta de amigos, como o Joaquim Pedro de Andrade, a quem eu devo muito. O Joaquim era o oposto de mim, era uma pessoa muito bem formada, muito culto. Ele tinha tudo aquilo que eu não tive: bem nascido, formação aristocrática, tinha estudado tudo direitinho. Morávamos na Casa do Brasil, que era muito bem estruturada, num ambiente muito bom. No curso que fiz, tive colegas africanos no momento em que o continente estava encontrando sua independência. Tinha a Nouvelle Vague, Brigitte Bardot, Roger Vadim. Tinha a guerra da Argélia, o terrorismo, tudo isso junto de uma vez, jogado todos os dias na minha frente. Naquele momento, Paris era a capital do mundo. A sensação, quando olho para trás, é que a cada dia que eu amanhecia descobria um pouco mais. Poucas vezes depois disso eu tive, condensado, tantas coisas importantes acontecendo ao mesmo tempo.

Você acredita que esse ano em Paris definiu sua trajetória de jornalista?

Ali, se eu não ainda tinha alguma certeza da escolha, da vocação, ali realmente essa dúvida se desfez. Ali eu vi que a melhor coisa do jornalismo é a reportagem. Minha vida profissional se definiu, sem que eu tivesse abandonado o magistério. Tenho uma amiga que me dizia que na sala de aula eu fazia jornalismo e que na redação eu dava aula.

Em muitos dos episódios do livro, você sai do lugar do repórter observador e se transforma em participante da história. Como foi isso?

Tenho muito cuidado, porque parece que eu estou propondo um modelo. Com a minha idade, as pessoas podem achar que eu estou dando conselhos. E quem dá conselho é velho, eu não sou velho… Mas não é isso. Acontece que há momentos em que essa transformação em personagem é inevitável. Não em protagonista, mas em personagem. Em Paris, eu virei intérprete do presidente João Goulart, só porque falava as duas línguas. Só eu tinha ali aquela tarefa de traduzir para o mundo aquilo que o Jango dizia. Se eu agisse com má fé alterava a história. Mas tudo isso aconteceu por acaso na minha vida, porque eu não queria ser mais do que testemunha da história. A tarefa do jornalista ainda é a observação, é olhar e contar como foi. O voyeurismo é o nosso prazer e a nossa tarefa.

Você se transformou num jornalista militante? Ou você sempre foi militante?

Acho que o jornalismo não deve ser militante. É uma contradição com o livro que não sei como resolver. O jornalista não veste camisa nem da empresa em que trabalha nem de partido nem de ideologia. A única camisa que ele tem que vestir é a da sua própria consciência. Mas no jornalismo também se vivem situações-limite. E a situação-limite foge à regra. É aquela história do fotógrafo: fotografa o crime ou salva a vida? Eu acho que tem que evitar o crime, salvar a vida, mas não sou contra os que fotografam ao invés de evitar o crime.

O exemplo do Genésio, testemunha do caso Chico Mendes que você adotou e trouxe para o Rio de Janeiro porque ele estava ameaçado de morte no Acre, é isso, você salvou a vida dele, não?

Não foi mérito nenhum, não foi nada de extraordinário, foi a única coisa que eu poderia fazer, qualquer um faria se tivesse um mínimo de consciência. Não tinha como; se ele ficasse no Acre, morria; se ficasse no quartel, morria; e então só poderia trazê-lo para o Rio. Mas, apesar do paradoxo que você aponta, continuo achando que não devemos misturar as coisas.

Uma das qualidades do livro é a coragem com que você conta como lidou com as questões difíceis da profissão. Por exemplo, não noticiar que o suicídio do escritor Pedro Nava era resultado de uma chantagem que ele estava sofrendo por um caso homossexual. Hoje, você omitiria essas informações?

Esse capítulo é fundamental no livro. Essa é uma questão que continua atual até hoje. Todos os dias estamos diante destas questões – tabu, suicídio, homossexualidade. Pesou na minha decisão o preconceito social e o preconceito individual. Claro que havia uma razão objetiva, porque a fonte não era fidedigna, não era confiável. Mas a pressão social, a pressão do grupo, a importância do Nava, tudo isso pesou muito. Preconceito em relação ao grande personagem que era, preconceito de não admitir que um grande personagem como ele pudesse estar envolvido com homossexualidade. As fronteiras entre a vida pública e a vida privada não estão pré-delimitadas. O descrédito da sociedade em relação aos jornalistas vem muito disso, mas ao mesmo tempo em que o leitor critica, o leitor quer ler as notícias.

O período da censura, durante a ditadura militar, mostra como a informação é importante. Como foi lidar com a censura?

Uma das piores coisas desse momento foi a autocensura. Depois de algum tempo, a censura estava introjetada. Estávamos todos morrendo de medo. Num primeiro momento, a censura era muito ridicularizada, mas depois foi se aperfeiçoando e agiu com muita eficiência. Foi quando não sabíamos mais o que estávamos sendo proibidos de publicar ou o que estávamos evitando publicar por medo. Essa foi uma das piores seqüelas da ditadura militar para nós, jornalistas. Durante muito tempo, continuamos escrevendo achando que havia um censor atrás do nosso trabalho.

Você fala pouco de ‘Cidade Partida’. O livro foi importante na sua trajetória, marcou uma virada na sua carreira, que a partir de 1993 passou a tratar da violência e da questão social como temas fundamentais?

– Foi um dos marcos da minha vida, mudou a minha cabeça. Não só do ponto de vista profissional, mas existencial. São dois momentos que mudaram a minha vida: o mergulho na favela, para fazer ‘Cidade Partida’, e o mergulho no Acre, com o caso Chico Mendes. Eu já estava pesquisando sobre violência no Rio de Janeiro quando fui a Vigário Geral, um mês depois da chacina. Foi o Luiz Eduardo Soares que me sugeriu conversar com dois meninos de Vigário Geral, e me deu o telefone deles. Um era o Caio Ferraz. E eu fui para lá como cidadão, como todo mundo que queria saber o que estava acontecendo depois daquela chacina. E fiquei muito impressionado com aquilo tudo que estava vendo, a meia hora de casa, e tão diferente. Só não quis morar lá porque achei que era falsear um pouco a realidade. No meio do processo é que decidi que o livro seria para contar aquela história. Conheci um outro mundo, distante e próximo ao mesmo tempo. Caí na real. Foi a partir daí que a questão social ficou indissociável da minha vida. O que mais me choca no capítulo sobre violência é que as questões de hoje já estavam sendo discutidas nos anos 80, quando surgiu a expressão ‘guerra civil’. O capítulo se chama ‘Notícias de uma guerra civil’ em homenagem ao filme do João Moreira Salles. Mas quando a Rocinha desceu, com paus e pedras, e fechou o túnel, os jornais começaram a chamar de guerra civil.

Embora seja um carioca típico, morador de Ipanema, recentemente você publicou em NoMínimo uma crônica elogiando São Paulo, e tem escrito muitos elogios a outras cidades. Você está descobrindo o Brasil?

Acho que estou, e estou gostando muito. No Sudeste, e no Rio, temos a idéia de que nada acontece se não acontecer aqui. Comecei a perceber que as pessoas no interior – não gosto dessa expressão porque já é preconceituosa -, mas, com as condições de vida mais tranqüilas, sem o nível de estresse de uma cidade como o Rio de Janeiro, dá para prestar mais atenção nas pessoas, nas coisas. No chamado interior, estou descobrindo uma vida com as boas coisas dos tempos tradicionais – vizinhança, solidariedade, tempo para conversar – tudo isso faz falta aqui. Estou, sim, descobrindo o Brasil e estou adorando essa descoberta, até porque estou muito desencantado com a metrópole. Não voltaria para o interior, isso é uma fantasia.

O que te dá tanto vigor para continuar trabalhando?

Não me considero um homem de quase 74 anos. É coisa à beça, mas apesar de ter tido um câncer na bexiga, que foi um susto, tenho uma saúde muito boa. Tenho uma vocação para a alegria, pode parecer besta, mas tenho razões objetivas para isso. Uma família incrível, amigos queridíssimos, e tudo isso faz com que eu tenha um prazer grande de viver. Acho que é genético, meu pai era um homem de bem com a vida, que morreu aos 97 anos.

Aos estudantes de jornalismo que chegam aqui e te perguntam se você leu todos esses livros, o que você responde?

Às vezes, minto dizendo que já li tudo. Mas também explico que existem livros aqui que não devem ser lidos de uma vez só, como os dicionários. Mas há uma certa decepção quando digo que não, não li não. Mas alguns eu já li muitas vezes. São livros de consulta, como o ‘Casa Grande e Senzala’, que está todo marcadinho, eu já vou nele no escuro. Pena que não tem mais lugar para guardar livro. Todo mês a Mary, minha mulher, descarrega livros numa biblioteca chamada Zuenir Ventura, da qual me orgulho muito.’

Joaquim Ferreira dos Santos

‘Mestre Zu’, copyright O Globo, 2/05/05

‘Tenho vaga idéia, quase certeza, e eu devia ter contado isso para o Zuenir Ventura, mas só agora, depois que chegou às livrarias seu delicioso livro de memórias jornalísticas, só agora eu estou vendo o Glauber Rocha me saindo dos desvãos da lembrança, e ele, o Glauber, está de sunga, o cara está completamente fora da ordem mental, andando de um lado ao outro do apartamento, e entretido baianamente em tentar fazer a coisa certa. Ao mesmo tempo que dava declarações sobre o descalabro em que se metera o cinema nacional naquele fim dos anos 70, ele procurava manter um mínimo de coordenação motora e não trocar as bolas: não fumar a maçã que segurava com a mão esquerda e não morder o enorme charuto de maconha que carregava na direita.

Glauber morava numa rua sem saída de Ipanema, ‘Isso aqui é o próprio beco em que se meteu a Embrafilme’, e dava suas declarações a mim próprio, repórter da ‘Veja’, pautado para aquela missão por Zuenir, meu editor na sucursal Rio, e a quem peço desculpas agora pela falta de fosfosol no tirocínio. Glauber gritando ‘Zuenir Ventura é a salvação para um Ministério da Cultura moderno’, uma das declarações daquela tarde louca, o Glauber toda hora me mandando largar a caneta e pegar no charuto, porque mais fortes eram os poderes do povo, aquilo talvez rendesse alguma linha ao ‘Minhas memórias dos outros’ que o Mestre Zu acaba de lançar. Não sei. Com certeza me rende agora uma carona na idéia e Zuenir, pródigo delas e mais ainda na arte da gentileza, vai emprestar mais essa.

Ganha-se pouco mas sempre foi divertido e, mais ou menos na época em que aqui no GLOBO a atriz Krika Ohana tirava toda a roupa no meio da redação, do outro lado do meu telefone agora está Tim Maia, ainda professando as filosofias do Racional Superior. Ele tenta convencer este pobre foca que a Terra não era redonda coisa nenhuma, onde já se viu? Havia santa indignação na voz do cantor de ‘Dia dos Santos Reis’, aquela dos reis que chegam levando o que podem, ‘se deixar com eles carregam até os bodes, os bodes da gente, os bodes mé’. Tim me explicava com voz suave que se assim fosse, se redonda a Terra como queriam os cientistas, bastava pular, esperar que a nossa casa passasse de novo aqui por baixo e retornaríamos ao ponto de origem doméstica. ‘As empresas de aviação iriam à falência’, mandava Tim na minha orelha telefônica. Eu disse que fazia sentido, bicho. Eu disse também que a história da Humanidade estava toda baseada em preceitos escalafobéticos, certo de que com o maluco é preciso estar beleza e afim. E fui cumprir outra pauta. Pelo menos durante uns dez anos eu tive a sorte de ser mandado de um lado para o outro da cidade por Zuenir Ventura.

Quem se apresenta agora, já que no capítulo de hoje das ‘Minhas memórias de mim mesmo’ ficaremos apenas com o doce estupor dos malucos, é o cantor e compositor baiano Raul Seixas. Ele está lançando o LP com a música da cobra que vai pegar as aranhas, alguma coisa ali pelo final dos anos 70, mas infelizmente neste momento Raul não está em condições de falar com a nossa reportagem. ‘Eu quero falar’, ouço o grito insistente, como se brigasse com alguém, vindo do subsolo de um apartamento no Jardim Botânico. É Raulzito, ainda mal enxugado do banho que lhe deram, são duas da tarde, para que recuperasse os sentidos depois de um amplo coquetel alcoólico e falasse com a reportagem de ‘Veja’. Está com a braguilha aberta. Os botões da blusa desparagonados. A mente desconectada. ‘Qué isso, Raul, se grila, não, eu volto amanhã’, fingi paciência. E no que ele respondeu ‘Eu tô bem, bicho’, caiu sobre o meu compenetrado colo jornalístico, bêbado beleza, encerrando a entrevista e a divulgação da peleja entre cobras e aranhas. Não escrevi nada sobre a cena. As melhores histórias de jornalistas quase sempre ficam nas conversas de redação – mas, com licença, que eu vou atender o telefone.

‘Joaquim, aqui é o João Gilberto’ – estão me dizendo do outro lado do fio e eu, esperto que sou, que não nasci ontem para ficar levando trote de mané desocupado, eu respondo à altura. ‘O.k., João, mas aqui não é o Joaquim, foi engano, aqui é o pato da tua música.’

Minha sorte foi que a voz do outro lado era de um senhor educado. Trote coisa nenhuma, ele riu, era o próprio João Gilberto, incapaz de telefonar para qualquer jornalista que fosse e ali finalmente se fazia presente depois de eu ter passado uma semana pedindo aos seus amigos que o instassem a entrar em contato comigo para falar do novo LP, ‘Brasil’, feito com Gil, Caetano e Bethânia. Não só era João na linha disposto a dar uma exclusiva, como João estava declarando que tinha achado o disco uma porcaria e começou a descascar o próprio produto. Ele voltaria a me ligar quatro vezes naquela madrugada, derradeiros minutos que eu tinha para entregar o texto. No último telefonema, com medo que o cantor de ‘Desafinado’ me detalhasse outra vez como deveria escorregar suave a vassourinha na bateria de ‘Aquarela do Brasil’ e não a batida estridente que estava no disco, achei que era hora de eu ficar maluco beleza também. Mandei dizer que não estava. O Joaquim foi ali medir o Aterro com o Zuenir.

É uma das armadilhas da cobertura jornalística, e Zuenir ensinou, entre outras matérias que formaram dezenas de jovens pelas redações, a fugir dela. Como não chutar, no puro olhômetro, o cálculo da multidão que comparece a um evento? Zuenir, descrente de todas as avaliações que as autoridades e outras nem tanto fazem nessa hora, resolveu ir ele próprio até o Aterro do Flamengo, munido de um carretel de barbante e medir a área em frente ao monumento da II Guerra. Depois, com o cálculo de quantas pessoas cabem por metro quadrado, ele faria uma projeção mais correta da multidão que tinha de fato assistido à missa do Papa João Paulo II em 1980. Era quase madrugada. O Aterro vazio. A lua oval da Esso no Castelo por testemunha.

Os soldadinhos do monumento não devem ter entendido nada e até hoje, imagino, citam Zuenir quando contam alguma história de maluco beleza. Eu também. Com a diferença que entendi tudo, quase tudo – e agradeço a sorte de ter visto o jornalismo sob suas medidas.’

Luiz Fernando Vianna

‘Zuenir Ventura apresenta ‘passeio pela história’’, copyright Folha de S. Paulo, 2/05/05

‘As fotos do autor, na capa e na contracapa do livro, ao lado de Fidel Castro, Carlos Drummond de Andrade, Rubem Fonseca e outros, podem insinuar um livro vaidoso, daqueles em que o jornalista expõe suas supostas glórias. Mas é ilusão. Em ‘Minhas Histórias dos Outros’, Zuenir Ventura conta experiências de 47 anos de profissão sem omitir culpas, incertezas e, sobretudo, emoções.

Em vez de uma pomposa autobiografia, ou um livro de ensinamentos para novos jornalistas, Ventura, 73, preferiu escrever 29 relatos sobre situações que viveu e que, na maioria dos casos, foram também importantes para os rumos do Brasil e até do mundo.

‘Não sou o protagonista do livro. Mas acabei, por conta da profissão, indo ao encontro de assuntos e pessoas interessantes’, diz Ventura, enfatizando que escreveu pensando em qualquer leitor, não nos colegas de profissão. ‘Há coisas que fiz que nem são lições de jornalismo.’

Os momentos mais fortes do livro são os que o mostram na encruzilhada entre o dever profissional e a necessidade de preservar a integridade ou a vida de um personagem. Com Genésio Ferreira da Silva, testemunha-chave do caso Chico Mendes (líder seringueiro assassinado em 1988), prevaleceu a segunda opção: Ventura esqueceu a mítica neutralidade dos repórteres e levou o adolescente para morar em sua casa, no Rio, retirando-o do Acre.

‘Se alguém não tivesse feito isso, ele certamente não estaria vivo hoje. Eu faria tudo de novo’, afirma ele, que ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo em 1989 pela série de reportagens ‘O Acre de Chico Mendes’, publicadas no ‘Jornal do Brasil’.

No livro, pela primeira vez, Ventura fala sobre os problemas -o alcoolismo, entre eles- ocorridos com Genésio depois que este saiu de sua guarda. Também escreve sobre a sua decisão, confirmada pela direção da ‘IstoÉ’, de não publicar, em 1984, que o suicídio do escritor Pedro Nava fora provocado por chantagens feitas por um garoto de programa.

‘Eu faço uma autocrítica [no livro] porque pesou na época o preconceito. Mas é preciso lembrar que a Aids era uma doença recente, o movimento gay ainda não tinha tirado os homossexuais do gueto, o tabu ainda era grande’, diz ele, então chefe da sucursal carioca da revista.

Caso inverso foi o que envolveu Glauber Rocha, que, a pedido do amigo jornalista, escreveu um depoimento para a revista ‘Visão’, em 1974, sobre os dez anos do golpe militar. No texto, o cineasta chamava o general Golbery do Couto e Silva de ‘gênio da raça’ e afirmava: ‘Os militares são os legítimos representantes do povo’.

‘Ele passou a ser perseguido pela esquerda, e eu fiquei muito culpado. Mas, anos depois, ele me disse que falaria tudo aquilo de novo’, conta Ventura. Já uma entrevista de 1994, com o traficante Marcinho VP, não foi publicada porque o jornalista temia uma represália da polícia sobre os moradores do morro Dona Marta.

Ventura ainda relembra fatos marcantes como a Revolução dos Cravos em Portugal, em 74, o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 75, a anistia dos presos e exilados políticos, em 79, e a bomba do Riocentro, em 81.

‘Como tive a oportunidade de trabalhar em jornais e revistas importantes, o livro acaba sendo um passeio pela história do país nessas últimas décadas’, afirma.

Minhas Histórias dos Outros, Autor: Zuenir Ventura, Editora: Planeta, Quanto: R$ 37,50 (272 págs.)’

ASSASSINATOS NA ABL
Jerônimo Teixeira

‘Gracejos de fardão’, copyright Veja, 4/05/05

‘Embora tenha conhecido explosões esporádicas, a literatura de entretenimento não firmou uma tradição sólida no Brasil. Em um texto dos anos 80, o poeta José Paulo Paes dizia que todo escritor brasileiro sonha em ser Gustave Flaubert ou James Joyce – e nenhum se dispõe a ser Alexandre Dumas ou Agatha Christie. Estreando como romancista em 1995, o apresentador Jô Soares é uma bem-sucedida exceção – O Xangô de Baker Street e O Homem que Matou Getúlio Vargas venderam juntos mais de 1 milhão de exemplares. Os livros de Jô não vão mudar a história da prosa em língua portuguesa nem pretendem conduzir o leitor ao ‘caminho da luz’, como é o caso de outro escritor popular, Paulo Coelho. Eles se destinam à leitura rápida e descompromissada na poltrona do avião ou ao lado da piscina. A nova investida literária do autor, Assassinatos na Academia Brasileira de Letras (Companhia das Letras; 256 páginas; 35 reais), retoma a fórmula de paródia policial com cenário de época que fez o sucesso de Xangô. Ambientada no Rio de Janeiro, em 1924, a história fala sobre um serial killer que envenena os integrantes da Academia Brasileira de Letras. O argumento tem um potencial cômico evidente – poucas instituições brasileiras são mais parodiáveis que a ABL, com suas reuniões de velhinhos de fardão em torno do chá com bolo. O problema é que, entre o policial e a paródia, o romance histórico e a crônica de costumes, o coquetel humorístico de Jô desandou.

Ainda que o autor se esforce para ocultar a identidade do assassino, o enredo criminal é previsível. O herói é Machado Machado, comissário que deve seu nome duplo à admiração que o pai nutria por Machado de Assis. Fiel à homenagem, ele tem uma citação machadiana pronta para qualquer eventualidade – e essa mania de literato suburbano é o máximo de brilhantismo que demonstra como investigador. De qualquer forma, os crimes têm menos importância do que a instituição que congrega as vítimas. Assassinatos é um retrato brincalhão mas condescendente da ABL. A despeito de seus fumos europeus, a Academia descrita por Jô abrasileirou-se perfeitamente, absorvendo os vícios da política local. Para conquistar uma cadeira na ‘casa de Machado de Assis’, conchavos, compadrios e ‘pistolões’ valem mais que méritos literários. O livro faz até uma referência velada a uma rusga recente entre dois imortais (um dos membros da academia fantasiosa de Assassinatos joga um copo de refrigerante na cara de outro, assim como Lêdo Ivo jogou água em Eduardo Portella em uma festa, no ano passado). Mas não custa lembrar que já se especulou sobre uma possível ‘imortalização’ de Jô Soares – em 2001, quando a cadeira ocupada por Jorge Amado ainda estava vaga, Jô sondou suas possibilidades ao entrevistar, em seu programa, a escritora e imortal Nélida Piñon. Assassinatos não derruba as chances de ele um dia envergar o fardão. Apesar de todos os seus pecadilhos de vaidade, os imortais do romance são, em geral, figuras simpáticas. Jô não ousa matar (nem criticar) os ‘verdadeiros’ imortais. Todos os quatro acadêmicos assassinados são personagens ficcionais. Os verdadeiros acadêmicos da época, como Graça Aranha e Coelho Neto, só fazem uma rápida figuração.

Aliás, o que não falta no romance são figurantes de luxo, como o ator Procópio Ferreira e o cantor Francisco Alves. A aparição desses nomes legendários faz parte do esforço de compor a ambientação de época. Jô desce a detalhes como marcas de tintura de cabelos e reclames de remédio para bronquite. Há um certo afã de arquivista nessa reconstituição de miudezas, como se o autor quisesse demonstrar que fez, sim, pesquisa sobre o período representado. E até a prosa arremeda o beletrismo de então. Tem ‘momento de plena entrega’ para descrever um orgasmo e outras coisinhas dignas do imortal Coelho Neto. Dá para fazer humor com esse fraseado solene? Bem, Jô é humorista profissional: o leitor pode contar com tiradas como ‘latim para mim é grego’ para despertar seu mais espontâneo sorriso amarelo. De quebra, ainda tem umas gracinhas gráficas – páginas compostas como folhas de jornal, vinhetas, figurinhas para descansar os olhos. Para ser um exemplo de boa literatura de entretenimento, só ficou faltando uma coisa a Assassinatos na Academia Brasileira de Letras: divertir.

Erotismo instantâneo

‘Machado deu por encerrado o interrogatório. Beijou a embaixatriz, sorvendo-lhe os lábios úmidos e macios, enquanto fazia deslizar o cetim do vestido. Manuela retribuía, a língua quente provocando-lhe o desejo, nessa altura incontrolável. O detetive arrancou o paletó, tirou o incômodo coldre de ombro que aninhava o inseparável Colt, deitou fora as algemas no chão do carro, livrou-se do que restava de suas roupas, e em menos de um minuto os dois faziam amor, entrelaçados sobre o extenso banco de couro.’

Trecho de Assassinatos na Academia Brasileira de Letras’