Monday, 06 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Carlos Chaparro

‘O XIS DA QUESTÃO – Essa praga de marqueteiros sugadores do dinheiro público precisa ser escorraçada do poder. A Secom, se é que ainda existe, deve cancelar de imediato os contratos com as empresas do sr. Duda Mendonça e pôr fim à gastança irracional e desonesta (porque enganadora) em propaganda institucional. Até porque deu no que deu…

1. À espera do estadista

Quinta-feira histórica, esta, em que o surpreendente Duda Mendonça resolveu aprofundar a crise nacional com o bisturi afiado do jogo da verdade. Com clareza de bom comunicador, e contundência que fez sangrar a alma dos brasileiros que haviam investido esperança neste governo, ele nos revelou que tudo é bem pior e mais grave do que imaginávamos. Além de caixa dois, dólar na cueca e o telefone de uma cafetina em agendas oficiais, temos também sonegação fiscal, evasão de divisas, crimes contra o sistema financeiro – e algo mais, porque falta saber de onde saíram os milhões de dólares que choveram na conta de Duda Mendonça nas Bahamas. O desfiar da meada da corrupção já começou, mas está apenas no início.

Escrevo de véspera. Amanhã, sexta-feira, dia em que a coluna entra no ar, estarei em viagem pelo interior de São Paulo. Corro, portanto, o risco de oferecer aos meus leitores um texto que logo ficará velho, superado pelas decorrências do estarrecedor depoimento do marqueteiro-mor do governo.

Desejo, sinceramente, que uma das decorrências seja um pronunciamento de estadista, que a Nação há muito espera ouvir do seu Presidente da República. Ante a gravidade da crise que o cerca e nos escandaliza, passou da hora de o senhor Luiz Inácio Lula da Silva descer do palanque ridículo em que anda empoleirado, para finalmente assumir deveres e postura de Chefe de Estado. Mas duvido que a assessoria que o cerca, e o próprio presidente, consigam dar essa grandeza ao discurso preparado para a abertura da reunião com ministros, na manhã seguinte às escabrosas revelações de Duda Mendonça.

Estarei na estrada quando isso acontecer. Ouvirei pelo rádio o que Lula tem a dizer à Nação. E bem que gostaria de acreditar no surgimento de um Lula estadista. A verdade, porém, é que, em tempos de mensalão, de caixas dois escancaradas e de pagamentos de campanha feitos com dinheiro sujo em paraísos fiscais, escasseiam, miseravelmente, as razões para sustentar o otimismo.

2. Ele nos enganou

O depoimento de Duda Mendonça teve o sabor amargo da burla.

É verdade que Duda prestou um enorme serviço à Nação, ao revelar as tramas criminosas em que ele próprio se enroscou. Mas esse homem é um enganador. Não burlou apenas o fisco, nem somente lesou o sistema financeiro nacional. Ele nos enganou, com a sedução mentirosa dos seus programas e anúncios de propaganda do governo.

Agora descobrimos que, consciente e deliberadamente, Duda Mendonça sonegou impostos e usou criminosamente um paraíso fiscal para receber dinheiros ilegais, que remuneravam serviços prestados ao PT em campanhas eleitorais, uma delas, provavelmente, a que levou Lula à Presidência. Pois esse homem quis nos ensinar patriotismo. Nos propôs lições de civismo e ética. Com técnicas e artes de lavagem cerebral, inventou – lembram-se? – aquela história piegas de que o melhor de tudo é o brasileiro. E enquanto nos lesava, sugava milhões dos mesmos cofres em que Marcos Valério também mamava. Cofres que, entretanto, se fechavam para necessidades dramáticas nos campos da educação, da saúde, dos transportes, da moradia, do saneamento.

Essa praga de marqueteiros sugadores do dinheiro público precisa ser escorraçada do poder. A Secom, se é que ainda existe, deve cancelar de imediato os contratos com as empresas do sr. Duda Mendonça e pôr um fim na gastança irracional e desonesta (porque enganadora) em propaganda institucional.’



Jorge Armando Felix

‘Afinal, o que faz a Abin?’, copyright Folha de S. Paulo, 14/08/05

‘Estimado leitor : seria possível resumir em poucas palavras o que faz a Agência Brasileira de Inteligência (Abin)?

Como ponto de partida, cabe pedir que sejam deixados de lado anos e anos de imagens sobre agentes secretos que nos chegam por filmes e livros do exterior. São estórias de ação, plenas de mistérios e romantismo, de heróicos espiões engajados em alguma forma de luta do bem contra o mal (ou vice-versa). Igualmente importante, cumpre afastar da mente os ‘clichês nacionais’ sobre o mesmo tema.

As lembranças dos colegas de James Bond e as diferentes percepções sobre o SNI transformam-se em poderosa parelha capaz de impedir todo e qualquer debate racional sobre a inteligência brasileira. A névoa do mistério romântico parece não poder ser dissolvida por citações dos textos legais que criaram a agência nem mesmo pelas informações pormenorizados no site da Abin -vide endereço: www.abin.gov.br

Em síntese, como flanquear a convicção de tantos no sentido de que a verdadeira essência da atividade de inteligência está em segredos que não podem ser revelados pelo governo?

Caro leitor: sem querer romper em demasia o mistério da inteligência, peço que me acompanhe em três breves linhas de raciocínio sobre o tema.

1) A inteligência busca determinados conhecimentos que são necessários para o bem governar, por parte, sobretudo, do senhor presidente da República. O conhecimento tem que ser verdadeiro, sublinho verdadeiro, mas não necessariamente objeto das mesmas provas de autenticidade exigidas por Tribunais de Justiça, por publicações acadêmicas ou mesmo pela mídia mais conservadora. Embora hoje possamos estimar em mais de 90% o conhecimento obtido das chamadas ‘fontes abertas’ (periódicos, internet, livros, TV etc.), existem alguns conhecimentos que provêm dos chamados dados negados, aqueles que seus detentores não estão dispostos a revelar, que devem ser obtidos de outras maneiras: informantes, aquisição e acompanhamento, enfim, pelas técnicas da chamada ‘espionagem’, expressão bem de acordo com a mística da atividade.

2) O que ocorre quando, na busca do conhecimento, a atividade de inteligência detecta algo ilícito? Como exemplo prático usaremos suspeitas ou denúncias de desvio de recursos ou corrupção em alguma área do governo. A Abin busca juntar os fatos disponíveis, aprofunda-os e confirma-os com outras fontes, consolida o conhecimento de como se dá o desvio ou a corrupção: num terminal de computador no atendimento ao público? No processamento centralizado? Na confecção de um edital?

Uma vez definido o modus operandi, as informações são repassadas às estruturas do governo para eventuais correções e o bastão da investigação passa para a autoridade policial, cujos métodos de averiguação são regulados por códigos de processo aceitos pelos tribunais. À Abin interessa determinar o ‘como’. O ‘quem’ é problema da esfera criminal.

3) O terceiro aspecto, entre os muitos que poderiam ser abordados, é a necessidade ou não do sigilo para algumas das ações da inteligência. Entendo perfeitamente que o segredo que reveste ações governamentais possa ser visto como encobridor de ações ilegais, antiéticas ou politicamente injustificadas.

No que concerne ao sigilo da inteligência, cabe destacar que algumas das mais importantes atividades da Abin são ostensivas.

No caso do Brasil, temos, a título ilustrativo, o Programa Nacional de Proteção do Conhecimento, envolvendo desde o trabalho de prevenção em empresas estratégicas para o país até a conscientização de populações indígenas a respeito do valor e da necessidade de proteção de seus conhecimentos tradicionais, ou, ainda, os mais de 10 mil pedidos de informações sobre dados existentes na agência, respondidos aos próprios interessados ou a seus familiares, respeitando sempre o direito à privacidade e à proteção da honra.

Repito a pergunta: por que tanto segredo? Muitas das ações de inteligência só podem ser realizadas sob o manto do sigilo. O exemplo mais óbvio é o do desenvolvimento de instrumentos de criptografia. Um outro caso é o de ações de contra-espionagem, matéria de competência exclusiva da Abin. Ou o acompanhamento da aparição imprevista de microrganismos, contaminando, sem lógica aparente, vegetais e animais e causando enormes prejuízos ao país.

Um outro caso, imagino que igualmente óbvio, é o dos trabalhos de investigação sobre crime organizado ou outras atividades que representem perigo para a estabilidade das instituições (por exemplo, terrorismo).

De modo geral, todas as atividades de inteligência que lidam com fontes humanas tendem a ser tratadas sigilosamente. Assim deve ser para proteger os profissionais e suas famílias, bem como para resguardar os eventuais informantes de rejeição profissional, social e, em alguns casos, até de riscos a sua integridade física.

Como ponto final, cabe expressar a esperança de que o leitor com paciência para acompanhar até aqui o texto concorde com a noção de que velhos mitos não devem ofuscar a realidade. E de que a sua atenção e compreensão nos ajudem na valorização de uma atividade de Estado extremamente importante para o país. Tampouco deve o caro leitor menosprezar a força do mistério… Afinal, é triste a vida sem um pouco de mágica…

Jorge Armando Felix, 66, é ministro de Estado chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.’



Laura Greenhalgh e Sérgio Augusto

‘Eu esculhambo, tu esculhambas…’, copyright O Estado de S. Paulo, 14/08/05

‘Enquanto a crise política continua provocando estados de comoção e desapontamento, Millôr Fernandes, 82 anos, afirma de boca cheia: ‘Sou indecentemente feliz’. Alienado? Jamais. Está de olhos e ouvidos atentos a tudo – em particular aos tropeços e contradições dos que freqüentam as salas das CPIs ou o púlpito dos comunicados oficiais. Entre delcídios e delúbios, o ‘guru do Méier’ se esbalda. ‘Lula não tem consciência da própria ignorância’, analisa. ‘Chávez é um patife’, assume sem medo de ser atrevido. ‘Jefferson ainda vai entrar para a História’, avisa. ‘A esculhambação no País é geraaaal’, diz expandindo a vogal, num exagero calculado.

O olhar fixo na CPI começa cedo, ou melhor, começa assim que um amigo do peito faz soar o lembrete pelo telefone: ‘Já começou o depoimento da Zilmar. Vai lá, liga a tevê’. No ateliê em Ipanema, onde Millôr trabalha todos os dias, as questões de ordem de Brasília começam a provocar o mestre. A cada uma daquelas afirmações que não passariam pelo detector de mentiras, Millôr rebate que a canalhice é imensa, a ignorância não tem limites e o ser humano é inviável. Dispara palavrões com sua balística demolidora e confirma-se no posto de temível observador (ou seria dissecador?) da cena política nacional.

Por que se sente ‘indecentemente feliz’? ‘Porque não vivo para comprar iate e tenho dinheiro para pagar minhas contas’, explica o jornalista, escritor, dramaturgo, ilustrador e requintado tradutor dos clássicos, que não gosta de ser chamado de erudito. ‘Sou um oligofrênico topográfico. Me perco até em porta giratória’, caçoa. Ateu confesso, carrega na alma amuletos contra o politicamente correto. Odeia certinhos (‘e o ACM Neto com aquelas roupinhas, hein?’) e amaldiçoa a publicidade (‘ela vende mentiras’). Entre os cacoetes que cultiva, sente um prazer incomensurável de dizer que ‘Hitler era viado’. Tiradas assim recheiam a coletânea Todo Homem é Minha Caça, que a editora Record acaba de relançar. É livro de 1981, que não perdeu nem o viço nem a verve do autor.

Nesta entrevista exclusiva para o Aliás, Millôr pede que seus palavrões não sejam substituídos pelo ‘eufemismo dos três pontinhos’. E a primeira pergunta, leitores, é do entrevistado: ‘Vamos começar a entrevista assim: Freud era um gênio ou um bobalhão?’.

Tudo bem, Millôr, podemos começar por aí. Gênio ou bobalhão?

Nem uma coisa nem outra. Lembra as brigas que Freud tinha com o Jung? No fundo, era briga de duas bichas-loucas. Uma historiadora italiana conta uma passagem ótima com o neto do Freud. O neto pergunta: ‘Vovô, mulher tem perna?’. Faz sentido. Freud nunca viu perna de mulher e fez sua obra girar em torno do sexo. Na época dele, as pessoas iam para a cama e nem tiravam a roupa, a relação era um extra. Em compensação hoje chegamos a um ponto que, se você quiser viver um pouco mais calmo, tem de evitar o sexo, porque a transa é fácil, é imediata. Quando Freud foi para os Estados Unidos com Jung, o reitor de uma universidade quis homenageá-lo, afinal, os americanos se curvavam à psicanálise como ciência. Como sempre, Freud ‘medrou’ e não foi à cerimônia. Jung foi. O reitor fez as apresentações e no final errou. Pediu uma salva de palmas para o doutor Sigmund Freud. É assim que se faz: as pessoas jogam sua crença numa coisa científica e depois votam no Lula.

Pronto, entramos na política. Você tem acompanhado as CPIs?

Acompanho tudo. E alguém consegue deixar de ver? Que país maravilhoso é esse Brasil, que acontece essa esculhambação homérica e até agora não tem ninguém preso… Os contestados, os ameaçados, todos falam de dedo em riste!

Tempos atrás você teria dito que o Brasil é ingovernável. É mesmo?

Não disse que o Brasil é ingovernável. Não diria isso até porque o problema não é o Brasil. Veja o que aconteceu na Espanha pós-Franco. Era uma roubalheira desenfreada com o González. Aquela gente roubava dinheiro em parceria com o ETA! Era dinheiro para dar armas, dinheiro para tirar armas… Na Inglaterra, o filho da senhora Thatcher meteu a mão. O filho do Kofi Annan também, e o pai se faz de distraído.

Ou seja, roubalheira não é coisa nossa?

O que eu acho é que roubalheira, no Brasil, é algo desumano. A corrupção na época de Henrique VIII era briga de foice. O papado, aquela coisa sórdida de tirar dinheiro de todo mundo. Você tinha os pecadores, os pecaminosos e os puros. O negócio das indulgências prosperou porque as pessoas queriam morrer em pureza. Acabaram por descobrir a pureza absoluta, que é a do Cristo, e assim inauguraram o Banco Central das indulgências. O sujeito era considerado louco, tísico ou leproso se não desse a grana. Já no século 18, quando a burocracia foi criada, aí despejaram veneno no mundo. O burocrata é o fim de linha. É o cara que fica na ante-sala e não deixa você falar com quem decide.

A mala é o símbolo dessa crise. Mala para caixa dois, para recolher dízimo dos fiéis, para empréstimo… Reedita-se a antiga figura do ‘homem da mala’, o sujeito que paga tudo, que arca com as despesas…

Um momento. Quando eu vi a mala com que os agentes da Abin grampearam aquele cara, não acreditei. Eles compraram aquela coisa de um contrabandista do Paraguai, só pode ser. Hoje você filma o sujeito com uma microcâmera instalada no relógio de pulso, e a imagem é digital, o som, perfeito… O que era aquela mala da Abin?!

Pois o presidente jura que não tem nada a ver com isso tudo.

As pessoas não gostam quando falo isso, mas 95% da humanidade é absolutamente idiota, e os outros 5% são discutíveis. O Lula veio de baixo, é um homem de origem humilde, mas o partido dele tem 25 anos. Se não foi no primeiro, no segundo ou no terceiro ano, em algum momento ele passou a receber dinheiro, até como forma de salário do PT. Ora, Lula tem 59 anos. Há 25 anos, tinha 34. Com essa idade ainda se pode ir para o colégio. Passei mais fome do que ele, a diferença é que eu era carioca. Meu pai morreu quando eu tinha 1 ano, minha mãe, quando eu tinha 10, nós descemos de classe média para proletariado e depois para lumpesinato. Não havia literalmente o que comer, e nem por isso fiquei me queixando. Quando passei de 100 para 300 réis de salário, ia para o curso do Liceu de Artes e Ofícios e pagava para estudar. Não fiquei esperando o Estado bancar.

Você acha que o presidente tem essa mágoa não resolvida, a mágoa da miséria?

Hitler também veio de baixo. Era um filho da puta no meio daquela Áustria cheia de milionários. Agora fica essa conversa de que a elite não engole o Lula. Acabei de escrever uma nota para a Veja com a relação de lucros dos seis ou sete maiores bancos do País. A lista da elite. O que menos lucrou declarou ganhos da ordem de R$ 1,5 bilhão! Daí escrevi: enquanto isso, um bando de vagabundos vai ao Banco Central de Fortaleza e rouba R$ 160 milhões. Mas já se disse: ‘O que é um assalto ao banco diante de um banco?’.

Não há mesmo jeito de acabar com a corrupção?

Corrupção é câncer que não se extirpa. O pessoal se recolhe por um tempo, mas depois volta a meter a mão. Tenho uma idéia: o Brasil deveria instituir o voto contra. Não tem o voto a favor? Então, quero votar contra o Maluf, por exemplo. Duvido que o Garotinho se eleja para alguma coisa.

O que você diz das promessas de faxina ética, das manifestações populares, das convocações pela internet? Vem aí uma onda patriótica?

Tem esse movimento pedindo paz, que coisa linda, e os caras lá do morro vendo tudo e dando risada. Conhece aquela frase? ‘O patriotismo é o último refúgio do canalha.’ E eu acrescentaria: no Brasil, é o primeiro. Agora tem a denúncia de que pagaram despesas do presidente no valor de R$ 29 mil. Não é nada na escala da roubalheira. Mas, como o salário mínimo é R$ 300, R$ 29 mil equivalem a oito anos de trabalho de uma pessoa que vive com essa mixaria!

Você teve problemas com o ex-ministro Aldo Rebelo?

Escrevi alguma coisa quando ele fez a tal lei proibindo estrangeirismos. Ora, quando os portugueses chegaram a este país trouxeram a língua deles, e pronto. Se não, até hoje estaríamos falando nhangatu, na base do ‘nós não sabe falar português’.

Mas de onde veio a bronca do ministro?

Ele baixou a tal lei e eu escrevi que aquilo era idioletice (sistema lingüístico de um indivíduo). O homem se sentiu ofendido e me processou. As pessoas não têm obrigação de saber o que é idioletice, mas o ministro tem. Ele pediu uma indenização de R$ 30.200, já quantificando o que queria receber! Não disse que ele é um idiota, mas pergunto: no politicamente correto não se pode dizer que um sujeito é idiota? Esse pessoal do governo não sabe que existe poesia, prosa e língua falada. Você escreve poesia. Você escreve prosa. Mas você fala a língua. Fala e vai modificando a língua.

O ministro foi mexer justo com você, um tremendo frasista.

Gosto da precisão da frase. Sartre diz: ‘O inferno são os outros’. Certo, mas eu completo: ‘E o céu também’. Há o dito popular: ‘Cão que ladra não morde’. Eu acrescento: ‘Enquanto ladra’. A igreja prega que ‘o dinheiro não é tudo’. Não é mesmo, dinheiro não compra a juventude, o vigor físico, a inteligência, a felicidade, etc., etc. Então eu diria assim: ‘Tudo é a falta de dinheiro’.

Como ficou o processo?

Respondi com um arrazoado para o ministro, queria ver advogado fazer algo parecido. Mostrei o que é idioletice, fiz um histórico da palavra em várias línguas, fui chamando o sujeito de ignorante de alto a baixo. Entreguei o arrazoado para o departamento jurídico do jornal e esqueci o caso. Mas veja a truculência do método: se eu escrevi um artigo e fui processado, o que dizer da imprensa? Ela pode ser intimidada por esses caras. Eles não sabem que sou uma pessoa honesta por imposição do mercado.

Como assim?

Toda vez que me disponho a ser corrompido, não chegam no meu preço. Quando me dão 5 mil, pode ter certeza que eu tinha pensado em 10 mil. Daí vem um sujeito e me oferece 20 mil, eu que não estou acostumado já vou logo perguntando: o que é que você está pensando de mim?! Vou contar uma piada. O camarada embarca num avião e vai para Nova York com uma mulher linda na poltrona ao lado. Viaja horas entusiasmado, louco para puxar conversa com aquele mulherão. Faltando uma hora para terminar o vôo, toma coragem e diz: ‘Olha, estamos chegando, você é linda, maravilhosa, se eu lhe oferecer US$ 100 mil, você passa uma noite comigo?’. A mulher olha para ele, pensa e acaba aceitando, afinal, são US$ 100 mil. Passa meia hora e o sujeito abre o jogo: ‘Estou perdido de encanto por você, mas na verdade eu só posso oferecer US$ 10 mil’. A mulher pensa, pensa, vá lá, está bem. Quase na hora da chegada, o sujeito diz que está em dificuldades financeiras, que pode apenas oferecer US$ 1.000 dólares pela noite. A mulher reage: ‘O quê?! Está pensando que eu sou uma prostituta?’. Ao que o sujeito responde: ‘Isso ficou estabelecido na primeira conversa. Agora estamos apenas discutindo o preço’.

Millôr, você que é tradutor de mão cheia, que tem interesse pelas palavras, como se sente assistindo às CPIs? A língua tem sido maltratada?

Completamente. Não só pelos depoentes como pelos interrogadores. Eles não batem ‘lé’ com ‘cré’, não há preposição no lugar certo, não tem plural, não tem verbo no tempo adequado… Sabe o que escrevi sobre essa turma? ‘Estão convencidos de que a regência acabou com a proclamação da República’. Este país é incrível… Daí vêm os gays e começam a bancar apostas para saber quem é o mais gostosão da CPI. Parece que o Delcídio está ganhando, com algo em torno de 53% dos votos, contra Antonio Carlos Magalhães Neto, que teria 38%. Ah, o ACM Neto, com aquelas roupinhas… Deve estar furioso.

O que você acha das metáforas do presidente?

Futebolísticas. Antes mesmo que ele chegasse ao poder supremo, eu disse do Lula: ‘A ignorância subiu-lhe à cabeça’. Isso não é piada! O homem popular é ‘endeusável’ enquanto está no popular. Quando está, por exemplo, no botequim. Mas não se deve tirá-lo do botequim para discutir na Academia Brasileira de Letras, porque um mínimo de coisas esse sujeito tem de saber. Tem de saber que houve gregos, romanos, a Renascença. Tem de saber!

O que é cultura, Millôr?

Vou lhe dizer. Estou lendo o novo livro do Stephen Hawking, aquele cientista todo aleijadinho. Só um idiota vai achar que se pode ler esse livro de ponta a ponta. Então leio cinco páginas hoje, dez amanhã e, quando terminar, se tiver compreendido 20%, será muito. Cultura é isso: entender a extensão da própria ignorância. Lula não tem consciência da sua ignorância.

Seria o ‘endeusamento’ do homem popular?

É o que estou dizendo. Quando ele começou a falar para platéias estrangeiras percebendo que não precisaria saber inglês, francês ou alemão, porque contava com a tradução simultânea, quando se deu conta de que Bush só fala bushismos e que o Chirac só está a fim de falar francês, daí relaxou. Sentiu-se bem entre os monoglotas do poder. O que o Lula não sabe é que todo império é monoglota – sempre. Os portugueses chegaram dominando pela língua. Lula é fronteiriço.

O que é ser fronteiriço?

Quando está no meio dele, usando metáforas futebolísticas, ele se sai bem. Quando o meio é outro, ele se perturba. Pelos discursos que faz, o que se nota é a falta de coerência. Por exemplo: o caso do filho dele, acusado de ter montado uma empresa com favorecimentos. Numa hora, Lula discursa e diz que é preciso apurar tudo. Meia hora depois, reaparece dizendo que a família está sendo atacada. E fala, fala, ininterruptamente! É fronteiriço, não sabe o que está lhe acontecendo.

Como uma derrocada do Lula vai bater no povão? O self-made man à brasileira é um projeto que não deu certo?

Espera aí, self-made man é outra coisa, não é o sujeito que chega no topo de qualquer maneira. Você pode me dizer: Millôr, você é um preconceituoso. Não sou. A vida é normativa, como a própria Presidência. Por exemplo, o sujeito não pode ser presidente com menos de 35 anos. Isso é um critério. Você não operaria seu cérebro com um médico sem diploma. Nem voaria num avião conduzido por um sujeito que não é piloto. Imagina só: o piloto não aparece e a companhia aérea recruta um faxineiro do PT que estava ali, dando sopa. Você embarcaria? O povão tem o direito de eleger quem quiser e pode fazer burrada. No caso do Lula, não foi só o povão, não. Fomos todos nós.

Você está dizendo que o ‘povão’ vota mal?

Vota por questões sensoriais. Não é só aqui. Na Alemanha de hoje, um candidato neonazista pode não ganhar, mas vai ter uma boa votação. O cara não precisa nem ter aquele bigodinho, aquele cabelinho de viado que o Hitler tinha. Aliás, abre parêntese: Berlim tem 3 milhões de habitantes. Sabe quantos são os gays confessos? Uns 300 mil, fora os que estão no armário, os que não saíram do bunker. Hoje, em certas partes da Europa, como já não se estigmatiza ninguém, o sujeito deve declarar sua opção preferencial ao ocupar um cargo público. Pergunto: se o camarada diz que é, mas não é, seria falsidade ideológica? Fecha parêntese.

A crise política pode dar margem ao aparecimento de um novo Collor?

Não tem dúvida. Aqui no Brasil, quando se passa por um período de esculhambação generalizada, a sociedade cobra lei e ordem. Daí pode pintar um tipo desses, sim. É o perigo. Até hoje na Itália fala-se com saudade que, na época do Mussolini, os trens chegavam na hora. A verdade é que o mundo sempre fez acordo com a hipocrisia e a canalhice é imensa. Se não tivessem tirado o pão da boca do Pedro Collor, ele não teria falado. E o Roberto Jefferson? Quando percebeu que a bomba ia explodir em cima dele, resolveu falar. E se converteu numa figura histórica.

Você acredita que Jefferson passará para a História?

Claro, ele derrubou a República e acabou com o PT!

O que você achou do pronunciamento que o presidente fez à Nação, na sexta-feira?

Resultado da ignorância dele e dos ‘intelectuais’ que o assessoram. Como é que ele fala no ‘partido que eu fiz’? Isso não se diz assim, na primeira pessoa. O uso do ‘nós’é um aprendizado cultural que Lula não teve. E aquele grupo de ministros que assistia ao pronunciamento? Lamentável. Eu até fiz uns versinhos. Chama-se ‘Poema em ão’. É assim: Se ele sabe do mensalão/é charlatão./Se ele não sabe/é um boçalão. Eu me senti ofendido com o pronunciamento.

Por que ofendido?

Porque é muita ignorância. Não adianta, livro é livro e essa gente não leu nada, não escreveu nada. Até a bicha-louca do Hitler escreveu um livro na cadeia, que, convenhamos, até fez certo sucesso. ‘Vão ter de me engolir’, diz Lula parodiando Zagallo, que não é lá o meu filósofo predileto. Daí avisei: ele agora vai aprofundar mais e citar o Chacrinha. Prefiro ficar com a minha filósofa, Dercy Gonçalves, que aos 98 anos anda dizendo o seguinte: ‘Hoje puta é status’. Fernanda Karina, a secretária, acusou e já foi se preparando para sair nua na Playboy. Ao que parece, o material não foi aprovado. Uma coisa que humilha a gente é ouvir ‘não quero posar nua, quero ser reconhecida pelo meu trabalho’. Eu não quero ser reconhecido pelo meu talento, quero sair nu na Playboy!!

Certa vez Paulo Francis atribuiu a seguinte frase a você: ‘Se o Lula for eleito, o Brasil vai virar uma Romênia’. Você de fato disse isso?

Não me recordo. Disse alguma coisa parecida em relação ao João Amazonas, o velho comunista. Escrevi o seguinte: ‘Revelado. João Amazonas tem uma conta na Albânia’. E vou adiante. ‘José Dirceu tem uma conta em Cuba. Marcos Valério tem uma conta em Las Vegas.’ E o jantar que o Lula teve com o Chávez, sem avisar o Itamaraty? É ou não é a prova de que é fronteiriço? Este Chávez, que é um patife um pouco mais esperto, vem aqui para tirar uma castanha qualquer da brasa. A esculhambação geral vai dar num ridículo atroz.

É o fim do sonho socialista?

Olha aqui, a idéia do socialismo é maravilhosa. Como a idéia do cristianismo. Mas, na minha vida toda, eu nunca encontrei um cristão e um comunista de verdade. Sou um humanista ateu. No entanto, sou mais comunista e mais cristão que muita gente. Eu me responsabilizo pelas empregadas que me atendem. Não vou abandoná-las jamais. A idéia do socialismo é incrível, mas está fadada a não dar certo. Porque o ser humano não é isso. Ele é capitalista na essência. Quando desabou a União Soviética, fiquei surpreso com o tamanho do rombo econômico, mas a máfia já estava lá. Já tinha milionário, já tinha carrão na porta do restaurante. Tudo bem, sempre se pode colocar todas as contas na internet, fazer pressão, protestar na rua, mas, quando o ‘partido da pureza’ chega ao poder imitando o modelo mexicano, daí não dá! Olha aqui, não vejo como o mundo possa se salvar.

Hoje dois publicitários estão no epicentro do escândalo – Marcos Valério e Duda Mendonça.

Não é por acaso. O jornalismo é uma profissão cujo objetivo ‘filosófico’ é trazer à tona certas coisas que as pessoas não sabem. Tem um compromisso com a verdade. Agora, qual é o objetivo ‘filosófico’ da publicidade? A mentira. É mentir sobre o sabonete, a maionese, a margarina, o político. Fazer anúncio sobre seguro médico é uma ofensa. Fico envergonhado ao ver que os bancos estão tomando dinheiro dos velhinhos e os atores da Globo anunciam isso. Os velhinhos pegam o dinheiro e pagam juro antecipado! É uma indecência. E por que o Estado tem de fazer publicidade? O que o Ministério da Saúde precisa é divulgar o calendário das vacinas, coisas assim. Não tenho respeito pela publicidade. Os caras ficam aí se gabando de que sabem fazer slogans e passam anos para criar coisas como ‘Coca-cola. É isso aí’. De quantos slogans precisam? Faço dez agora.

Você poderia fazer algumas das suas ‘definições apertadinhas’?

Vamos lá. Deixa pegar meus óculos. Não sei fazer definição sem eles.

Cueca.

Banco de dados. Afinal, todo o dinheiro que o sujeito levava era dado.

Mensalão.

Estupro econômico-social que não ousa dizer seu nome.

Repilo.

Poderia ser marca de repelente.

Campo Majoritário.

Maracanã.

Sujeito vertical.

Indivíduo que se curva ao menor vento contrário.

Opportunity.

A melhor tradução seria: Daniel Dantas.

Banco Rural.

Como diz a publicidade, nem parece um banco.

Lobista.

Praga para matar com ‘repilente’.

Salário mínimo.

Salário máximo pago a um pobre diabo.

Comissão de Ética.

Ética que já vem com preço.’