Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Carlos Heitor Cony

‘Aproveita-se a traição, mas despreza-se o traidor. O ditado é antigo, do tempo das cavernas, mas será sempre atual. É o caso de W. Mark Felt, ex-agente do FBI, que agora assumiu ser o Garganta Profunda, informante principal da dupla de jornalistas do ‘Washington Post’, responsável pela série de reportagens sobre o caso Watergate, que provocaria a renúncia do ex-presidente Richard Nixon, em 1972.


Foi positivo o resultado da traição. Livrou os Estados Unidos de um presidente que participou do plano de invasão da sede do partido que fazia oposição a seu governo, pretendendo voltar ao poder. Mas não foi por aí que Nixon sentiu-se obrigado a renunciar. A opinião pública norte-americana voltou-se contra o seu presidente porque ele mentiu diversas vezes, alegando que nada tinha com o caso. Naquele tempo, o cidadão comum dos EUA, perdoava quase tudo dos outros, menos a mentira.


Um presidente podia ter seus erros, mas não podia mentir à nação. Mais tarde, tanto Bill Clinton (no caso da estagiária da Casa Branca) como principalmente George W. Bush mentiram, este último, ao mundo inteiro, e sua mentira provocou uma guerra em que milhares de pessoas continuam morrendo.


Voltando ao caso do Garganta Profunda. Ele não agiu por motivação superior nem por amor à verdade. Após a morte de J. Edgar Hoover, que chefiara o FBI durante anos, Felt acreditava que seria o substituto do lendário manda-chuva da polícia federal dos EUA por ser o segundo na hierarquia funcional. Nixon nomeou um outro e o preterido vingou-se, contando à dupla de jornalistas tudo o que sabia sobre a cúpula da Casa Branca, fornecendo inclusive fitas em que Nixon dizia palavrões .


Toda glória aos dois jornalistas que aproveitaram as informações de um funcionário ressentido e mantiveram até agora o sigilo da fonte.


Uma fonte que nada teve de heróica nem de patriótica.’



Katharine Q. Seelye


‘Furo da ‘Vanity Fair’ pegou o ‘Post’ de surpresa ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 2/06/05


‘Por 30 anos, The Washington Post manteve em segredo a identidade do Garganta Profunda, esperando o momento certo para revelar o nome da pessoa que ajudou o jornal a desenvolver a maior história de sua história.


Na terça-feira, o Post foi furado no assunto por uma revista mensal. A revelação da Vanity Fair pegou o jornal de surpresa e o mergulhou na confusão. A reação inicial foi não fazer comentários. Mas às 17h29 o diário confirmou, em seu website, que W. Mark Felt era o Garganta Profunda.


‘Isto realmente nos pegou’, disse Ben Bradlee, editor-executivo do Post na época do Watergate. ‘Eu não fazia idéia do que estava para acontecer.’ A surpresa deveu-se em parte ao fato de o Post ter prometido a Felt que manteria sua identidade em segredo até sua morte. Além disso, a Vanity Fair, que segue uma política de checagem dos fatos antes da publicação dos artigos, deixou de entrar em contato com os repórteres Bob Woodward e Carl Bernstein – intencionalmente. Tom Wilkinson, um editor-chefe adjunto do Post, afirmou que a reação no jornal foi de surpresa.


Assim que a família de Felt admitiu na tevê que ele era o Garganta Profunda, o pessoal do jornal sentiu que não tinha escolha a não ser abandonar o segredo. Como disse Bernstein: ‘Assim que pudemos confirmar que este era o desejo da família e ela dizia que seu pai e avô era o Garganta Profunda, e com o consentimento deste, percebemos que tínhamos uma nova obrigação – a de ser francos.’ Michael Getler, o ombudsman do jornal, afirmou: ‘Certamente isso é estranho num aspecto: o Post foi furado numa história que lhe é intimamente familiar. Por outro lado, se foi uma decisão que partiu da família, parece que realmente não havia como evitar isso.’’



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‘‘Furo’ de revista pega ‘Post’ de surpresa’, copyright O Globo / The New York Times, 2/06/05


‘Por 30 anos, o ‘Washington Post’ manteve em segredo a identidade de Garganta Profunda, esperando o momento certo de revelar o nome da pessoa que ajudou o jornal a publicar a mais importante reportagem de sua história. Anteontem, o jornal foi ‘furado’ por uma revista justamente nesse assunto.


A revelação da ‘Vanity Fair’ pegou o jornal de surpresa e o lançou no meio de um furacão. A reação inicial foi não comentar. Mas às 17h29m, o ‘Post’ confirmou em seu site que W. Mark Felt era o Garganta Profunda.


– Isso realmente desabou sobre nós – comentou Benjamin C. Bradlee, o diretor de redação de ‘Post’ na época do Watergate. – Eu não tinha idéia de que isso ia acontecer.


Revelação reúne trio que derrubou o presidente


A surpresa veio em parte pelo fato de o jornal ter prometido a Felt manter o segredo até sua morte, e em parte pelo fato de a ‘Vanity Fair’, que tem uma política de checar os artigos, não ter entrado em contato com Bob Woodward e Carl Bernstein.


Tom Wilkinson, editor-executivo-assistente do jornal, disse que a reação no ‘Post’ foi de surpresa.


– Acho que não houve muito tempo para digerirmos isso.


Quando a família de Felt reconheceu na TV que ele era o Garganta Profunda, o jornal viu que não havia muita escolha.


– Uma vez que pudemos comprovar que era realmente o desejo da família, e que tinham o consentimento dele, pareceu-nos que tínhamos uma nova obrigação, que era ir em frente – contou Bernstein.


As horas entre o ‘sem comentários’ do ‘Post’ e o momento em que reconheceu a identidade do informante foram frenéticas. Leonard Downie Jr., diretor de redação, que estava num encontro administrativo, correu para a redação. Woodward, editor-executivo-assistente, também estava fora da cidade.


– Nós realmente tivemos que deixar a poeira baixar – disse Bradlee. – Eu me senti comprometido por ter dado minha palavra a Woodward.


Às 12h15m a revista ‘Editor and Publisher’ citou Bernstein em seu site repetindo o que ele e Woodward disseram por anos: que só revelariam a identidade do Garganta Profunda após sua morte. Poucas pistas vinham do alto escalão do ‘Post’ sobre como o jornal reagiria.


A ‘Vanity Fair’ dizia que a família de Felt queria colaborar com Woodward num artigo, e que se questionara a determinada altura por que o jornalista devia ‘ficar com a glória’ pelo que via como a coragem de seu pai. A revista afirma que Woodward marcou duas visitas à família para tratar do assunto, mas que as cancelou. É sabido que ele planeja escrever um livro sobre o Garganta Profunda.


O artigo da ‘Vanity Fair’ mostrava Woodward especialmente preocupado sobre se Felt estava em condições mentais de decidir se desejava revelar sua identidade e se a família o estava pressionando a isso.


A confirmação do ‘Post’ foi feita no site do jornal com uma declaração de Woodward e Bernstein: ‘W. Mark Felt era o Garganta Profunda.’


Por volta de 18h30m, Woodward saiu de sua sala com Bernstein e Bradlee, recriando uma cena dos velhos tempos quando juntos ajudaram a derrubar um presidente. Muitos que estavam na redação no quinto andar do ‘Post’ pararam para observar a cena, enquanto os três eram fotografados.’



Paul Farhi


‘Operação tão sigilosa quanto seu personagem’, copyright O Globo The Washington Post, 2/06/05


‘O grande ‘furo’ da ‘Vanity Fair’ quase não aconteceu. Ele começou com um telefonema há dois anos de John D. O’Connor, um advogado de São Francisco, para o diretor da revista, Graydon Carter. O’Connor, de acordo com o editor David Friend, disse ter um cliente que era o Garganta Profunda e que desejava ‘se revelar nas páginas da Vanity Fair’.


Assim começou o drama que levou à revelação anteontem de que o ex-funcionário do FBI W. Mark Felt era a fonte do jornalista Bob Woodward no escândalo de Watergate. A confirmação de Woodward preencheu o que o ex-diretor de redação do ‘Post’ Ben Bradlee chamou de ‘o último fato desconhecido’ nos eventos que levaram à queda de Richard Nixon.


O’Connor queria que a revista pagasse a Felt e sua família pela reportagem – uma condição com a qual a revista não concordou. O advogado decidiu então publicar um livro. Mas após um ano tentando encontrar uma editora, voltou à revista.


Começou então um processo longo e secreto. Embora O’Connor tenha sido o principal autor, a revista complementou seu trabalho com pesquisa e checagem de fatos. Cerca de 15 jornalistas foram designados para a reportagem, que ganhou o codinome de WIG (de Watergate), e os envolvidos assinaram um termo de sigilo.


A preocupação de que a história vazasse era tal que Joan, filha de Felt e uma das principais fontes, começou a se referir ao pai como ‘Joe Camel’. Os editores usaram uma manchete falsa para proteger a reportagem: ‘A porta do carro bate.’


Embora Woodward fizesse contato com a família de Felt periodicamente, nunca foi informado de que a identidade da fonte iria a público, contou o diretor de redação do ‘Post’, Leonard Downie Jr. Woodward e o ‘Post’ decidiram confirmar a informação porque ‘a família de Felt e o advogado tomaram a decisão por ele, e nós não tivemos escolha’, disse Downie.


A revista não responde a uma questão chave: aos 91 anos e após um derrame, Felt estaria em condições de confirmar sua identidade a O’Connor? Além disso, alguns pontos da reportagem não estão claros. O’Connor observa que Felt lhe disse: ‘Eu sou o sujeito que chamam de garganta Profunda.’ Mas não cita o contexto.


O’Connor desempenhou um papel duplo: fornecia consultoria legal à família de Felt enquanto escrevia o artigo, o que significa que a informação pode ter sido confiada a ele sob a prerrogativa de advogado-cliente e que, portanto, não estaria sujeita à revelação. Além disso, como O’Connor deixa claro, a família de Felt buscava lucro financeiro e tinha um incentivo para pressionar o ex-agente a ir a público.’



Dan Balz e R. Jeffrey Smith


‘Felt se ressentia da ingerência no FBI ‘, copyright O Estado de S. Paulo / The Washington Post, 2/06/05


‘W. Mark Felt sempre negou que fosse Garganta Profunda. ‘Não era eu e não sou eu’, disse ele à revista Washingtonian em 1974, quando Richard Nixon renunciou, após uma extensa investigação e uma ameaça de impeachment, por causa das dicas que Felt deu ao Washington Post.


Durante três décadas ele conviveu com um dos maiores segredos da história do jornalismo e seu próprio sentimento de conflito sobre o papel que tivera na queda de um presidente. Ele foi um herói por ajudar a revelar a verdade, ou um vira-casaca que traiu seu governo, seu presidente e o FBI que ele venerava, vazando informações para a imprensa?


Havia muitos motivos para ele sentir esse conflito. Era um fiel servidor da polícia federal à imagem que J. Edgar Hoover criara para o FBI em seus dias de glória – um funcionário de carreira que vivia segundo os códigos do departamento, um dos quais era a sacralidade de uma investigação e a proteção de segredos. Ele perseguiu todo tipo de violador da lei, usando todos os meios disponíveis, e foi condenado em 1980 por autorizar batidas ilegais em casas de amigos de membros de um grupo clandestino. Depois foi perdoado por Ronald Reagan.


Mas se havia razões para resistir a desempenhar o papel de fonte anônima, outros motivos o levaram a falar. Felt acreditava que a Casa Branca estava tentando frustrar a investigação do FBI sobre Watergate e Nixon estava decidido a enquadrar o FBI depois da morte de Hoover, em maio de 1972, seis semanas antes da invasão dos escritórios do Comitê Nacional Democrata no Watergate.


Felt pode ter tido uma motivação pessoal também. Por ocasião da morte de Hoover, ele era o provável sucessor à diretoria do FBI, mas a Casa Branca nomeou uma pessoa de fora do departamento, L. Patrick Gray, um promotor-geral adjunto, como diretor interino, e depois pressionou Gray para manter a Casa Branca informada sobre as descobertas do FBI.


‘Como ele disse recentemente a minha mãe’, afirmou seu neto, Nick Jones, ‘imagino que as pessoas costumavam pensar que Garganta Profunda era um criminoso. Mas agora elas o consideram um herói.’’



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‘No conflito de se sentir herói e traidor, a opção pelo silêncio’, copyright O Globo / Washington Post , 2/06/05


‘Mark Felt sempre negou que fosse o Garganta Profunda. ‘Não fui eu e não sou eu’, disse à revista ‘Washingtonian’ em 1974, na época em que Richard Nixon renunciou à Presidência, depois de uma longa investigação e uma ameaça de impeachment, em grande parte devido à orientação que Felt dera ao ‘Washington Post’.


Foi uma negativa que ele manteve publicamente por três décadas, até anteontem. Durante esse período, viveu com um dos maiores segredos da História do jornalismo e com seu sentimento de conflito e tensão em relação ao papel que desempenhara na renúncia de um presidente: era um herói por ajudar a trazer a verdade à tona, ou um desertor que traiu seu governo, seu presidente e o FBI que reverenciava ao vazar informações para a imprensa?


Havia muitos motivos para Felt se sentir em conflito. Ele era leal ao FBI na imagem criada por J. Edgar Hoover (diretor do FBI). Perseguia infratores de todos os tipos, usando qualquer meio disponível, e foi condenado em 1980 por autorizar intervenções ilegais contra amigos e membros da Weather Underground. Mais tarde foi perdoado pelo presidente Ronald Reagan.


Mas se havia motivos para resistir a desempenhar o papel de fonte anônima, havia outros que o levaram a falar. Felt acreditava que a Casa Branca estava tentando frustrar uma investigação do FBI sobre Watergate e que Nixon estava determinado a controlar o FBI após a morte de Hoover, em maio de 1972, seis semanas antes da invasão dos escritórios do Partido Democrata no Edifício Watergate. ‘Desde o início, estava óbvio para o FBI que estava havendo um encobrimento’, escreveu Felt em suas memórias de 1979, ‘A pirâmide FBI’.


Felt pode ter tido também uma motivação pessoal para começar a conversar com o repórter do ‘Post’ Bob Woodward. Na época da morte de Hoover, ele era um provável candidato a assumir a diretoria do FBI. Em vez disso, a Casa Branca nomeou uma pessoa de fora, L. Patrick Gray III, procurador-geral-assistente, e agiu para que Gray se tornasse um canal para mantê-la informada sobre o que o FBI fazia.


Se houve violação de lei, o crime teria prescrito


Felt atuou em tempos extraordinários da História dos EUA, e da história do FBI que ele fora treinado para proteger a todo custo. Confrontado com uma Casa Branca sem princípios, uma investigação explosiva e pressão política acentuada, decidiu derramar segredos, ajudando anonimamente a mudar o curso da História em encontros clandestinos com Woodward no meio da noite em estacionamentos subterrâneos.


Felt era visto como um modelo de funcionário do FBI. Harry Brandon, que se aposentou no FBI como vice-assistente para contra-inteligência e contraterrorismo, lembra-se dele:


– Era um sujeito duro. Correto. Muito honesto. Muito correto.


Felt teve uma carreira sólida no FBI. No início dos anos 70, como um dos mais altos funcionários, começava a demonstrar independência política. Em 1971, resistiu a uma diretriz para realizar escutas e testes de detecção de mentiras para encontrar a fonte de vazamentos sobre a estratégia de segurança nacional de Nixon. Em março do ano seguinte, o governo estava em apuros com a descoberta de um memorando de um lobista da gigante de comunicações ITT. O documento dizia que uma contribuição da empresa de US$ 400 mil à campanha de Nixon levaria o Departamento de Justiça a desistir de uma ação contra a ITT, que era acusada de monopólio. A Casa Branca pediu uma avaliação do FBI de que o memorando era forjado. Hoover designou a tarefa de supervisionar sua inspeção a Felt. Mas este relatou dias depois que o laboratório do FBI não podia chegar a uma conclusão definitiva, o que minou a alegação de que o memorando era falso.


Ex-promotores federais americanos disseram ontem que Felt violou as políticas do FBI e do Departamento de Justiça ao vazar as informações para a imprensa, mas acrescentaram que não está claro se violou alguma lei. Se isto aconteceu, mais de 30 anos se passaram e o crime estaria prescrito. Com agências internacionais’



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‘Execrado por alguns, elogiado por outros’, copyright O Globo, 2/06/05


‘Figuras proeminentes do escândalo de Watergate tiveram reações diversas – do choque à admiração – à revelação de que W. Mark Felt, ex-número dois do FBI, é o Garganta Profunda. Não faltou quem o considerasse traidor. E até mesmo o presidente George W. Bush admitiu sua curiosidade sobre Felt:


– Posso dizer que a revelação me pegou de surpresa. Estou ansioso para ler mais sobre sua relação com a mídia – disse Bush.


Perguntado se Felt é um herói, o presidente se esquivou:


– Ele foi… é difícil para mim julgar. Estou me informando mais sobre a situação.


Já Richard Ben-Veniste, advogado do processo do caso Watergate, disse que o reconhecimento por Felt de que é o Garganta Profunda mostrou que ‘a importância de dedos-duros não deve ser subestimada, particularmente quando há excessos do governo’. Mas Charles Colson, que foi alto assessor do presidente Richard Nixon e passou sete meses na prisão por obstrução da Justiça, disse estar chocado.


– Quando um presidente precisa temer que o vice-diretor do FBI esteja se enfiando em corredores escuros para espalhar informações no meio da noite, está com problemas – afirmou.


Por sua vez, Patrick Buchanan, que escrevia discursos de Nixon, considerou Felt ‘um traidor’ e ‘uma cobra’.


– Acho que Mark Felt estava envergonhado do que fez, e por isso mentiu por 30 anos. E tinha que estar mesmo – disse.


Foi esse tipo de reação que teria levado Felt a manter seu segredo por mais de 30 anos. Mas outros de seus contemporâneos disseram que ele prestou um grande serviço público, num período em que autoridades do governo – inclusive do FBI e do Departamento de Justiça – tentavam varrer o escândalo para debaixo do tapete. Terry Lenzner, da Comissão Watergate do Senado, disse que sua equipe ‘não existiria se aquelas reportagens não tivessem sido escritas, porque a coisa toda teria sido enterrada’.


– Francamente, acho que o motivo pelo qual Felt virou o Garganta Profunda é que ele teve a percepção de que (L. Patrick) Gray (diretor do FBI) estava participando do esquema de encobrimento e que isto destruiria a reputação do FBI. Ele era um clássico sujeito do FBI. Queria proteger o FBI. E o fez – disse.


Espionagem para evitar comunismo


Para Mike Gravel – ex-senador democrata que esteve no centro de um caso judicial sobre documentos do Pentágono sobre o envolvimento dos EUA na Guerra do Vietnã – Felt merecia a Medalha de Liberdade Americana.


– Ele é um dedo-duro e um herói. Nixon estava cometendo um crime e este sujeito o delatou – afirmou.


Segundo Gravel, dedos-duros são essenciais para checar governos que guardam segredos, e a Casa Branca de Bush precisaria de um. O cubano Bernard Barker, um dos condenados no caso Watergate, discorda:


– Felt é um traidor de sua pátria e me dá asco.


Para ele, ao espionar a campanha democrata, o governo republicano tentava evitar que os EUA caíssem nas mãos de um presidente comunista. O cubano, que participou da espionagem, disse que ele e outros envolvidos tentavam provar que o candidato democrata na época, George McGovern, recebia financiamento de Havana.’



José Meirelles Passos


‘Revisão de uso de fontes gera debate na mídia dos EUA’, copyright O Globo, 2/06/05


‘A revelação do maior segredo do jornalismo dos Estados Unidos aconteceu num momento crucial, em que a imprensa americana – acossada por recentes escândalos provocados por reportagens mal produzidas ou simplesmente inventadas – vive um processo de revisão de suas normas que, em determinados momentos, beira a autoflagelação. Tal revisão tem a ver, justamente, com o uso de fontes anônimas. Elas devem ser usadas ou não? Até que ponto? Os editores ou proprietários dos meios de comunicação deveriam ser, obrigatoriamente, informados por seus jornalistas sobre a identidade de suas fontes confidenciais?


Jornal lembra que segredo foi mantido apesar de pressão


Lou Cannon, veterano repórter que cobriu a Casa Branca vários anos para o ‘Washington Post’ e hoje leciona jornalismo na Califórnia, acha que o mais importante continua sendo a honestidade dos repórteres e a confiança que os seus superiores neles depositam:


– Todos sabemos que fontes anônimas vêm sendo utilizadas exageradamente. Mas esse episódio (Watergate) mostra que aquela história jamais viria à luz se tivéssemos uma regra contra o uso de fontes anônimas – disse ele.


Em editorial ontem, o ‘Post’ lembrou que a dupla Bob Woodward-Carl Bernstein manteve o segredo ‘apesar de extraordinária pressão que o jornal sofria da Casa Branca, incluindo acusações de que o Garganta Profunda era uma invenção’. E concluiu dizendo que se a mais famosa fonte anônima na história do jornalismo americano tivesse permanecido calada, e o jornal não tivesse feito um trabalho rigoroso, o presidente Richard Nixon ‘poderia ter tido êxito num dos mais sérios abusos de poder já empreendidos por um presidente americano’.


O episódio está, além de tudo, servindo para estabelecer em definitivo a honestidade de um repórter cujo êxito incomoda muita gente. Toda vez que publica uma reportagem, tanto no ‘Washington Post’ ou em forma de livro, chovem críticas sobre o seu uso freqüente de fontes anônimas, pontilhadas de insinuações de que poderia ter inventado certas informações.


– O fato é que jamais alguém me processou judicialmente por uma informação falsa ou uma suposta mentira – disse Woodward certa vez em conversa com O GLOBO.


Outros, como Judith Miller do ‘New York Times’ e Matt Cooper, da revista ‘Time’, vêm sendo duramente pressionados – sob ameaça de prisão – a revelar as fontes num caso que também envolve a Casa Branca. ‘Vivemos uma era cínica. A imprensa foi derrubada de seu pedestal da era Watergate e os promotores públicos estão buscando as fontes anônimas porque é mais importante lacrar um vazamento do que obter a verdade’, escreveu Richard Cohen, articulista do ‘Post’.


‘O que existe é reportagem bem feita ou malfeita’


A identificação do Garganta Profunda destaca, ainda, um aspecto cada dia mais raro nas redações: a ousadia de editores e proprietários dos meios de comunicação em arriscar seu prestígio confiando em informações trazidas pelos repórteres. Segundo Ben Bradlee, editor-chefe do ‘Post’ na época de Watergate, tanto a dona e presidente do jornal, Katharine Graham, quanto seu filho e sucessor, Donald Graham, jamais perguntaram a identidade do informante.


Por sua vez, a freqüente discussão sobre os métodos utilizados no jornalismo investigativo ganhou novo impulso com o episódio. No entanto, um dos jornalistas que mais o praticam, Woodward – cuja persistência em acreditar em informações que levantara para o que seria, a princípio, uma pequena nota policial cotidiana acabou derrubando o presidente – acredita que é perda de tempo discutir a respeito:


– Jornalismo investigativo? Para mim o que existe é apenas reportagem bem feita ou reportagem malfeita, mal apurada.’



Paulo Sotero


‘Para maioria, Garganta Profunda é herói ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 2/06/05


‘A julgar pelas primeiras tentativas de medir a reação dos americanos à revelação da identidade do Garganta Profunda, o ex-diretor adjunto do FBI, W. Mark Felt, que revelou à revista Vanity Fair ser a super fonte secreta do Washington Post sobre o escândalo Watergate, foi atendido em sua expectativa de ser visto mais como um herói do que como um vilão por seus compatriotas.


Mais de 57% das cerca de 120 mil pessoas que responderam a uma enquete informal feita pela rede CNN, em seu site, disseram que ele mudou o rumo da história.


Os demais expressaram uma visão mais negativa, dizendo que Felt não passará de uma nota de rodapé na história da maior crise política dos EUA, que começou em 1972 e forçou Richard Nixon a renunciar em 1974. Nos vários blogs, as opiniões favoráveis superam as desfavoráveis por margem ainda maior. A reação mais típica de milhões de americanos provavelmente foi refletida pelo colunista Brian Dickerson, do Detroit Free Press, que não passara de 1 ano de idade na época do escândalo que sacudiu os alicerces da república. ‘W. Mark Felt? Olhe, não se sinta tão mal (por não ter reconhecido o nome). Eu também levei algum tempo para situá-lo’, escreveu Dickerson. ‘Na verdade, a única coisa mais triste do que o sísmico ‘o que?’ com que nove entre dez americanos reagiram à revelação sobre Felt foi a proporção ligeiramente menor dos que não sabiam do que se tratava quando ouviram falar que ele era o Garganta Profunda.’ A exemplo de muitos membros de sua geração, Dickerson disse que vê com respeito a decisão do ex-subdiretor do FBI de expor a corrupção e o abuso de poder de Nixon.


Howard Kurtz, o colunista de mídia do Washington Post, arriscou ontem que Felt conta com a simpatia não apenas dos mais jovens, mas da maioria dos americanos de todas as idades. ‘O Garganta Profunda concluiu que como o Ministério da Justiça (de Nixon, sob John Mitchell) era corrupto, a única forma de expor a história era cochichá-la ao (repórter do Washington Post) Bob Woodward’, resumiu o colunista.


O fato de que a maioria dos americanos provavelmente considera Felt um herói não significa, no entanto, que a experiência poderia ser repetida com o mesmo grau de sucesso e compreensão do público nos dias de hoje. ‘Imagine que o presidente envolvido não fosse Nixon e o ambiente para a mídia fosse o de 2005 e não o de 1972’, ponderou Kurtz. ‘Imagine que um promotor especial estivesse tentando mandar Woodward e Carl Bernstein para a cadeia, como ocorre hoje com Matt Cooper (da revista Time) e Judith Miller (do New York Times), por não revelar quem na administração lhe estava passando informação confidencial.’


Segundo Kurtz, ‘é fácil hoje, 30 anos após o Watergate, enaltecer o Garganta Profunda como um destemido funcionário do governo. Mas, como indica o recente fiasco da Newsweek (que desmentiu uma reportagem sobre a profanação do Alcorão em Guantánamo) e o caso Valery Plame (agente da CIA cuja identificação por fontes da Casa Branca poderá levar Cooper e Miller à cadeia) esta não é a atitude dominante hoje em relação a funcionários do governo que vazam informação’.’



Iuri Dantas


‘EUA discutem heroísmo de ‘Garganta’ ‘, copyright Folha de S. Paulo, 2/06/05


‘Um dia depois de ser revelada a identidade de ‘Garganta Profunda’, a principal fonte do jornal ‘Washington Post’ no caso Watergate, a mídia americana deu início ontem a um debate sobre o papel que W. Mark Felt, número 2 na hierarquia do FBI (polícia federal dos EUA) na época do escândalo, terá na história.


Será um herói, por revelar segredos que permitiram interromper a corrupção no segundo mandato de Richard Nixon -que em 1974, sob a pressão do caso, renunciou- ou vilão, por vazar informações confidenciais do governo?


O ‘New York Times’ estampou na sua primeira página que foi a própria fonte que se desmascarou, para completar, na página interna, que a revelação pegou o jornal concorrente de ‘surpresa’.


Foi o mesmo sentimento expressado por muitos outros órgãos de imprensa dos EUA após a revelação feita em um extenso texto do advogado de Felt, John D. O’Connor, publicado anteontem pela revista ‘Vanity Fair’.


CNN e FoxNews, as duas maiores redes a cabo de notícias dos EUA, perguntavam a toda hora por que Felt tomara a decisão de vir a público. Chegou-se a cogitar, na FoxNews, que Felt havia se revelado para obter algum dinheiro, por pressão dos filhos.


‘Surpresa’ foi a expressão utilizada pelo presidente George W. Bush para falar sobre o episódio. ‘Posso dizer que é uma revelação que me pegou de surpresa’, disse ontem na Casa Branca enquanto recebia o presidente sul-africano, Thabo Mbeki. ‘Estou ansioso por ler mais sobre sua [de Felt] relação com a mídia.’


Herói ou vilão?


Mas a surpresa deu lugar ao debate. Enquanto a família de Felt, 91, concedia entrevistas na Califórnia defendendo seu heroísmo em não esconder a verdade, as redes de televisão e os sites analisavam sua trajetória no FBI, seus discursos no Congresso americano e o livro que escreveu.


‘Ele era um agente do FBI, pelo amor de Deus, [tinha] o cargo mais elevado da instituição à exceção de um, e estava furtivamente em garagens vazando os resultados de uma investigação para um jornal que odiava Nixon’, disse o republicano Patrick Buchanan, ex-redator de discursos de Nixon, à rede MSNBC.


Para a diretora do Centro pela Integridade Pública, Ann Pincus, a revelação de Felt é boa para a imprensa americana por mostrar que os jornalistas mantiveram a promessa de guardar segredo sobre a identidade da fonte.


‘Ele tem todo o direito de se revelar como fonte, o acordo que fez com [o jornalista Bob] Woodward era que eles não iriam divulgar a fonte’, afirmou Pincus.


Para ela, o episódio serve como mensagem para políticos que queiram trazer à tona sinais de corrupção de que eles podem confiar nos jornalistas.’



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‘Mark Felt era ‘funcionário exemplar’ ‘, copyright Folha de S. Paulo, 2/06/05


‘Os 91 anos de idade e a perda parcial de memória após um derrame sofrido em 2001 não impedem W. Mark Felt de enrijecer a coluna e adotar uma expressão séria ao falar do FBI. Foi à polícia federal americana que ele dedicou mais de 30 anos de vida. Ali subiu até chegar a diretor-assistente. E ali se tornou, secretamente, uma das maiores figuras da história política americana: ‘Garganta Profunda’.


O homem que deu ao jornalista Bob Woodward as informações usadas como base nas reportagens do ‘Washington Post’ sobre o escândalo Watergate, que culminou na renúncia do então presidente Richard Nixon, em 1974, era visto por seus colegas no FBI e na Casa Branca como funcionário exemplar, um homem charmoso, querido por superiores e por subordinados.


Apesar de seu nome aparecer com freqüência nas listas de possíveis ‘Garganta Profunda’, muitos se disseram surpresos ao saber que o sorridente senhor que desde 1993 vive em Santa Rosa, Califórnia, e passa a maior parte de seus dias assistindo TV, sentado sob o retrato da mulher, Audrey (morta em 1984), é o personagem que contribuiu para a queda de Nixon.


Nascido em 17 de agosto de 1913 em Twin Falls, Idaho, Felt estudou na universidade do Estado e se formou advogado pela Escola de Direito da George Washington University, em 1940. Casou-se e, em 1942, entrou para o FBI, onde serviu no departamento de espionagem durante a Segunda Guerra.


Em 1965, tornou-se diretor-assistente de J. Edgar Hoover, o mais célebre chefe do FBI, com quem mantinha uma relação próxima e de extrema lealdade. Colegas citados pelo ‘Post’ se referem a Felt como alguém ‘durão’ e ‘muito honesto’.


Os motivos que o transformaram em ‘Garganta Profunda’ não estão claros. Em uma palestra em 2003, Woodward o descreveu da seguinte forma: ‘Embora fosse uma criatura de Washington, ele estava amaciado por anos de atritos burocráticos, desencantado com a mentalidade mutante da Casa Branca de Nixon e suas táticas de politizar as agências governamentais’. Outra hipótese é a de revanche.


Quando Hoover morreu, em 1972, após 48 anos no cargo, Felt era cotado para sucedê-lo. Mas Nixon preferiu L. Patrick Gray, subsecretário da Justiça, que permaneceu no posto por um período curto e turbulento -o das investigações do Watergate.


Era Felt, no entanto, que cuidava das operações diárias da agência, e era sob sua orientação que operava a equipe responsável por interrogar os suspeitos de envolvimento no escândalo. Como descreveram Woodward e Bernstein em ‘Todos os Homens do Presidente’ (1974), tratava-se de ‘uma fonte no Poder Executivo com acesso a informações [no comitê da campanha para a reeleição de Nixon] e na Casa Branca’.


Em junho de 1973, antes da conclusão do caso e após desentender-se com o novo diretor, William Ruckelshaus, Felt deixou o FBI. Mas o trabalho na agência lhe renderia, sete anos depois, uma condenação à prisão por autorizar invasões ilegais. Não chegou a ser preso: Ronald Reagan (1981-1989) lhe concederia, um ano mais tarde, o perdão presidencial (o gesto fez de Felt, então um democrata, eleitor registrado republicano).


Após a aposentadoria, chegou a atuar como consultor de uma série sobre o FBI. Em 1979 lançou um livro semibiográfico, ‘The FBI Pyramide from Inside’ (‘A Pirâmide do FBI por Dentro’). Nele, nega com veemência ter sido a fonte de Woodward.


Depois de manter o segredo por décadas -algo que Woodward e Bernstein dizem ter feito dele alguém ‘terrivelmente solitário’-, Felt começou, a partir de 2001, a se abrir com parentes e com amigos próximos.


Foram eles que persuadiram o ex-agente a reivindicar a glória de ser ‘Garganta Profunda’.’



Folha de S. Paulo / The New York Times


‘‘Post’ ficou surpreso por ter sido ‘furado’ ‘, copyright Folha de S. Paulo / The New York Times, 2/06/05


‘Durante 30 anos o jornal ‘Washington Post’ guardou segredo sobre a identidade do ‘Garganta Profunda’, esperando o melhor momento para revelar o nome da pessoa que ajudou o diário a produzir uma das maiores notícias de sua história. Anteontem, o jornal levou um ‘furo’ (notícia dada em primeira mão) da ‘Vanity Fair’ sobre a identidade de sua própria fonte no caso Watergate.


A inesperada revelação causou alvoroço no jornal. A reação inicial foi não fazer nenhum comentário a respeito, mas, pouco depois que a notícia veio à tona, o diário acabou confirmando em seu site que W. Mark Felt era mesmo o ‘Garganta Profunda’.


‘Realmente foi um susto’, disse Benjamin C. Bradlee, o diretor-executivo do ‘Post’ durante o caso Watergate.


A surpresa veio por causa de uma decisão interna da ‘Vanity Fair’. A revista costuma checar as informações de suas matérias antes de as publicar, mas, desta vez, optou por não confirmar a história com os jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, responsáveis pelas reportagens. Ninguém sabia o que seria publicado e, quando a revista chegou às bancas, a surpresa foi geral.


‘Por um lado é uma sensação estranha, já que fomos ‘furados’ numa história com a qual tínhamos muita intimidade. Mas, por outro, se a revelação da fonte foi uma decisão familiar, não havia como evitar o que aconteceu’, disse Michael Getler, o ombudsman do ‘Post’.’



O Estado de S. Paulo


‘Kissinger despreza o informante que derrubou Nixon ‘, copyright O Estado de S. Paulo, 2/06/05


‘SEM RESPEITO: O desprezo se lia claramente no rosto do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger. ‘Não sinto nenhum respeito por pessoas em altos cargos que passam informação interna para a opinião pública’, disse Kissinger depois da revelação de quem era o Garganta Profunda, a testemunha-chave do caso Watergate.


A admissão por parte do ex-número 2 do FBI William Mark Felt de que foi a figura-chave da investigação jornalística que há mais de 30 anos levou a desvendar o escândalo de Watergate provocou ao mesmo tempo uma acirrada discussão sobre traição e patriotismo quando se ocupa um alto cargo.


Para Kissinger, assim como para o ex-comandante supremo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e ex-chefe de gabinete da Casa Branca Alexander Haig, ambos colaboradores muito próximos do presidente Richard Nixon, a revelação do segredo jornalístico mais bem guardado de Washington também pressupõe um alívio.


Em meio ao mistério de quem seria a fonte anônima, recaía também sobre eles a suspeita de terem dado, na época, as informações que acabaram provocando a renúncia de Nixon, em 1974, aos repórteres do jornal americano The Washington Post Bob Woodward e Carl Bernstein. Outros altos funcionários do governo também foram considerados suspeitos.


‘Sempre tive certeza de que não poderia ser ninguém da Casa Branca. Não era nosso estilo nos reunirmos com jornalistas em garagens’, ressaltou Kissinger, hoje com 82 anos.’