Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Carlos Heitor Cony

‘Sempre que lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, Fernando Sabino respondia: ‘Quero ser criança’. Uma boa resposta, que ele não conseguiu realizar ao longo da vida. Pois nunca deixou de ser um rapaz, um bom rapaz. E, como bom rapaz, foi campeão de natação no Minas Atlético Clube, casou, teve filhos, escreveu livros, tocou bateria, viajou muito, estava sempre pronto para um papo inteligente e divertido.

Aos 32 anos, escreveu um romance que foi o livro de uma geração. Um livro até certo ponto autobiográfico, mas todos se reconheceram naquele Eduardo Marciano de ‘O Encontro Marcado’, publicado em 1956, mas lido e relido até hoje.

E o rapaz não parou no sucesso. Escreveu crônicas que também marcaram um tempo -o dele e o nosso. Curiosa virada de Sabino. No romance, pintou uma panorâmica de sua geração, um painel das angústias e esperanças de todos os rapazes dos anos 50, a que não faltava uma carga de humor que seria a marca de toda a sua obra.

Ao adotar a crônica, na qual logo se tornaria um mestre, ele trocou a panorâmica pelo close, o painel pelo pontual, e não foi à toa que deu à página que escrevia em ‘Manchete’ o título permanente de ‘A aventura do cotidiano’.

Sua dignidade pessoal e profissional isolou-o numa relativa reclusão, evitando o badalo inconseqüente, o deslumbramento pela exposição iluminada da mídia.

Com a sua morte, perdemos um ser humano adorável, alegre, gozador, sério, solidário. Um escritor que ficará para sempre entre os nossos maiores. E eu, de minha parte, perdi o amigo que me telefonava, falando num jato coisas bonitas e gostosas, que me alegravam e edificavam. Uma de minhas glórias foi no dia em que passei pela alfândega e cismaram com minha mala. Um fiscal liberou-me, pensando que eu fosse Fernando Sabino. E comentou para os colegas dele: ‘Ele é gente boa!’.’



Paulo Roberto Pires

‘O encontro adiado’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 16/10/2004

‘Fernando Sabino foi o sobrevivente de uma geração. Ao lado de Helio Pellegrino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende formou uma curiosa confraria, celebrizada pela literatura mas cimentada na profunda cumplicidade existencial. Os Quatro Mineiros entraram para a história da literatura por acaso, pois o que os manteve unidos foi, acima de tudo, os vínculos de fogo da amizade, vínculos partidos sucessivamente pela morte precoce dos três e jamais cicatrizados num Fernando que passou seus últimos anos distante de entrevistas e aparições públicas, revirando gavetas, publicando inéditos e desenterrando correspondências, cioso de uma posteridade digna, livre de qualquer tipo de oportunismo ou apropriação. Morreu nesta cinzenta segunda-feira, em casa, cercado pelos filhos, na véspera de completar 81 anos.

Nas bibliografias, constam mais de 30 títulos publicados, entre romances, contos, novelas, relatos de viagens e correspondência. Escreveu muito e para muitos, tinha entre seus leitores uma impressionante diversidade de perfis e idades, sendo a única constante os jovens, que sempre passavam por suas deliciosas crônicas ou por romances como ‘O grande mentecapto’. Era, mais do que tudo, um raro escritor formador de leitores – e não apenas para seus livros. Como poucos, fez jus ao título da antológica série de crônicas publicada nos anos 70: ‘Para gostar de ler’.

Seu estilo límpido e fluente só teve a leveza como marca porque esta era resultado de uma lenta depuração dos volteios da barroca alma mineira, torturada entre os impulsos da vitalidade e os interditos da moral. A graça de, por exemplo, ‘O homem nu’ só seria possível com a penosa gestação de ‘O encontro marcado’, um dos dez melhores romances brasileiros do século XX e um dos retratos mais lúcidos e emocionados daquele momento na vida em que é preciso decidir: amadurecer é transformar a convulsão em experiência ou administrar as frustrações de uma vida conforme?

Em 1956, quando o romance foi publicado, Antonio Candido definiu-o como ‘o moto contínuo da alma ofegante’. Não conheço síntese melhor para a história dos três amigos que, na Belo Horizonte opressiva dos anos 40, flertavam com a literatura e consumiam-se em dúvidas, reunindo-se na praça para ‘puxar angústia’. Aprendiam, na marra, que viver seria eternamente encontrar-se com o Outro, fosse ele um amigo, um amor ou Deus. Ignorá-lo é consumir-se em egoísmo e limitação; transformá-lo em tábua de salvação é diminuir sua própria responsabilidade e importância na vida, deixando-a passar em branco.

A primeira leitura de ‘O encontro marcado’ – só aos 29 anos, muito mais tarde do que em geral lê-se este livro – deu-me um personagem e uma convicção. O personagem foi Hélio Pellegrino, tema de um dos Perfis do Rio, do recente Arquivinho publicado pela editora Bemtevi e elo de união com pellegrinos que transformaram-se em amigos queridos. Com este livro veio ainda a convicção de que é melhor saber puxar a angústia antes que ela te puxe e de que a amizade, o dedicar-se de alguma forma ao Outro, é um dos pouco valores que valem a pena serem cultivados.

Quando estava tentando decifrar meu personagem, pedi muitas vezes uma entrevista a Sabino. A mais doce das recusas era sempre acompanhada por um livro autografado, o mais querido deles uma edição especial de ‘O menino no espelho’. Livro publicado, recebo um dia na redação do ‘Globo’ um telefonema: ‘Aqui é o Fernando Sabino’. E aquela voz, para mim inacessível e um tanto irreal, me contou o quanto gostou do retrato do Helio, de sua preocupação de que o enfático amigo se transformasse numa caricatura e ainda arrematou, bem ao seu jeito: ‘Viu como não precisava da minha entrevista?’ Daí para frente foram outros telefonemas esparsos, recados que deixei na secretária eletrônica quando, fascinado, vi que a correspondência ‘Cartas na mesa’ era uma espécie de making of do ‘Encontro marcado’.

Em junho passado, a publicação de ‘Movimentos simulados’ me levou a escrever, aqui em No Mínimo, uma carta-aberta a ele, falando da importância para os jovens escritores de um livro que ele já dispunha muito bem no escaninho da posteridade. A resposta veio, semanas depois, num recado enviado através do jornalista Mauro Ventura, amigo em comum: ‘Fernando adorou o texto, quer falar com você’. Nenhum dos dois ligou para o outro, mas ambos sabíamos o que teria sido dito.

Como se pode homenagear adequadamente alguém que escreveu o livro que você gostaria de ter escrito e que, através dele, mudou de muitas formas a tua vida? Nada disso cabe entre as duas datas do obituário. A única resposta possível, pelo menos agora, é esta, puxar a angústia da morte para mais rápido libertar-se dela, sentir a perda de um amigo que nunca o foi pessoalmente mas que sempre consolou e esteve por perto – como só o mais fraterno dos companheiros pode conseguir fazer.’



Sergio Rodrigues

‘Sabino, um mestre sem imaginação’, copyright No Mínimo (www.nominimo.com.br), 15/10/2004

‘O escritor Humberto Werneck tem razão: é injusta a cobrança que perseguiu Fernando Sabino ao longo de sua carreira, porque ‘nenhum escritor tem a obrigação de escrever mais que um bom livro’. Werneck completa seu raciocínio com estilo e contundência: ‘Se todo romancista fizesse um romance da envergadura de ‘O encontro marcado’, o Brasil teria a maior literatura do mundo’.

Posta a questão nesses termos, é difícil discordar. Lançado quando o escritor tinha só 32 anos, ‘O encontro marcado’ é um romance que bastaria para justificar qualquer obra. Mesmo assim, fica faltando dizer alguma coisa. Por que Fernando Sabino, depois de um vôo tão ambicioso, guardou as asas no sótão e mergulhou de cabeça, livro após livro, década após década, na ligeireza da crônica?

Não vale dar aquela resposta politicamente correta de que crônica e romance têm o mesmo peso e que é absurdo – onde já se viu? – estabelecer uma escala de valores para gêneros literários. Argumentos bobos como esse não nos levarão a lugar nenhum. Se é inegável que uma obra-prima da crônica valerá sempre mais que uma dúzia de romances medíocres, também é certo que a tal escala de valores tem existência cristalina, por força da mesma tradição em que se fundam os gêneros, a própria história da literatura.

Uma resposta ao quebra-cabeça de Fernando Sabino talvez pudesse ser enunciada nos seguintes termos: escritor de prosa soberba, mas sem imaginação, ele foi romancista enquanto teve assunto – sua própria vida, mal disfarçada, em ‘O encontro marcado’, na pele de Eduardo Marciano. Ao contrário do que julga o senso comum, uma imaginação frágil não é necessariamente pecado mortal na literatura. William Faulkner dizia que um escritor precisa de três coisas: experiência, observação e imaginação. Mas ressalvava que, na falta de um ou mesmo dois desses atributos, é possível sair-se bastante bem com o(s) restante(s).

Pois bem. Esgotado o filão da experiência, e na falta de uma imaginação poderosa, Fernando Sabino viu-se restrito à observação, isto é, aos tiros curtos, às ‘balas de estalo’ – se quisermos ser machadianos – dos casos pitorescos que colhia em seu próprio cotidiano, na leitura de jornais, nas conversas de bar. É verdade que o formato não admitia fôlego longo, nem na horizontal nem na vertical – nem no sentido dos painéis sociais, nem no do aprofundamento psicológico dos personagens. No entanto, era um veículo tão bom quanto qualquer outro para aquilo que Sabino tinha de mais brilhante e inimitável, sua maior contribuição à literatura brasileira: a capacidade de prosear numa linguagem direta, enxuta e solar, de sintaxe ‘natural’ e vocabulário ao alcance de qualquer criança. Uma língua sob cuja simplicidade se esconde toda a sofisticação do mundo.

É nesse sentido, e apenas nele, que a teoria da ‘equivalência dos gêneros’ faz sentido. Pela mesma razão, a boa frase de Humberto Werneck merece reparo. Maior que ‘O encontro marcado’, pairando acima dos gêneros e presente até no execrado e execrável ‘Zélia, uma paixão’ – Sabino era e continuará sendo sobretudo um estilo. Trata-se de um legado tão desmedido que tende a ficar invisível, confundido com a paisagem. É preciso ouvir de um autor refinado como, por exemplo, o contista Luiz Vilela a afirmação de que aprendeu a escrever com Fernando Sabino – nada menos que isso – para começar a pôr na devida perspectiva o que fez esse mineiro pela língua literária brasileira.

É possível que tal proeza esteja meio fora de moda. Depois de jornadas contraculturais, fica impossível negar o que há de ideologia burguesa – ou de otimismo ingênuo, o que dá no mesmo – na idéia de que tudo pode ser expressado de forma ‘perfeita’, com as palavras mais simples do dicionário, para que todo mundo entenda. Embora raciocínios lineares como este sejam sempre discutíveis, digamos, para efeito de argumentação, que já deixamos tais ilusões do século 20 para trás. Ainda assim, não termos realizado aquela proeza seria trágico.

Na literatura americana, papel semelhante – numa geração anterior, como costuma acontecer – coube a Ernest Hemingway. Como ele, Sabino não trabalhou sozinho. O autor de ‘Por quem os sinos dobram’ tinha o poeta Walt Whitman na estante e um companheiro de geração chamado Dashiell Hammett. O autor de ‘O homem nu’ tinha Graciliano Ramos na prateleira e um contemporâneo do tamanho de João Cabral. Entre muitos outros. Se a obra é coletiva, seu símbolo termina por ser sempre individual. Nos EUA, quando se quer qualificar a prosa neo-realista em que as palavras, mais do que nomear, parecem ser as próprias coisas, tamanha sua precisão – quando se quer dar nome a isso, invoca-se Ernest Hemingway.

No Brasil, o nome será para sempre o de Fernando Sabino.’



Geraldo Galvão Ferraz

‘Fernando Sabino e seu ‘fantasma de Hamlet’’, copyright O Estado de S. Paulo, 16/10/2004

‘Fernando Sabino se foi. A falta que ele já nos faz.

Era o escritor mais americano que tínhamos. Americano no sentido de ter uma visão da sua arte com relação ao público semelhante a dos escritores dos Estados Unidos. Sabino escreveu um grande romance de geração e de formação, O Encontro Marcado. É dos tais livros que merecem ser colocados como obrigatórios no plano de leitura de qualquer jovem, sobretudo se com fumaças de intelectual e eventual escritor.

Talentoso, brilhante, mas um tanto preguiçoso – talvez sem ter mais o que dizer depois de seu tour de force – Fernando Sabino pareceu se acomodar. Não foi em frente com a promessa de O Encontro Marcado. Partiu para a crônica, que produzia com facilidade e maestria. Talvez preferisse viver (e viveu bem, entre amores, viagens e papos de botequim) do que escrever. Era um contador de histórias fantástico, quanto mais a madrugada entrava, sua verve parecia se multiplicar, assim como os copos de seu bem-amado uísque.

Fascinava ouvintes sem esforço e suas crônicas eram como que um contraponto de sua conversa gostosa.

Mas Sabino escrevia crônicas, e sempre que prensado contra a parede, falava vagamente de um romance que estaria escrevendo. Enquanto isso, namorava, ouvia jazz com seu ouvido apurado e virava até editor. Fez aquela série de curtas-metragens com escritores brasileiros que até hoje, quatro décadas depois, são o maior tesouro de imagens e declarações de autores que temos.

Ao procurá-lo para colaborar em Playboy, ele simplesmente me perguntava sobre o que eu estava precisando de um conto. Tinha essa humildade de artesão da palavra, queria saber sobre o que seria a encomenda de seu freguês. Não era fácil encarar um escritor como Sabino e pedir a ele um conto sobre virgindade, como se pediria um filé mal passado ao garçom do rodízio. Mas ele, com sua atitude de escritor profissional que vivia da palavra, não tinha maiores frescuras. E no prazo combinado, que ele quase sempre respeitava (afinal, ninguém é de ferro, já cantava Ascenso Ferreira), entregava a encomenda pedida. Não seria uma obra-prima, mas cumpriria sua missão de preencher dignamente as páginas da revista. E, claro, os leitores adoravam Sabino.

Ele era um escritor competente, afinado com o espírito do tempo, irreverente na medida e bem-humorado. Escrevia em geral numa velocidade de cruzeiro, com ocasionais picos de alta qualidade, entregando sua mercadoria de forma adequada, como um artesão competente mas limitado pelas exigências do mercado. Pessoalmente, era um boa-praça conhecido. Dava para espantar, num passeio lá pelo calçadão da Visconde de Pirajá, onde era seu escritório, a quantidade de pessoas que o cumprimentavam ou paravam para um dedo de conversa. A todos tratava do mesmo jeito, com um modo amistoso mas um pouquinho distante, do mineiro que cultiva sua privacidade antes de tudo.

Mas para os happy few de sua predileção, ele era diferente.

Lembro-me de uma homérica batalha de travesseiros num apartamento da Praça da República, travada por ele, Vinícius de Morais e Paulo Mendes Campos.

Eram umas 11 horas da manhã e eu fora entrevistar os quatro (ah sim, Rubem Braga também estava lá, mas não se permitiu participar das travessuras dos meninos). Sabino era dos mais folientos, conseguiu jogar Vinicius no chão, mas claro que a garrafa de uísque na mão do poetinha não derramou uma gota.

(Os quatro estavam em São Paulo para lançar livros da editora Sabiá, uma idealista mas frustrada iniciativa, apesar dos nomes envolvidos). Também num encontro com Otto Lara Resende, foi possível perceber o outro Sabino, distante do simpático profissional que ele convocava para o cotidiano comum.

Quando a crônica começou a sair de moda, talvez algo que tenha acontecido com a decadência da revista Manchete, Sabino passou a recorrer a um baú aparentemente inesgotável. Seus livros novos quase sempre eram reproduções ou reelaborações de textos antigos, trabalhos que haviam ficado pela metade e que ele endireitava, ajambrava e publicava para seu público fiel e cativo.

Teriam sido ensaios do grande romance de Sabino que poderiam se ombrear com O Encontro Marcado.

O escritor sempre foi perseguido por esse fantasma de Hamlet, o fato de ter escrito um grande livro no começo da carreira e depois nunca ter conseguido atingir o mesmo patamar da obra inicial. Dá para imaginar como ele sofreu com essa incapacidade e com as tentativas que ele constantemente se impunha, enquanto usava o talento, para fins externos, em coisas absolutamente menores. Ele deixou instruções claras para que a família não publique o que deixou inédito. Dá para pensar que seja uma confissão de sua incapacidade de atingir o nível de O Encontro Marcado, recusando-se a deixar que se veja seus rascunhos, suas hesitações, suas fraquezas sempre em busca de uma excelência fugidia. É uma tragédia, uma amargura, de que se pode desconfiar agora que o artista está morto, mas que aqueles que conheceram Sabino melhor, já puderam detectar em vida.’



Inácio de Loyola Brandão

‘Fernando Sabino e os pastéis frios’, copyright O Estado de S. Paulo, 15/10/2004

‘Viver é, também, despedir dos amigos, até o dia em que os amigos que ficaram se despedem da gente. Na segunda-feira, os amigos disseram adeus a Fernando Sabino. Os amigos são os milhares que foram íntimos ou leram esse cronista maior, um dos que formataram o gênero que, com tal intensidade, só parece existir no Brasil. Ele morreu na véspera de completar 81 anos. O homem cujo ‘medo secreto’ (de todos conhecido) era morrer afogado (apesar de campeão de natação) morreu de um câncer no fígado. Há uma teoria de que o câncer é uma doença provocada por grandes decepções ou tristezas profundas. O de Sabino teria nascido na injustiça que com ele foi cometida quando o atacaram com violência, e o deixaram isolado após escrever a biografia de Zélia, a ministra de Collor? Uma obra de valor não merecia ser rejeitada por um momento menor, inexpressivo e medíocre como a figura retratada. Não teria o País se ‘vingado’ nele, quando desejava na verdade repudiar o odiado clã de Collor?

Na juventude, em Araraquara, eu esperava ansioso o domingo para ler a Manchete, que trazia as crônicas de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga, Henrique Pongetti, Sérgio Porto e Pedro Bloch. Rubem era excepcional, mas Sabino parecia mais perto. Com ele, escrever parecia fácil.

As coisas do cotidiano, comuns, se transformavam. Uma crônica antológica para mim foi a do casal que comemorou o aniversário da filha em uma padaria, com uma vela sobre uma fatia de bolo. Provavelmente o cronista em que eu também me transformaria 40 anos mais tarde começou a ser moldado naquelas leituras. Imagino quantos não tiveram a mesma formação.

Em 1956, Sabino deu o ‘grande golpe’ com O Encontro Marcado. Retrato de sua geração, o romance resgatou mais do que a geração dele, de Belo Horizonte.

Tornou-se o livro emblemático de todo provinciano sufocado pela mesmice da vida. Um dos belos livros sobre sonhos e projetos e aquilo em que eles se transformam. E a aproximação com Os Boas Vidas (I Vitelioni), de Fellini?

Tão estreita. Foi assim que, ainda prisioneiro de minha cidade, penetrei no mundo e na vida. Líamos e comentávamos O Encontro Marcado em torno da mesa de bar e éramos os personagens solitários pelas madrugadas da cidade, assim como os de Sabino percorriam a madrugada belo-horizontina, abordando devotas que iam para a missa. Como esquecer a cena em que se dirigem a uma mulher:

‘Sozinha?’ E ela, exibindo o rosário: ‘Não, com Deus!’

Vida vai, vida vem, acabamos fazendo amizade, Fernando e eu, por causa das andanças que os escritores desandaram a fazer depois de 1975, percorrendo o Brasil inteiro. Por décadas, seminários, jornadas, encontros, simpósios, semanas literárias passaram a acontecer com intensidade e os autores se cruzavam nelas ou em aeroportos, rodoviárias, faculdades, colégios, centros acadêmicos, gerações variadas se entrelaçando, Marcelo Rubens Paiva com Antonio Callado, Lygia Fagundes Telles com Joyce Cavalcanti, Martha Medeiros com Marcos Rey. Fiz muitas viagens com Sabino. Bem-humorado, falante, cheio de casos, cordial. Uma vez, ele entreteve Dalton Trevisan no bar de um hotel Curitiba, até eu chegar e conhecer Dalton. Devia a ele essa. Em seguida, deixamos a cidade rumo a Ponta Grossa. No meio do caminho, ele mandou o carro parar. ‘Não encontro minha agenda.’ Estacionamos e procuramos no bagageiro. Fernando abriu a mala, revirou tudo, a agenda não estava, ele ficou nervoso: ‘Vamos voltar já! Devo ter deixado no hotel.’ Nosso acompanhante sugeriu: ‘Vamos até um posto ou então a Ponta Grossa e de lá ligamos.’ O celular não existia. Sabino: ‘E se for tarde demais?’ Para justificar o retorno, demos mais uma olhada, a agenda estava caída no buraco do banco do carro.

As agendas dele deviam ser publicadas como exemplo de organização. Nelas estavam nomes, endereços e telefones. Mas havia também todas as cidades a visitar e as visitadas, quem o tinha recebido, os professores de português e de letras, os bibliotecários (nome e telefone), jornalistas, os contatos de livrarias, as pessoas a quem ele devia enviar cartas, agradecimentos ou livros, porque eram novos amigos e fatores multiplicadores. Na agenda estavam anotados os PTAs das empresas aéreas, os horários de ônibus, o hotel, o cachê estipulado, o tema da palestra, local e horário. Ali estava o seu dia-a-dia profissional. Sabino deve ter sido o escritor mais organizado do Brasil. Fiquei perplexo quando vi aquilo, porque eu, muitas vezes, cheguei a uma cidade, desembarquei, não havia ninguém me esperando – o Brasil é assim, às vezes – e eu não tinha um nome, um telefone, nem sabia o lugar onde deveria falar. O que significa que ele conhecia o país em que vivia, como as coisas funcionavam. Um profissional.

Sempre que fizemos dupla, nunca cometi a tolice de falar depois dele. Não era apenas o respeito devido a uma carreira brilhante. Falar depois seria suicídio. Envolvente, cheio de casos, com enorme vivência, viajado, sua fala era o momento maior. Assim como nunca me atrevo a falar depois de Lygia Fagundes Telles. Quatro anos atrás, a editora Relume Dumará publicou um livro sobre Sabino, escrito por Arnaldo Bloch. Comovente e poética homenagem que procurou resgatar Fernando para o convívio dos amigos, após seu isolamento total. Necessária. Recomendo a quem quiser conhecer uma pessoa íntegra, dedicada ao ofício, aos amigos, aos brasileiros. Entre as memórias que tenho dele, recolho uma prosaica, mas significativa de sua simplicidade.

Em uma viagem, paramos cedinho em um bar de estrada, limpo, decente. Na vitrine sobre o balcão, cobertos por um véu, repousavam pastéis apetitosos.

Fernando foi direto: ‘São de quando?’ O dono, louco para vender: ‘De hoje, fritei agorinha.’ Sabino: ‘Pena, meu amigo! Só gosto de pastel amanhecido, frio, com o sabor acentuado.’ E era verdade, porque ele levou os pastéis para comer à tarde.’