Tuesday, 07 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Carta Capital

LITERATURA
Carlos Leonam e Ana Maria Badaró

Livros à procura de leitores

‘Se você começar a encontrar em locais públicos cariocas um livro aqui, outro acolá, com jeito de esquecido ou abandonado, não se avexe. Vá lá e pegue-o. O livro está ali à espera de um leitor que depois o passe adiante, exatamente da mesma forma que o encontrou. Que tal começar a deixar livros já lidos em bancos de praça ou noutros locais em que possam ser achados, desejados, lidos e, mais uma vez, passados à frente?

Quantas vezes já quisemos doar livros e ficamos sem saber que destino dar a eles, que acabaram voltando, ou nem saindo, da estante lotada. Doar livros requer, ainda, a prática, nem sempre fácil, do desapego. Um sentimento de propriedade inútil muitas vezes toma conta dos donos das obras que não percebem que elas já cumpriram sua função. Doar livros é como libertar pássaros.

Ampliar esta corrente mais do que do bem é o que quer o projeto Livro de Rua, inspirado no movimento internacional BookCrossing, que difunde o pensamento há tempos. A intenção é transformar as cidades em bibliotecas sem muros, sem estantes, sem armários ou gavetas. A ideia de libertar livros já lidos, para que se tornem instrumentos de transformação de outras pessoas – se deixados em comunidades carentes melhor ainda – é do Instituto Ciclos do Brasil. A ONG também promove distribuição de livros em locais públicos, com ‘contação’ de histórias e récitas de poesia, e incentiva a criação de Bibliotecas da Liberdade. Essas são instaladas em locais onde se pode colocar e retirar livros sem nenhum tipo de restrição. O único compromisso é devolvê-los para que sirvam a outras pessoas.

A Biblioteca da Liberdade pode nascer em bares, lan houses, igrejas, postos de saúde e outros que possam virar espaços de leitura. Como os livros resultam de doações, não há custo ou burocracia. Para fortalecer a corrente, pode-se cadastrar o livro no site www.livroderua.com.br, no qual registra-se o número da inscrição que deverá ficar na capa e o último local onde o livro foi deixado. Assim, sabe-se quantas pessoas foram beneficiadas e por onde o livro vem passando.

No domingo 25 de abril, do recente Viradão Carioca, cerca de mil livros foram doados no Posto 6, em Copacabana, numa barraca montada pelo Livro de Rua, ao lado da estátua sedestre do poeta Carlos Drummond de Andrade. Drummond, que não pediu, mas que, forjado em bronze, está sentado num banco, assistindo ao mundo, vasto mundo de Copacabana, deve ter ficado feliz. Pena que estátua não fala. Mas sente.’

 

DIGITAL
Elias Thomé Saliba

O cheiro do saber

‘O historiador Robert Darnton analisa por que a realidade digital pode tornar opaco o conhecimento acumulado durante anos nas estantes

Em 1771, o obscuro escritor iluminista Louis Sébastien Mercier publicou O Ano 2440, uma utopia futurista na qual o narrador cai no sono e acorda sete séculos depois em uma Paris harmoniosa, livre dos males do Antigo Regime. No principal capítulo do relato, visita a Biblioteca Nacional, esperando encontrar aquele templo do saber ultraorganizado e acessível, mas encontra apenas uma sala modesta, com quatro estantes. O bibliotecário lhe explica: ‘Descartamos tudo. Cinquenta mil dicionários, 100 mil livros de poesia, 800 mil livros de viagem e 1 bilhão de romances. Uma comissão de sábios virtuosos leu todos os livros, eliminou o que era falso e resumiu tudo em algumas verdades e preceitos morais básicos, que cabem sem dificuldade nestas quatro estantes’.

Mercier nunca defendeu o descarte de livros. Mas sua fantasia expressou um sentimento já forte no século XVIII e, na nossa época, tornado obsessão: a sensação de estar sobrecarregado de informações, impotente diante da necessidade de encontrar material relevante em meio a futilidades. A utopia de Mercier anunciava algo que hoje deixou de ser utopia: uma biblioteca sem livros. Em lugar das três estantes residuais, terminais de computador com acesso a gigantescos bancos de dados e hiperlinks de livros digitalizados, onde os leitores encontrariam o que desejassem por meio de mecanismos de busca perfeitamente afinados, segundo os algoritmos mais recentes.

Esta é uma das muitas provocações do historiador Robert Darnton em A Questão dos Livros – Passado, presente e futuro (Companhia das Letras, 231 págs., R$ 42,50), um guia apetitoso para alimentar o debate sobre o lugar dos livros no ambiente digital que se tornou uma realidade para milhares de seres humanos. Difícil encontrar uma trajetória mais apropriada para encaminhar a discussão sobre o futuro do livro nesse universo. Após uma breve carreira de repórter policial no New York Times, Darnton, que estará presente na Festa Literária Internacional de Paraty, em agosto, tornou-se professor universitário e um pesquisador dedicado ao estudo da história do livro e da leitura no século XVIII.

Darnton, de 71 anos, trabalhou por quase duas décadas com o manancial de 50 mil cartas da Societé Typographique de Neuchâtel (STN), o único arquivo completo de uma casa editorial franco-suíça do século XVIII que sobreviveu. Dessa enorme pesquisa produziu livros importantes, como Boemia Literária e Revolução, Iluminismo como Negócio e The Devil In The Holy Water – esse último, um estudo sobre a calúnia na França do século XVIII ainda não traduzido no Brasil. Foi editor na Oxford University Press e passou um ano como ‘acadêmico residente’ (no Brasil não há nada parecido) na rede de tevê CBS. Atualmente, dirige a Biblioteca de Harvard, que se transformou nos últimos quatro anos em epicentro da discussão sobre o processo de digitalização de acervos.

‘Seja qual for o futuro, ele será digital’, resume Darnton, que, contudo, não se mostra nada ansioso em trocar o reino do iluminismo esclarecido pelo alvoroço do capitalismo corporativo. Segundo ele, deve-se olhar para o futuro digital com adesão crítica, sem nunca deixar de olhar pelo espelho retrovisor. A internet, como toda inovação tecnológica, apresenta-se, ao mesmo tempo, como bênção e maldição.

Para Darnton, ela tem a largura de uma galáxia e a profundidade de um dedo. Embora útil na maioria das situações, tornou-se a maior fábrica de rumores da história, na qual afirmações falsas estabelecem sua veracidade pelo peso das infinitas repetições. A maioria dos sites faz um trabalho muito ruim ou inexistente no sentido de documentar suas fontes ou oferecer referências básicas. Todas as informações vêm com uma forte embalagem de onisciência – ou seja, toda narrativa se passa como se fosse destituída de fonte.

É com essa atitude cuidadosa que Darnton discute em todos os seus detalhes a iniciativa do Google de digitalizar o acervo de grandes bibliotecas públicas. O professor estimula iniciativas parecidas em vários países. A escala da democratização do livro é quase imbatível. No Brasil, a Brasiliana digitalizada de José Mindlin é exemplo recente do sucesso de tais empreendimentos. Mas Darnton demonstra sua insatisfação com o Google Book Searc-h formulando questões até agora irrespondíveis.

Como diretor da Biblioteca de Harvard, ele visitou várias vezes o Google. Em uma delas, perguntou à funcionária que o recepcionou como ela descreveria a hierarquia de status da corporação. ‘É fácil’, ela lhe retrucou. ‘Primeiro vêm os engenheiros, depois os advogados e, por fim, os cozinheiros.’ Atrás da ironia, havia uma verdade: o Google emprega milhares de engenheiros, mas não tem um único biblió-grafo em sua equipe. Esse descaso é lamentável quando se considera a história das publicações. Nenhum exemplar isolado de um best seller do sécul-o XVIII, por exemplo, fará justiça à variedade infinita das edições. Neste caso, a edição escolhida (de forma arbitrária, pois como determinar qual a edição válida?) será a única a que o leitor terá acesso.

À decisiva questão da relevância, os engenheiros do Google respondem que planejam digitalizar muitas versões de cada livro, à medida que os exemplares forem aparecendo ao ser retirados das prateleiras, como numa linha de montagem. Mas qual versão será colocada no topo do ranking de busca? Será que o Google determinará o ranking de relevância dos livros da mesma forma que faz com todo o resto, de cremes dentais a artistas de cinema?

Será capaz de criar um algoritmo que levará em conta os padrões prescritos pelos bibliógrafos, tais como a primeira edição a ser impressa ou a que melhor corresponda à intenção expressa do autor? Além disso, antes de se revolverem os problemas da preservação digital, todos os textos nascidos ‘digitais’ pertencem a uma espécie em risco de extinção.

Bits se degradam com o passar do tempo e documentos se perdem no ciberespaço por conta da obsolescência da mídia em que foram registrados. Empreendimentos eletrônicos vêm e vão. Bibliotecas de pesquisa, quando não destruídas por vândalos ou fascistas, duram séculos. A obsessão por desenvolver novas mídias inibiu os esforços de preservar as antigas (e o melhor sistema de preservação que já se inventou é o antiquado livro pré-moderno), já que o papel manufaturado antes do século XIX se mostrou o mais durável até agora.

Com a digitalização e a criação de redes entre grandes bibliotecas, o alcance da informação será ampliado e democratizado a uma escala nunca antes experimentada. Mas queremos realmente que um empreendimento comercial detenha o controle exclusivo de tanta informação? A maioria das bibliotecas norte-americanas oferece algum tipo de entrada livre a todo material, e o acesso a revistas é feito mediante pequenas taxas. Quem intervirá, contudo, quando a única empresa que controla o acesso resolver cobrar taxas cada vez mais altas? Como o pessoal da Google não gosta da palavra ‘monopólio’ e Darnton, de ferir suscetibilidades, ele a define como uma ‘empresa hegemônica, financeiramente imbatível, tecnologicamente invencível e legalmente invulnerável, capaz de esmagar quaisquer concorrentes’. Se a definição peca pela sutileza, corrija-a o leitor.

Darnton não menciona as experiências recentes com o Kindle e o iPad, mas é muito bom ao pinçar exemplos da história do livro, de editores, de livreiros e das bibliotecas, relembrando personagens que, acima de tudo, viveram uma renitente história de amor ao livro impresso. A melhor história é a dos leitores que mantinham seus livros pessoais de lugares-comuns, os commonplace books, magistralmente analisados no ensaio Os Mistérios da Leitura. As mais surpreendentes são as daquelas pessoas que, por medo de parecerem antiquadas demais, não revelam seu amor pelos livros.

O bilionário Bill Gates confessou, em palestra recente, que prefere o material impresso às telas do computador: ‘Ler na tela ainda é uma experiência vastamente inferior à leitura em papel’, registrou. E confessa: ‘Mesmo eu, que tenho telas caríssimas e gosto de me considerar um pioneiro da vida web, prefiro imprimir qualquer coisa que ultrapasse quatro ou cinco páginas. Assim posso carregar o texto comigo e fazer anotações’. Gates diz que os livros têm até mesmo cheiros especiais. Numa sondagem de 2005, 43% dos estudantes franceses consideraram o cheiro uma das características mais importantes dos livros impressos, importante a ponto de os levar a rejeitar a compra de livros eletrônicos ‘inodoros’. A CaféScribe, uma editora on-line francesa, já está oferecendo aos seus clientes um adesivo que exala um cheiro agridoce de livro antigo ao ser colocado próximo ao monitor.

Não é preciso chegar a tanto, já que, segundo Darnton, o livro com páginas supera o computador em muitos quesitos. É resistente a danos, soberbo para o armazenamento e com um design prazeroso. Não precisa de upgrades, down-loads ou boots nem ser acessado, conectado a circuitos ou extraído de redes. Podemos folheá-lo, fazer anotações em suas margens, levá-lo para a cama e guardá-lo numa prateleira. Além disso, nunca enguiça. O iluminista Mercier não conheceu computadores, mas sabia disso. E de muitas outras coisas.’

 

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