Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Cassiano Elek Machado

‘No mesmo dia em que topou com as fotos de Vladimir Herzog nu pelos jornais, o cineasta João Batista de Andrade, 64, recebeu pelo correio o sinal mais concreto até aqui da existência de outro Vladimir Herzog, um que ele mesmo imaginou.

Dentro do envelope, estava o certificado de inscrição na Biblioteca Nacional do roteiro do filme ‘Vlado’, que o cineasta pretende começar a filmar em 2005.

Andrade, diretor de 11 longas, como ‘O Homem Que Virou Suco’ (1980), está às voltas com o projeto há mais de 15 anos. O cineasta diz que começou a produzir o filme em 1989, mas que perdeu o dinheiro com o confisco do governo Collor.

Amigo de Herzog desde o início dos anos 60, quando começaram a trabalhar juntos (o jornalista fez, por exemplo, a primeira versão do roteiro de seu longa ‘Doramundo’), Andrade diz que não teve dúvidas sobre a autenticidade das fotografias recém-reveladas. ‘Fiquei chocadíssimo ao ver os retratos. É Vlado.’

O filme ‘Vlado’ não se concentrará apenas nesses últimos momentos da vida de Herzog. ‘Vou contar a história dele do início ao fim, sem revanchismos’, diz, em referência à nota divulgada anteontem pelo Exército.’



Iuri Dantas e Fernanda Krakovics

‘Fotos divulgadas não são de Herzog, afirma o governo’, copyright Folha de S. Paulo, 22/10/04

‘O governo informou ontem que as fotos divulgadas pela imprensa nesta semana de um homem nu não são do jornalista Vladimir Herzog, morto em outubro de 1975. A Folha apurou que arquivos em posse do governo identificam o homem como sendo o padre canadense Leopoldo d’Astous, que viveu no Brasil até 1997.

Ontem, no fim da tarde, o ministro Nilmário Miranda (Direitos Humanos) divulgou nota à imprensa confirmando que não é Herzog quem aparece nas fotos. ‘A direção da Agência Brasileira de Inteligência me comunicou hoje (21/10) que as fotos publicadas na imprensa durante esta semana não correspondem ao jornalista Vladimir Herzog.’

Segundo a nota, ‘por ser uma investigação ilegal’ conduzida pelo antigo SNI (Serviço Nacional de Informações), o ministro negou-se a revelar os nomes das pessoas nas fotos. Procurada ontem, a Abin recusou-se a comentar a nota de Nilmário Miranda.

Além das três fotos, o arquivo à disposição do presidente, ao qual a Folha teve acesso, possui outras seqüências anteriores e posteriores às três publicadas. Ao todo, são mais de 30 fotos mostrando o padre com uma mulher, que seria Terezinha de Sales, de Brasília.

O padre começou a ser seguido por espiões do regime militar no início dos anos 70 por conta de seus sermões, considerados ‘de esquerda’. Ele seria ligado ao PCB, segundo informes da época. Até 1997, d’Astous cuidava da paróquia São José Operário, na Asa Norte, em Brasília. Na avaliação dos militares, a espionagem era uma forma de pressioná-lo a deixar suas idéias ‘subversivas’.

Segundo os documentos arquivados, as três imagens divulgadas foram registradas em 1973, em uma chácara em Caldas Novas (GO), onde o padre supostamente passava o final de semana com a mulher. Há fotos que mostram cenas da chegada deles, dos dois nus em uma cachoeira, passeios na floresta e eles em um quarto. O padre diz que eles foram forçados a tirar as roupas e fotografados (leia texto na página A5).

Após o incidente, o padre continuou sua vida normalmente em Brasília. Reside no Canadá, mas possui um apartamento na Asa Norte, onde fica quando visita o Brasil. Segundo pessoas próximas, ele esteve no primeiro semestre no país e foi a um churrasco na paróquia São José Operário.

Além da igreja, d’Astous também dava aulas na Universidade Católica de Brasília. Ele lecionou por dez anos -1º de abril de 1974 a 10 de agosto de 1984- e hoje não mantém vínculo com a instituição. A UCB informou que não poderia fornecer fotos do padre.

As três fotos foram publicadas no domingo pelo jornal ‘Correio Braziliense’. Elas estavam na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados desde 1997 e foram entregues pelo cabo reformado José Alves Firmino.

Desde domingo, o Exército evitava negar a veracidade das fotos. Setores de Inteligência da Força possuem cópias do relatório que investigou o padre Leopoldo d’Astous. O problema é que, se o Exército disser que as fotos não mostram o jornalista, e sim o padre, estará admitindo que ainda hoje guarda arquivos sobre a repressão política no regime militar.

Colaborou RANIER BRAGON, da Sucursal de Brasília’

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‘Leia a íntegra da nota divulgada pelo ministro’, copyright Folha de S. Paulo, 22/10/04

‘Leia a íntegra da nota divulgada ontem pelo ministro Nilmário Miranda (Secretário Especial dos Direitos Humanos) na qual contesta as fotos que supostamente seriam do jornalista Vladimir Herzog:

‘A direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) me comunicou hoje (21/10) que as fotos publicadas na imprensa durante esta semana não correspondem ao jornalista Vladimir Herzog, morto pela repressão em outubro de 1975.

Na noite de ontem, solicitei à direção da Abin um levantamento sobre o assunto que tem sido alvo de reportagens nos últimos dias. Recebi hoje a informação de que as fotos não correspondem ao jornalista Herzog. Elas são produto de uma investigação ilegal conduzida no ano de 1974 pelo antigo Serviço Nacional de Informações (SNI). Por violar a vida privada dos fotografados, estou impedido moral e legalmente de revelar os nomes das pessoas na fotografia.

Assim que fui informado, comuniquei o fato a Clarice Herzog, viúva de Vladimir Herzog, a quem transmiti os sentimentos de solidariedade. Hoje à tarde levei a informação ao conhecimento do ministro-chefe da Casa Civil, José Dirceu, e do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos’.’



Vinicius Torres Freire, Frederico Vasconcelos e Rafael Cariello

‘Amigos divergem sobre veracidade de fotos’, copyright Folha de S. Paulo, 20/10/04

‘Jornalistas presos com Vladimir Herzog em 1975 divergem sobre a autenticidade das fotos que o retratariam antes de morrer na sede do DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações/ Centro de Operações de Defesa Interna), em São Paulo.

‘Tenho muitas dúvidas sobre a autenticidade dessas fotos’, diz o jornalista Rodolfo Konder. Na época da prisão, Konder era editor da revista ‘Visão’. ‘Se as fotos são dele, e acho que não são, não foram tiradas lá dentro’, afirma.

Para George Duque Estrada, também preso no DOI-Codi, contudo, as fotos são de Herzog. ‘Acredito que ele possa ter sido fotografado quando estava para colocar a roupa dos presos’, disse.

Os jornalistas Paulo Markun e Anthony de Christo questionam a possibilidade de fotos daquele tipo serem tiradas no DOI-Codi, embora, para Christo, duas das fotos publicadas parecerem ‘muito próximas do Vlado’.

Markun diz haver ‘interrogações’ sobre as fotos, mas afirma confiar no reconhecimento feito pela viúva de Herzog, Clarice, que disse ter identificado o ex-marido em uma das fotos publicadas.

‘Não tiravam fotos de presos no DOI-Codi’, declara Konder, o que não faria sentido numa organização clandestina do governo.

Estrado na foto

Christo diz que ninguém foi fotografado nu. ‘A gente só foi fotografada para identificação’. Ele não se recorda de ter visto no DOI-Codi o estrado de cama no qual Herzog aparece sentado, na foto. ‘Não me lembro de nada parecido. Nem na sala de interrogatório nem na cela’, diz.

Konder também chama a atenção para o fato de o rosto de Herzog não estar visível nas fotos. ‘Ali, eu não vi o Vlado [como ele era chamado pelos amigos].’

Markun diz que o personagem das fotos se parece com Herzog, mas acha as fotos ‘estranhas’ -incluindo o fato de ele aparecer nu e com relógio. ‘Mas tem uma que é incompreensível: aquela que tem uma mulher ao lado dele. Jamais poderia acontecer uma cena daquela no DOI-Codi.’

Christo também desconfia dessa foto. ‘Aquele não me parece o Vlado’, diz. ‘Ele tinha uma testa bem calva. Naquela foto, aparece um tufo que ele não tinha.’

O jornalista lembra que Herzog tinha bastante pelos. Esse detalhe não aparece com nitidez nas fotos publicadas. ‘Sinto dificuldade em testemunhar a partir da impressão de uma foto em jornal, depois de tantos anos’, diz.

Para ele, a publicação dessas fotos ‘é uma coisa inaudita’. ‘É importante descobrir a origem dessas fotos. É um processo penoso, sobretudo se forem verdadeiras. Mas, por mais doloroso que seja, tudo tem que ser investigado. Certamente, tem mais coisa por trás’, declarou.

Duque Estrada diz não ter dúvida de que o homem nu das fotos é Herzog, mas estranha que tais imagens apareçam agora. ‘Parece que se quer criar um conflito entre os militares e o poder atual. Há um jogo que não está claro para mim’, afirma o jornalista.

As fotos publicadas pelo ‘Correio Brasiliense’ não estavam no processo em que o juiz Márcio Moraes responsabilizou a União, em 1978, pela prisão ilegal e morte de Herzog. Na época, Moraes mandou instaurar inquérito policial militar para apurar a responsabilidade pela prática de tortura no DOI-Codi. O juiz desconhece o desfecho dessa investigação.’



Mair Pena Neto

‘O comportamento da imprensa no caso Herzog’, copyright Direto Da Redação (www.diretodaredacao.com), 20/10/04

‘A divulgação das fotos de Vladimir Herzog me colheu em plena leitura do livro ‘Cidadania Proibida, o caso Herzog através da Imprensa’, de Lílian de Lima Perosa, que resgata o episódio e o analisa pelo papel desempenhado por quatro importantes jornais paulistas, que refletiram a disputa do poder político naquele momento, uns atuando como força auxiliar do processo de abertura instaurado por Geisel e Golbery, outros como sustentação da linha dura e dos órgãos de repressão.

No momento em que se debate a importância do resgate da memória de um episódio conturbado e não totalmente esclarecido da vida nacional, é oportuno recordar também o papel de alguns veículos de comunicação no período. A leitura é esclarecedora no debate sobre os proclamados compromissos dos jornais com a verdade e a dita imparcialidade. Deixa bem claro onde a autonomia dos meios de comunicação esbarra em suas condições de classe e, principalmente, econômico-financeiras.

Publicado como livro em 2001 e originado de tese de doutorado na ECA-USP, em 1998, o trabalho de Lílian Perosa parte do pressuposto de que o caso Herzog foi utilizado por instituições do Estado e da sociedade civil para fortalecer o projeto de abertura, então sob risco. E a imprensa foi uma instituição ativa nesse processo. Geisel e Golbery a exploraram como ‘meio de intimidação da linha dura’. Os órgãos de repressão também encontraram nela canal para suas posições. É neste contexto que O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, dos Mesquita, se alinham ao projeto de abertura em curso e fazem uma cobertura consistente de todo o caso Herzog, unindo-se aos clamores da sociedade civil pela retomada do Estado de Direito. Já a Folha de S. Paulo e a Folha da Tarde, do grupo Frias, fazem um jogo duplo de autopreservação, determinado, sobretudo, pela situação financeira do grupo.

Lílian observa com clareza que a ação jornalística se exerce sob certas condições. ‘A sua própria esfera de trabalho, o jornal, geralmente movido por uma ótica empresarial, é um condicionante de sua atividade’. O que está nas páginas e como está depende de variáveis, ‘entre as quais estão a linha editorial dos veículos e os interesses extra-jornalísticos em jogo’, como afirma trecho de ‘Os Moinhos de Papel’, outra tese de doutorado, esta de Valdir de Castro Oliveira.

No projeto de Geisel e Golbery, a imprensa interessava para encurralar a linha dura e também como espaço de mediação entre o Estado e os grupos que dele tinham se afastado durante os tempos mais críticos do regime militar. Era importante utilizá-la para reforçar a intenção liberalizante, mas sem dar muito espaço à crítica aos fundamentos do regime.

É bom lembrar, e o livro disso não esquece, que os dois grupos jornalísticos apoiaram o golpe de 64. Mas no processo pós-golpe e no momento da abertura têm comportamentos distintos. Os Mesquita, já desiludidos com os rumos da revolução e tendo sofrido fortemente a ação da censura, orientam seus jornais a uma cobertura política do caso Herzog. O Jornal da Tarde, cujo projeto editorial já contemplava reportagens mais acentuadas, ausentes nos demais veículos, teve a cobertura mais extensa e vibrante do episódio. Segundo Lílian, ‘o JT não teve dúvidas em expressar a sua completa intolerância quanto à versão divulgada pelo II Exército e ousou ‘política e jornalisticamente’, em relação aos outros jornais.

O JT deu voz às instituições que também questionavam a morte de Herzog, e, através das falas dos parlamentares oposicionistas, abordou o tabu do uso da tortura como método de investigação. ‘O tom e a forma com que reuniu esses porta-vozes em torno do caso Herzog’, conclui Lílian, revelou que ‘o JT o enxergava como um caso de política e não de polícia, como expresso pela concorrente Folha da Tarde.

O Estado de S. Paulo foi o primeiro a noticiar a prisão de Herzog, no domingo 26 de outubro, quando, na verdade, o jornalista já estava morto, e brilhou na cobertura do sepultamento, quando se valeu de não circular às segundas-feiras para enfatizar a comoção dos amigos e parentes em detrimento da nota oficial do II Exército, ‘relevada nos outros jornais’. O Estadão é o único entre os jornais examinados a ressaltar que Herzog não fora enterrado na ala do cemitério israelita destinada aos suicidas, contrapondo a informação com a versão oficial do Exército. ‘O OESP decidiu desde o primeiro momento do caso que nos seus domínios, Vladimir não seria nem ‘o suicida’ e tampouco ‘o comunista’, pintado pelos órgãos de repressão’. Isso implicou, segundo Lílian, na despolitização de seu personagem chave, apresentado como ‘o companheiro de redação, o profissional competente, o pai de dois filhos, com trabalho regular, que não se suicidou e certamente não era comunista’, embora sendo. Assim como o JT, o Estadão arrefeceu um pouco o combate no Inquérito Policial Militar sobre o caso por entender que ‘a linha dura já fora constrangida na medida necessária, não cabendo reaquecer ânimos à esquerda ou à direita’.

A cobertura da Folha de S. Paulo foi marcada por ‘cautela e contradição’, nas palavras de Lílian. ‘A docilidade’ com que acatou a versão do suicídio era compatível com a passividade com que recebera o advento da censura, anos antes, ‘suspendendo inclusive seus editorias até meados de 1970. O comportamento da Folha é atribuído a circunstâncias econômicas. A expansão da empresa, ocorrida durante a escalada do autoritarismo, implicou em dívidas que, segundo seus representantes, a levaram a ‘lutar pouco contra a censura’. A dependência econômica da Folha começa a se aliviar a partir de 1975, quando o jornal ‘passou a assumir uma postura mais crítica e menos omissa’, nas palavras de Boris Casoy, ex-editor chefe, deixando de ser algo ‘amorfo e dessincronizado com a realidade de seu público-alvo’, como afirmou Otávio Frias Filho. Lílian indaga ‘se mantidas as dívidas, à FSP importaria a tal ‘dessincronização com o leitor’.

Se a Folha de S. Paulo foi vacilante, a Folha da Tarde foi não só um jornal de direita, mas um jornal de polícia. ‘E na medida em que promover o aparelho policial e seus representantes tornava-se o grande filão mercadológico, a FT passou a ser escrita por elementos ligados à polícia, sob a direção de Antonio Aggio Júnior, cujo estilo meganha de ser – trabalhava com uma arma sobre a mesa – se tornaria um marco na memória dos jornalistas à época’.

O caso Herzog, que ainda não teve seu ponto final – como tentou fazer crer a FT à época, reproduzindo o esforço de Ednardo D’Avila Melo, o comandante do II Exército, afastado posteriormente por Geisel, após a morte do operário Manoel Fiel Filho – é também um bom momento de resgatar parte da história da nossa imprensa.

(*) Trabalhou no Globo, JB e Agência Estado. Foi correspondente da F-1 em Londres, durante 3 anos. Foi editor de política do JB e repórter especial de economia.’