Friday, 13 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Folha de S. Paulo

MÍDIA & POLÍTICA
Entrevista Ruy Fausto

Rafael Cariello

‘Para Ruy Fausto, professor emérito de filosofia da USP, o conjunto das posições políticas da intelectualidade brasileira -e seus fundamentos teóricos- não passa de um ‘sistema de erros’. ‘As posições políticas dos intelectuais brasileiros em geral me assustam’, diz o autor do recém-lançado livro de ensaios ‘A Esquerda Difícil’ (Perspectiva). Fausto critica desde os que segundo ele pertencem à ‘extrema esquerda niilista intelectual’ até os que, saindo da esquerda, se aproximaram recentemente do PSDB.

Niilistas de esquerda (a exemplo, segundo o autor, do filósofo Paulo Arantes) e tucanos terminam, para Ruy Fausto, fazendo uma crítica pouco sofisticada ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva e ao momento que vive o Brasil.

No meio do caminho, encontra e ataca intelectuais petistas que tentaram negar a existência do mensalão -o caso mais estridente desse tipo de atitude, não nomeado por ele, é o da filósofa Marilena Chaui.

‘Lamentavelmente, parte da intelectualidade do PT tomou a defesa do partido, e portanto dos corruptos, e pôs a culpa na imprensa pelo escândalo, como se ela tivesse montado o essencial’, afirma. ‘A tendência a transformar tudo em complô da mídia é propriamente lamentável, e mostra a total desorientação de parte da intelectualidade petista.’

A seguir, trechos da entrevista, realizada por escrito.

FOLHA – Em seu livro, o sr. condena certa crítica ao governo Lula que identifica com uma ‘extrema esquerda intelectual niilista’. Ataca também a ‘crítica política compacta de um mundo globalizado, em que não se vê nenhuma possibilidade de saída’. O que marca essa crítica?

RUY FAUSTO – As posições políticas dos intelectuais brasileiros em geral me assustam. Isso parece muito pretensioso, mas o conjunto me parece um sistema de erros. Esquematicamente, os intelectuais tendem a assumir três posições diferentes, e a meu ver, as três equivocadas. Há por um lado os radicais, por outro os petistas, em terceiro lugar os que abandonaram a perspectiva de esquerda, e aderem a partidos como o PSDB.

O que chamei de niilismo é uma das duas variantes do primeiro grupo, que inclui igualmente uma variante revolucionária tradicional.

O que visei falando em niilismo? A tendência a falar num fechamento global da situação, e numa suposta impossibilidade em tomar qualquer atitude politicamente acertada e produtiva.

FOLHA – Há riscos nesse tipo de crítica? O que se perde aí?

FAUSTO – Claro que a situação é difícil, e é preciso esforço para definir que iniciativas poderiam representar um bom programa à esquerda no Brasil. Ela só é problemática no sentido de que, para se reorientar, é preciso se desvencilhar de um certo número de preconceitos.

Quanto à posição de Paulo Arantes, é muito marcada pelo marxismo, com a novidade, muito relativa, de que há um pessimismo em relação às possibilidades da revolução. Isso é muito pouca coisa como ‘aggiornamento’ teórico.

O autor continua pensando no interior de um esquema maniqueísta, em que há o capitalismo onipotente, e as forças que tentam se opor a ele, sem sucesso. Esse tipo de esquema, na realidade hiperclássico, o leva a erros enormes, como um que assinalo em um dos meus textos: o Gulag (como também Auschwitz) é considerado como fenômeno capitalista!

Como digo no meu livro, no esquema dualista (em certo sentido, mesmo, monista) do autor, tudo aquilo que cai na rede da contemporaneidade (se não for socialista, e o autor não é tão ingênuo a ponto de pensar que o Gulag tem algo a ver com socialismo) há de ser peixe capitalista. Que se trate de um ‘tertius’, nem capitalismo nem socialismo (o que é evidente para 90% da esquerda européia, já há bastante tempo), isso não lhe passa pela cabeça.

FOLHA – No livro, o sr. indica ter ainda confiança na capacidade de o PT representar um projeto de esquerda democrática no país. Num comentário, entre colchetes, afirma em seguida que essa crença se perdeu. Como foi?

FAUSTO – É. Quando escrevi o artigo, creio que foi em 2004, ainda tinha esperança no PT, depois perdi. Diria que foi impossível continuar a acreditar no PT, desde que se revelaram os primeiros escândalos ligados ao chamado mensalão. O assunto corrupção é sério demais para ser considerado de um modo ligeiro, para quem acredita em democracia. Lamentavelmente, parte da intelectualidade do PT tomou a defesa do partido, e portanto dos corruptos, e pôs a culpa na imprensa pelo escândalo, como se ela tivesse montado o essencial.

A tendência a transformar tudo em complô da mídia -que está longe de ser inocente, principalmente na sua atitude para com o governo Lula, mas, no caso do mensalão, fora as diatribes sinistras contra intelectuais do PT proferidas por certa revista, ela acertou muito mais do que errou- é propriamente lamentável, e mostra a total desorientação de parte da intelectualidade petista.

Não se defendem princípios, defende-se um partido. Como se os partidos não apodrecessem, e como se eles fossem mais importantes do que um projeto socialista democrático sério. Essa atitude mistificou parte da opinião universitária, que ‘não acredita’ no mensalão, como se se tratasse de um problema de crença ou de fé (se o mensalão era quinzenal, ou semestral, isso interessa pouco, o essencial é que houve corrupção, e grande). Com isso não quero dizer que nada preste no PT, nem que ele não tenha mais interesse. Há certo número de pessoas honestas e com convicções ali. Só que são minoritárias. Veremos se ainda podem desempenhar algum papel.

FOLHA – O sr. também cita as críticas da imprensa e de ‘partidários do governo antigo’, e afirma que a situação do país, e do governo Lula, exigiria uma ‘finura crítica’ maior.

FAUSTO – O terceiro engano (o primeiro é o radicalismo, o segundo o petismo acrítico) é a adesão aos partidos de centro e de centro-direita. Não estou dizendo que FHC e cia. sejam monstros, com os quais todo diálogo seja impossível. O diálogo é sempre possível, e dentro do PSDB há tendências desenvolvimentistas, como há gente pessoalmente honesta etc.

Mas isso não é suficiente, longe daí, para justificar um deslizamento de pessoas que foram de esquerda (ver o PPS, e alguns intelectuais) em direção ao PSDB. Aderir ao PSDB, ou ‘adotar’ a política dos tucanos é renunciar a uma posição de esquerda. O que significa: é abandonar a idéia de que é preciso antes de tudo combater a desigualdade monstruosa que existe no país, e a de que toda política deve visar em primeiro lugar a luta contra essa desigualdade, e o estabelecimento de uma situação em que os pobres não sejam mais hiperexplorados ou marginalizados.

FOLHA – Ao recusar a ‘extrema-esquerda niilista’, petistas e tucanos, o sr. se situa onde?

FAUSTO – A reorientação política em si mesma não é difícil, senão no sentido de que é preciso vencer preconceitos arraigados. No plano prático, claro, tudo é muito difícil. O mais importante por ora é travar uma luta pela hegemonia das idéias de um socialismo crítico e democrático. Isso é o que dá para fazer por enquanto. É limitado, mas é muito importante.

Creio que precisaríamos de uma revista, mas uma revista com gente que tenha posições bastante convergentes, e que se disponha a trabalhar no sentido de uma crítica intransigente ao petismo acrítico, ao revolucionarismo -inclusive o niilista- e às pseudo-sociais-democracias nacionais, que na realidade não têm nada de social-democratas. Uma revista política e teórica que fosse nessa direção representaria um passo importante, no sentido da preparação de uma reorganização política. Pelo menos denunciaríamos os sofismas e as jogadas de uns e outros. A partir daí, e entrando em contato com o que existe de melhor em vários grupos ou partidos (há gente politicamente sã, mesmo se minoritária, um pouco por todo lado, inclusive fora de grupos ou partidos) veríamos o que seria possível fazer a médio prazo.

FOLHA – O sr. fala em desafios para a esquerda, que seja capaz de repor projetos de futuro e de pensar criticamente a herança marxista. O que no marxismo ainda pode ser usado?

FAUSTO – Defendo que é preciso ‘atravessar’ Marx e o marxismo. Há neles um lado que é suficientemente vivo, e há um lado definitivamente morto.

Esquematicamente, acho que o corpus marxiano funciona bastante bem, ainda, como crítica (digo, em termos gerais, mas essenciais) do capitalismo. Mas funciona muito mal como política, e em grande parte, como filosofia da história.

Principalmente, ele não serve para decifrar e criticar os totalitarismos. Por isso mesmo, ele serviu e serve como ideologia para estes últimos, mesmo se sob formas modificadas. A tragédia da esquerda atual é que pouca gente pensa assim.

Grosso modo, na Europa domina a idéia de um Marx inteiramente morto, no terceiro mundo o de um Marx senão inteiramente pelo menos essencialmente vivo. As duas teses são erradas, e suas conseqüências são simetricamente catastróficas. Acho lamentável que intelectuais de bom nível continuem enchendo a cabeça da juventude com contos da carochinha sangrentos como o da ‘ditadura do proletariado’, fazendo abstração de tudo o que aconteceu no século 20.

No outro extremo, há, na Europa sobretudo, uma tendência de recusar Marx de forma absoluta, em todos os seus aspectos. Uma espécie de alergia a Marx.

O resultado não é menos desastroso. A esquerda se perde no terceiro e no primeiro mundo, mas por razões opostas.

FOLHA – Como seria esse projeto futuro de socialismo que respeita a democracia e abre mão, em grande medida, da violência?

FAUSTO – Não é fácil propor programas. Mas é possível pensar em algumas idéias. Além da preservação e ampliação dos direitos democráticos no plano civil e político, e de uma atitude absolutamente intransigente em relação à corrupção, caberia tomar medidas de redistribuição de renda. Nesse plano, uma modificação das regras de cobrança do imposto de renda se impõe. Associada a medidas econômicas que facilitem o desenvolvimento, ela poderia liberar fundos que permitissem verdadeiras reformas no plano da educação e da saúde.

Sem uma política radical de redistribuição de renda, as necessárias reformas da previdência e da educação se transformam em mini-reformas de eficácia muito limitada.

Há por outro lado, os projetos de economia solidária, as cooperativas essencialmente, que têm dado resultados positivos em outros países.

A longo prazo, o objetivo seria uma sociedade em que há mercadoria e mercado, mas em que o capital é de uma forma ou de outra controlado, e neutralizado nos seus efeitos.

FOLHA – É realista falar ainda em projeto socialista?

FAUSTO – A situação é difícil. Mas em primeiro lugar é preciso pensar com lucidez e clareza, o que significa, se dispor a repensar a tradição socialista sem preconceitos. Claro que isso não nos tira da situação atual.

Mas é condição necessária. A idéia de que não há mais classe que suporte projetos de mudança é tradicional demais.

Também a idéia de que há integração de todos ao sistema teria que ser posta à prova. Enquanto se falar da derrota do socialismo a propósito da derrocada do socialismo de caserna, enquanto se continuar a ter ilusões com o castrismo, o chavismo etc etc, é inútil se queixar de que não se vêem saídas. Resolvam primeiro essas confusões, abram-se para um discurso lúcido radical-democrático, e depois veremos o que fazer.’

Eliane Cantanhêde

Depois dos cubanos, o italiano

‘Já que estamos falando de julgamento de mensaleiros e de deportação vapt-vupt de dois boxeadores cubanos, é bom ir se preparando para a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a extradição do italiano Cesare Battisti.

A expectativa do governo da Itália é que ele seja extraditado, alegando que é um criminoso comum que matou quatro pessoas, foi condenado à prisão perpétua em 1993, fugiu e estava foragido no Brasil até ser preso em março passado.

Para parte do governo e dos meios políticos e jurídicos do Brasil, porém, Battisti é um condenado político que era muito jovem quando militava no pequeno PAC (Proletários Armados pelo Comunismo) e praticou seus crimes -como, aliás, alguns dos líderes hoje no poder. Há uma pressão a favor da extradição e outra contra -que é maior.

O relator no Supremo é Celso de Mello, tido como o ministro mais técnico e um dos mais liberais. Próximos a ele apostam que seu voto considerará Battisti preso político com direito a acolhimento no país.

Eu não queria estar na pele dos ministros. O Supremo vai sair de um julgamento estressante para cair num outro com nuances ideológicas e repercussões internacionais. O primeiro-ministro da Itália, Romano Prodi, manifestou ‘satisfação’ pela prisão de Battisti e deixou evidente que o espera de volta, não exatamente de braços abertos.

Battisti, com mais de 50 anos, é agora casado, pai de dois filhos e um pacato escritor de romances policiais. Mas o lado humanitário é o de menos. O que pesa é que o Brasil é um país hoje governado por um partido liderado por ex-presos políticos, mas que acaba de dar de bandeja os dois cubanos para Fidel Castro -e num avião venezuelano.

Todas essas contradições estarão concentradas no plenário da mais alta Corte do país. Espera-se que, desta vez, os ministros não se distraiam fofocando imprudentemente pela internet.’

Carlos Heitor Cony

Fatos novos

‘RIO DE JANEIRO – Minha curiosidade não é suficiente para saber em todos os detalhes o que está rolando nas altas esferas da vida pública nacional, entupidas por dois casos paralelos que estão emocionando ao mesmo tempo a mídia, a política e a polícia.

Como aquelas caixinhas japonesas, uma dentro da outra, dando a impressão de que nunca acabam, os fatos se desdobram, uns dentro de outros, numa fartura que aos poucos vai cansando até mesmo os que se declaram cansados e criaram o movimento do ‘Cansei’.

Bem verdade que houve o Pan e o acidente com o Airbus, que criou uma provisória trégua no noticiário. Mas voltamos ao leito natural dos escândalos envolvendo os mensaleiros e o presidente do Senado. Procurar novidade num ou noutro é difícil. Pior do que difícil, é inútil.

A semana que passou trouxe pelo menos duas novidades.

A foto da ex-amante do senador, que se declara em forma aos 39 anos e que parece ter obtido natural consenso de todos os que examinaram o resultado; e a classificação de ‘Cupido’ dada a um membro do Supremo Tribunal Federal, que me parece o único a exibir a venerável barba digna de um capuchinho.

Um Cupido barbudo é uma violência contra a tradição, mas os membros do STF sabem o que fazem e por que fazem. A plebe ignara, que somos todos nós, ignora o que o ministro fez ou deixou de fazer para merecer o nome e a função do personagem mitológico, que os pintores de todas as escolas retratam como um menino nu, como os anjos da Renascença. Fica a sugestão aos editores das revistas masculinas: fotografar o ministro nu, mas com sua respectiva barba, para melhor informação à sociedade. O cachê da foto seria destinado a uma instituição beneficente.

Quanto à foto da ex-amante do senador, a mesma sociedade aguarda informações mais detalhadas.’

STF / SIGILO VIOLADO
Janio de Freitas

A invasão do jornalismo

‘A RELAÇÃO entre jornalismo e invasão de privacidade é muito mais complexa do que aparenta na intensa discussão, desde quinta-feira, a partir do diálogo de e-mails publicado pelo ‘Globo’, que os captou fotografando os computadores de dois ministros em sessão do Supremo Tribunal Federal.

Onde haja liberdade de imprensa, não consta que jamais se tenha ao menos esboçado solução satisfatória, em teoria ou na prática, para o conflito entre jornalismo/interesse público, de uma parte, e sigilo/interesse estrito, de outra. A dubiedade domina essa fronteira. Os casos de nitidez indiscutível de invasão, antes escassos, com a permissividade da internet às inserções mais levianas, ou criminosas mesmo, na ‘rede’ tornaram-se tão vulgares quanto impunes.

As reações condenatórias referem-se, portanto, ao jornalismo impresso. E, no caso, nem elas guardam nitidez conceitual, jurídica ou intelectual. As fotografias dos computadores, feitas à distância dos dois ministros, e a publicação dos diálogos foram definidas por Nelson Jobim como ‘interceptação de comunicação’ e ‘intromissão anticonstitucional a um Poder da República’.

Interceptação não foi. Como a todo ministro da Defesa conviria saber, interceptar é interferir em um percurso pretendido, seja de um avião, de uma tropa, de uma mensagem, de carga, entre inúmeros possíveis. Houve constatação e documentação do constatado. Sem intervenção alguma na livre troca de mensagens entre os dois ministros.

Já a eloqüente ‘intromissão anticonstitucional a um Poder da República’, lembra logo alguma coisa, antes de sujeitar-se ao reparo de que as fotos e a publicação, tanto não se ‘intrometeram’ de forma alguma em Poder nenhum, que o próprio Supremo Tribunal Federal as considerou referentes a mensagens apenas pessoais, desprovidas de conotação oficial, e por isso dispensou-se de toda manifestação a respeito. A ‘intromissão anticonstitucional’ de Nelson Jobim lembra logo que se trata do autor, valendo-se da tarefa de revisor gráfico, da intromissão no texto da atual Constituição de artigos não aprovados, e nem ao menos conhecidos, pela Constituinte de 1988. O que não impediu o autor da autêntica ‘intromissão anticonstitucional’ de chegar a presidente o STF -fato que, se não o define, porque já se definira, pode definir o país.

Em nota, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (nome historicamente tomado como sinônimo de defesa da liberdade de informação) pôs o assunto sob uma comparação que não sei se mais surpreendente ou mais insultuosa para o jornalismo: ‘O Brasil não pode virar um ‘Big Brother’. Seja o daqui ou a matriz plagiada, o ‘Big Brother’ faz parte do processo de imbecilização imposto pelo método de nivelamento por baixo, muito adotado em meios de comunicação, para mais faturar em publicidade com o maior número de telespectadores/ouvintes/leitores. É impossível que Cezar Britto não se tenha inquietado com a evidência, proporcionada pelas fotos e publicação dos diálogos, de que a aposentadoria precipitada do hoje ex-ministro Sepúlveda Pertence e a escolha de seu substituto têm, até agora, injunções políticas e partidárias que se sobrepõem aos critérios apropriados para o Supremo.

Estar próximo de quem fala ao telefone e, notado o interesse público do que é dito, noticiá-lo; ou ouvir, de fora de um gabinete, um diálogo de interesse público e noticiá-lo -são atos de invasão de privacidade ou de função do jornalismo? Essas e situações semelhantes ocorrem todos os dias, aqui e pelo mundo afora, desde que o jornalismo é jornalismo. E haverá diferença essencial, para a função do jornalismo e para o interesse público, entre o que é ouvido sem uso de interferência física e o que é lido em computadores de tela voltada para o público?

Em certa medida, não há dúvida de que os diálogos de tais situações seriam atos privados. Mas, embora a contribuição de uma palavra para a outra, por serem privados não significa que ocorressem em privacidade. Foram deixados por seus autores ao alcance de terceiros. E não importa quantos terceiros.

Os ministros Cármen Lúcia Rocha e Ricardo Lewandowski nada escreveram, nos diálogos fotografados e publicados, que os comprometesse, moralmente, como pessoas ou como magistrados. Se foram desavisados, o foram por conta própria. O que torna injusto atribuir ao repórter-fotográfico Roberto Stuckert e ao seu jornal menos do que a alta qualidade do jornalismo que praticaram. Ou seja, da função pública que têm e exerceram.’

Elio Gaspari

Os e-mails do STF são filhos do progresso

‘A DIVULGAÇÃO da troca de mensagens entre os ministros Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski durante a sessão do STF foi produto do avanço tecnológico das comunicações.

Antes da existência da intranet, os ministros de todos os tribunais rabiscavam bilhetes que se perdiam no lixo. Sobreviveu um só acervo, do juiz Harry Blackmun (1908-1999), da Corte Suprema americana. Seus papéis estão em 1.585 caixas, abertas em 2004. Blackmun dava notas ao desempenho dos advogados e registrava lances pessoais: ‘lambe os dedos’, ‘careca’, ‘vestido bonito’. Outro juiz repassava resultados do beisebol.

Num bilhete, o juiz William Renquisth reclamou de um colega: ‘Acho que ele (William Brennan) decidiu seu voto antes de vir para a sessão, mas podia ficar quieto, não atrapalhando quem quer ouvir os advogados’.

Uma mensagem mandada por Lewandowski para um assessor sugere que ele chegou à sessão de quarta-feira como Brennan. Ouviu o procurador-geral com atenção, mas de cabeça feita. Teve uma dúvida e consultou o colaborador. Ele sustentara que não se pode acusar alguém de peculato se a pessoa não é funcionária pública e não mexeu com o dinheiro envolvido no processo. Era o caso de alguns réus saídos do Banco Rural, que poderiam ser excluídos da denúncia por peculato.

O assessor manteve-se na posição, mas esclareceu: ‘Posso, porém, minutar o voto em sentido contrário’.

‘Não, vamos ficar firmes nesse aspecto, manifestei apenas uma dúvida.’

Na dúvida, ficar firme nem sempre é o melhor caminho para um juiz.’

TELEVISÃO
Daniel Castro

Livro vai contar história do Silvio Santos empresário

‘Ex-diretor de jornalismo do SBT, TV Gazeta e TV Cultura, o jornalista Albino Castro, 58, foi contratado na semana passada pelo Grupo Silvio Santos para contar em livro a história do Silvio Santos empresário.

A biografia oficial sai em dezembro, em comemoração aos 50 anos do Grupo Silvio Santos. O conglomerado, que fechou 2006 com 10.988 ‘colaboradores’ (95% eram funcionários) e faturamento bruto de R$ 3,2 bilhões, nasceu em 1958 com a Ali Produções Ltda., uma firma de fundo de quintal que prestava serviços de alto-falante.

‘A vida artística de Silvio Santos todo mundo conhece. Mas a do empresário é pouco conhecida. Ele se tornou artista para vender os produtos dele. Uma vez, me contou que era um vendedor de carnês do Baú que tinha montado uma televisão para isso. Ele se considera muito mais empresário do que artista’, afirma Castro.

Segundo o jornalista, essa ‘lógica’ explica a instabilidade da grade do SBT e o fato de o jornalismo ser tão desprestigiado na rede. ‘Uma emissora apolítica é importante para um empreendedor’, diz Castro.

Será a segunda biografia autorizada de Silvio Santos. Em 2000, foi lançada ‘A Fantástica História de Silvio Santos’, escrita por Arlindo Silva, seu ex-porta-voz. Atualmente, o jornalista Ricardo Valladares também prepara um livro sobre a vida de Senor Abravanel, sem previsão de publicação.

A obra de Albino Castro promete relatar apenas o lado ‘empreendedor’ do dono do SBT, que começou quando ele tinha 12 anos, em 1945, e aproveitou a democratização do país para ganhar dinheiro vendendo capas para títulos de eleitor nas ruas do Rio de Janeiro.

A biografia fará um paralelo entre os negócios de Silvio Santos, que completa 77 anos em dezembro, e a história do Brasil na última metade de século. ‘Sua estréia como empresário coincide com a industrialização dos anos JK’, lembra o biógrafo. Será uma história de sucessos, mas Castro promete relatar também os ‘momentos difíceis’, como no início dos anos 90, quando o grupo foi ‘salvo’ pela Telesena.

O Grupo Silvio Santos congrega hoje 13 empresas de comunicações, 11 financeiras, três de comércios e serviços (entre elas a BF Utilidades, o Baú, e a Liderança Capitalização, da Telesena), cinco de ‘novos negócios’ (destaque para uma de cosméticos) e quatro coligadas.

BEIJO DA DISCÓRDIA

O autor Tiago Santiago está tentado a mostrar um beijo gay na novela ‘Caminhos do Coração’. O assunto divide a Record. Setores avaliam que a cena seria um ‘avanço ideológico’ e reforçaria a imagem de ‘independência’ da Igreja Universal. Mas tem gente que acha que o resultado pode ser desastroso -ou no mínimo parecer apenas marketing. Para sanar a dúvida, a rede fará pesquisas para decidir se Déo Garcez e Claudio Heinrich serão os protagonistas do primeiro beijo gay da TV brasileira.

POESIA

Antônio Calloni, que também é escritor e poeta (já escreveu quatro livros), será atração da próxima Bienal do Livro do Rio de Janeiro, em setembro. Vai ler poesias inéditas de seu acervo. Em novembro, começa a gravar a próxima novela das sete.

PERSONALIZADO

Fátima Bernardes tem um toque de celular exclusivo para as ligações que recebe do maridão, William Bonner: o já batido tema do plantão de jornalismo da Globo.

IRA

Uma jovem atriz e um ator mais jovem ainda vêm dando altos pitis nos bastidores de ‘Sete Pecados’.

Pergunta indiscreta

FOLHA – Como diretor do ‘Big Brother Brasil’ e responsável pela ‘revelação’ de Diego Gasgues, o Alemão, e Íris Stefanelli, você não sente vergonha quando os vê fazendo carreira na televisão?

J.B. DE OLIVEIRA, O BONINHO – [Sim] Principalmente pelos diretores que tiveram a coragem e a cara-de-pau de colocá-los no ar. Os dois são péssimos, o quadro do Alemão [no ‘Fantástico’, já extinto pela Globo] é uma vergonha e a Íris [no ‘TV Fama’/Rede TV!] nem se fala!’

Rafael Cariello e Laura Mattos

Braga leva novela ao limite da forma, diz psicanalista

‘Gilberto Braga é o queridinho dos intelectuais.

Mais do que os pequenos golpes da prostituta Bebel ou as vilanias de ricos e arrivistas, alguns dos principais pensadores da sociedade brasileira vêem nas novelas do autor de ‘Paraíso Tropical’ uma representação sofisticada do país.

Considerado o melhor novelista atual do Brasil por acadêmicos entrevistados pela Folha, o criador de ‘Dancin’ Days’, ‘Vale Tudo’ e ‘Celebridade’, entre outros sucessos, é elogiado por seu diálogo com a tradição cinematográfica norte-americana e a ficção de Nelson Rodrigues.

‘Acho ele melhor do que os outros autores’, diz Sergio Miceli, professor de sociologia da USP, que vê o interesse de sua dramaturgia na ‘aposta em mostrar o lado menos bonzinho, mais perverso’ dos personagens. ‘Ele tem um lado de contra-senso, de um sentido menos domesticado’, diz.

Miceli conta que havia parado de ver novelas anos atrás, mas que foi fisgado por ‘Paraíso Tropical’ por causa de sua mulher. ‘Ela se ligou na novela e acabei me ligando também.’

O sociólogo aponta problemas na trama atual, como personagens estereotipados, distantes da ambivalência maior que, para ele, predominava em folhetins anteriores de Braga.

Outros são classificados por ele como ‘bastante simpáticos’, mesmo se caricatos, caso do executivo-vilão interpretado por Wagner Moura. ‘O Olavo não pode ver uma mulher que já vai e marca o quarto; é de uma animação! É inacreditável. O personagem tem um lado completamente caricato, é um herói de quadrinhos. Como você pode ter um peru em prontidão permanente dessa maneira?’, diz, bem-humorado.

Para o psicanalista Tales Ab’Sáber, Braga é o ‘grande inventor moderno’ do gênero telenovela e o levou ‘até o limite extremo da sua forma’. Por ter feito tanto, a seu ver, Ab’Sáber chega a comparar o salto qualitativo atingido pelo autor em ‘Vale Tudo’ (1988) com o nível atingido por Machado de Assis em suas obras de maturidade.

Elite cínica e violenta

‘Não foi por acaso, portanto, que ele deu o seu próprio salto mortal, como ocorreu com Machado de Assis cem anos antes no registro da alta literatura’. Segundo ele, em ‘Vale Tudo’, Gilberto Braga ‘passa a olhar o Brasil do ponto de vista radical de uma elite beneficiária da vida nacional estagnada, que opera com liberdade cínica e violência sistemática a sua relação com uma classe média ambígua ao extremo em relação à ordem de exploração e ao descompromisso do grande dinheiro por aqui’.

Isso significou, segundo Ab’Sáber, que ‘a novela brasileira, finalmente, estava à altura da história’. ‘Gilberto Braga é de fato o único dramaturgo da TV brasileira que pode ter no Brasil o seu personagem’, diz.

O novelista, em entrevista à Folha, disse que tenta simplesmente ‘mostrar o Brasil real, muitas vezes com ironia’.

Ab’Sáber vê em ‘Paraíso Tropical’ a realização de ‘algo novo’ na dramaturgia. ‘Nessa novela, os vilões são impotentes, e a cada ato de interesse imoral rumo ao dinheiro -o sujeito oculto de toda a trama- corresponde uma imediata frustração. Nada se realiza nos planos gerais de supremacia de quem os tem. No plano das novelas, isso é muito novo’, diz.

‘Creio que se comenta aí o estado de moratória social e de crise de orientação das elites, que têm um mal-estar com o fato de estarem condenadas ao país degradado no qual vivem em pleno benefício, além de se sentirem punidas com a estagnação histórica do país, que elas mesmas promoveram.’

Melodrama temperado

Menos taxativo que Ab’Sáber, o professor da Escola de Comunicações e Artes da USP Ismail Xavier elogia Braga. ‘Como gosto pessoal, acho ele o mais interessante. Mas não quero fazer disso um juízo de autoridade’, afirma.

‘Gilberto Braga demonstra claramente que é um espectador do cinema clássico americano. E faz a ponte entre a cultura brasileira e esse cinema industrial clássico’, diz o crítico, que aponta também relações com Nelson Rodrigues.

Essa influência do cinema, complementa, ‘aparece principalmente na microcena, nos diálogos, na maneira como se comportam as pessoas’.

Não se trata de realismo, diz, já que o esquema do melodrama -com temas morais marcados, vilões e mocinhos- permanece, mas de um uso do naturalismo do cinema americano como ‘método de interpretação’ e de escrita de diálogos.

O professor de filosofia da USP Renato Janine Ribeiro, para quem ‘Vale Tudo’ foi ‘a melhor narrativa de novela’ a que já assistiu, diz não concordar com a idéia de que uma obra de ficção ‘retrate’ uma realidade social qualquer. Ele afirma preferir pensar os efeitos que essa criação pode ter.

‘É muito importante a exposição que ele faz dos vícios brasileiros. Uma parte da convicção que existe no Brasil de que algumas condutas são inaceitáveis se deve às novelas. É o papel da crítica social, de que algumas coisas são intoleráveis e devem ser contestadas de uma maneira muito dura, severa.’

O novelista, ao saber dos elogios, comentou: ‘Claro que fico prosa. Logo eu, que fugi da faculdade no segundo ano de Letras e me acho tão inculto…’.

DE BILLY WILDER A JANETE CLAIR

Gilberto Braga comenta quem fez sua cabeça: ‘Sou muito influenciado pelo grande cinema americano, sim, por diretores como Billy Wilder [1906-2002], George Cukor [1899-1983], Alfred Hitchcock [1899-1980] e tantos outros. Nelson Rodrigues [1912-1980], sem dúvida, nosso gênio. E Janete Clair [1925-1983], naturalmente’.’

Marcelo Bartolomei

Record ‘incha’ elenco em nova novela

‘A julgar pelo número de personagens, 63, ‘Caminhos do Coração’, que estréia nesta terça na faixa das 22h, chega ‘inchada’ se comparada às demais novelas da Record. É um recorde na carreira de Tiago Santiago, 44, desde que estreou na emissora, em 2004, onde tem duas obras. ‘A Escrava Isaura’ teve 43 personagens, e ‘Prova de Amor’, 48.

Na emissora, só ‘Bicho do Mato’, escrita por Bosco Brasil e Cristianne Fridman em 2006 e supervisionada por Santiago, teve mais personagens, 69.

Na Globo, os núcleos são maiores, mas depende de cada novelista. ‘Sete Pecados’ (Walcyr Carrasco), por exemplo, tem 75; ‘Eterna Magia’ (Elizabeth Jhin), 54; e ‘Paraíso Tropical’ (Gilberto Braga e Ricardo Linhares), 88.

‘Agora já estou mais preparado. Por ser uma trama policial, vários personagens morrem. Mas pelo menos 50 têm que estar na história. É a novela mais difícil que já escrevi’, diz Santiago, que sabe dos riscos em inflar núcleos, mas se sente seguro e mais maduro.

Para o doutor em teledramaturgia da USP Mauro Alencar, 45, o aumento de personagens é uma tendência brasileira, que começou na década de 90. ‘A novela tem sempre que dialogar com um público heterogêneo, por isso há vários temas a serem explorados. Como é uma herança do rádio, começou com núcleos pequenos’, diz. ‘É preciso muito talento para lidar com muitos personagens.’

O dramaturgo Cassiano Gabus Mendes (1929-1993) dizia que uma boa novela deveria ter 24 personagens, no máximo. João Emanuel Carneiro segue esse pensamento e prefere núcleos menores: ‘Cobras & Lagartos’ (2006) teve 32; sua primeira, ‘Da Cor do Pecado’ (2004), 24.

Na contramão, Manoel Carlos é considerado craque em núcleos gigantes. Sua última novela, ‘Páginas da Vida’, teve 150 personagens, contando participações especiais. Tantas histórias podem gerar ‘buracos’, como o dos genros de Tide (Tarcísio Meira), que sumiram da trama.

Mas uma grande galeria de personagens pode servir como recurso para esticar a novela, caso necessário. ‘Tornou-se uma exigência da indústria’, afirma Alencar.

Santiago aprendeu em ‘Prova de Amor’, quando havia resolvido os desfechos e a emissora pediu um mês a mais no ar. ‘Daí eu apelei’, diz, referindo-se à reaparição do vilão morto e de reviravoltas imprevistas.

Segundo o diretor-geral de ‘Caminhos do Coração’, Alexandre Avancini, 42, para crescer é preciso mais infra-estrutura. Hoje, ele mantém quatro frentes de gravação por dia. Nesta, que é a nona novela da ‘retomada’ da Record, também cresceram as equipes de produção, direção e roteiristas e as cotas de patrocínio -8% a mais, segundo o vice-presidente comercial Walter Zagari.’

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TRAMA UNE INJUSTIÇA SOCIAL E SUPERPODERES

‘O autor de ‘Caminhos do Coração’, Tiago Santiago, diz que a novela tem uma estrutura tradicional de folhetim, com história de amor, injustiças sociais, humor e um toque de realismo fantástico, com personagens que têm superpoderes. A história começa com Maria (Bianca Rinaldi), adotada por uma família circense, presa injustamente pela morte do pai. Em paralelo, vilões perseguem e eliminam pessoas ligadas a um escândalo de experiência genética em bebês.’

Luiz Fernando Vianna

Andréa ilimitada

‘Aos 22 anos, em 1985, Andréa Beltrão começou a fazer sucesso como a Zelda Scott, de ‘Armação Ilimitada’. Hoje, idade dobrada, ela é dona de teatro, produz e dirige peças, produz e atua em filmes, faz rir na série de TV ‘A Grande Família’ e ainda desempenha o papel de mãe de três filhos.

Em meio a tantas Andréas, já não há mais lugar para Zelda Scott. Caso vingue, o filme sonhado por André Di Biase e Kadu Moliterno não terá a atriz revivendo a musa dos anos 80.

‘Não me interessa. Já passei dessa idade. Acho que vão ter que chamar uma gatinha mais nova. Quero que façam muito sucesso, sejam felizes, mas quero assistir no cinema’, diz.

Ela está tão envolvida com os ensaios da peça ‘As Centenárias’, que estréia em 6 de setembro ao lado da amiga de 20 anos Marieta Severo, que nem teve tempo de abrir a recém-lançada caixa de DVDs com dez episódios de ‘Armação’. Mas as recordações são boas.

‘Zelda namorava dois caras, mas nunca ouvimos comentários do tipo: ‘Ah, que menina escrota, como ela é dada!’. Era a mocinha, a heroína romântica. Hoje, a gente vê umas coisas na TV e diz: ‘Ah, que mão pesada!’, compara ela, lembrando com orgulho das tarjas pretas que a equipe do diretor Guel Arraes punha para cobrir sua nudez (estava de biquíni, na verdade). ‘Eu achava um charme. É muito melhor do que ficar de ladinho, só escondendo os fiofós.’

Os filhos já andaram vendo trechos de ‘Armação’ e, segundo ela, ‘acharam incrível’ vê-la com dois namorados. ‘Nossa, o papai sabia disso?’. ‘O papai nem estava nessa fita ainda’, relembra o diálogo.

‘Papai’ é Maurício Farias, diretor do sucesso ‘A Grande Família’ -média de 40 pontos de ibope na TV Globo e 2 milhões de espectadores no cinema. Andréa é a agregada Marilda, que ‘fuma, bebe, toma uns remédios, botou 600 ml de silicone e só namora cafajeste’.

‘A gente está precisando de um seio familiar, alguém em quem confiar. Para brigar, depois voltar e a pessoa dizer: ‘Senta e come, a comida vai ficar gelada’. É alguma coisa que deve estar no ar, porque o programa fazer esse sucesso há sete anos é inexplicável’, avalia.

Baixo orçamento

Até porque a família se estende ao cinema. Grande parte da equipe técnica que Farias coordena na TV trabalhou com ele e Andréa em ‘Verônica’, primeiro filme produzido pela atriz. Foi rodado com R$ 500 mil em sistema de cooperativa: os profissionais receberam um cachê básico e o resto virá (ou não) da bilheteria. Falta o dinheiro da finalização.

Sem deixar de ser atriz -em ‘Jogo de Cena’, de Eduardo Coutinho, e ‘Romance’, de Guel Arraes, recentemente-, ela quer produzir mais: já tem outros dois projetos com Farias, e num deles nem atuará.

Tanto ímpeto se completa com o Poeira, o teatro que Andréa e Marieta abriram há dois anos em Botafogo (zona sul do Rio), perto do cemitério São João Batista. Mesmo sem perspectiva de recuperar o dinheiro investido, as duas compraram agora o terreno vizinho, para ampliar as instalações.

‘Eu falei: ‘Marieta, se der errado essa porra, a gente abre como casa de velório. E aqui já tem caixão, música, carpideira’, diz ela, referindo-se a elementos de ‘As Centenárias’, peça de Newton Moreno, dirigida por Aderbal Freire-Filho, em que as atrizes interpretam carpideiras, entoam incelenças [canto de encomenda das almas] e driblam a morte.

‘Panelinha demais’

O espetáculo tem patrocínio do Bradesco, a mesma empresa que, no ano passado, patrocinou a vinda ao Brasil do Cirque du Soleil, para a qual o Ministério da Cultura autorizou a captação de R$ 9,4 milhões.

‘Aí houve um excesso. Não estou criticando meu patrocinador, mas critico os excessos da lei que permitiram essa captação gigante’, afirma Andréa, que, embora sem empolgação, elogia Gilberto Gil. ‘Ele deu visibilidade ao ministério. Houve época em que nem se falava em cultura: ‘Que ministério? ele existe?’. Era pior, tudo meio escondido, panelinha demais. Ficou um pouco mais aberto. Então, aparecem as qualidade e os defeitos’, diz.

O Poeira tem dinheiro da Petrobras -o que leva as atrizes a criarem projetos com entrada franca- e muito trabalho das duas. ‘Nada do que uma quer choca a outra. Nossa amizade tem uma saúde mental que nós não temos’, diz Marieta.’

Sérgio Rizzo

Com Zelda, Juba e Lula, ‘Armação’ foi marco da televisão irreverente

‘De 1985 a 1988, Andréa Beltrão foi a intrépida jornalista Zelda Scott (Zéu, para os íntimos), repórter d’ ‘O Correio do Crepúsculo’, então sob o comando de Chefe (Francisco Milani). Nas discussões entre os dois, expressões de linguagem eram traduzidas literalmente em imagens. Alguém ‘cheio de dedos’, por exemplo, tinhas dezenas deles.

Esse marco da irreverência e da abordagem pop na ficção televisiva brasileira, com referências a HQs e ao cinema de ação, é homenageado com o lançamento do DVD duplo de ‘Armação Ilimitada’, que traz dez episódios da série estrelada por heróis-esportistas Juba (Kadu Moliterno) e Lula (André Di Biase), escoltados pelo moleque Bacana (Jonas Torres).

A coletânea permite acompanhar a evolução da série que, após um início titubeante, amadureceu para fazer escola, entrar para a história e consolidar Guel Arraes como um dos principais diretores de TV.

ARMAÇÃO ILIMITADA

Direção: Guel Arraes

Lançamento: Som Livre (R$ 40)

Avaliação: bom’

Bia Abramo

O paraíso dos torpes

‘A NOVELA que começa a acabar vai entrar no ritmo de ‘quem matou’ e, com isso, se ganha em suspense, perde um pouco da graça. Mesmo com altos e baixos, ‘Paraíso Tropical’ é, certamente, a melhor -e talvez última- grande telenovela dos últimos tempos.

Se é verdade que Gilberto Braga sempre se caracterizou por uma novela mais próxima da matriz literária, atualizando o melodrama e o romance realista do século 19 para outro meio e outros tempos, também deve ser exato afirmar que ele -ou Ricardo Linhares, ou ambos- aprendeu muito sobre ritmo e velocidade com as séries norte-americanas. A novela combinou a agilidade na condução da trama característica da teledramaturgia praticada pelas sitcoms com o desenho caprichado dos personagens e a vivacidade para criar e flagrar um entorno social com alguma credibilidade.

‘Celebridade’, a novela anterior de Braga para o horário da oito, ainda patinou muito no que diz respeito ao ritmo. Em ‘Paraíso Tropical’, em todos os sentidos muito mais bem acabada que sua antecessora, parece que a lição foi aprendida -e isso (quase) sem apelar para os recursos mais rasteiros para manter a atenção do espectador.

Agora, ‘Paraíso Tropical’ também inaugura (ou radicaliza) um problema para a teledramaturgia: é possível ainda sustentar o conflito entre herói(s) e vilão(ões)? Não apenas por causa de uma certa incompetência de criar heróis e heroínas que não passem o tempo todo a afirmar suas qualidades intrínsecas e, de fato, façam algo além de se defender da perfídia dos vilões.

Mas talvez a crise do esquema esteja no fato de os vilões não serem mais pérfidos -ou de um autor inteligente como Braga ser incapaz de escrever um personagem simplesmente ruim por natureza. A torpeza dos vilões de ‘Paraíso’ ultrapassa as explicações psicológicas de praxe. É a afirmação de um estilo de vida, de escolhas conscientes, pragmáticas e, de certa forma, coerentes num mundo de pernas para o ar -mas uma afirmação que se faz para si mesma, sem proselitismo às avessas.

Assim, Braga-Linhares não cria apenas vilões que são simpáticos e charmosos (embora o sejam), mas que, antes de tudo, nos parecem reivindicar uma possibilidade legítima, se não no sentido moral, pelo menos no existencial. E aí, como torcer?

Como torcer contra o amor sexy e doce de Bebel e Olavo? Como querer que a dignidade de Marion, professora de como se comportar bem na torpeza, seja ferida? Como querer que Jáder, cafetão violento, não possa proteger a filha recém-descoberta de outro cafetão? E, por fim, pela mesma régua, como crer no novo Antenor?’

DIANA & MÍDIA
Anthony Giddens

Bridget Jones real

‘Os anos 1980 assinalaram uma transição grande para a monarquia britânica, não apenas em razão de Diana propriamente dita mas também em razão de mudanças estruturais mais amplas. A cultura da deferência estava ficando para trás, enquanto despontava a era das celebridades.

No passado, a imprensa não se intrometera na privacidade da família real, mesmo quando alguns de seus membros (a princesa Margaret, por exemplo) se metiam em problemas de vários tipos. A rainha conserva até hoje a tradição de jamais conceder entrevistas.

Diana foi escolhida para casar-se com Charles porque parecia pertencer a esse passado em processo de desaparecimento. Ela era uma tímida professora de pré-escola, sem passado sexual discernível.

Tenho certeza de que, no início, ela acreditou inteiramente na idéia de que viveu o sonho de Cinderela de ser arrebatada por um belo príncipe. Ela se desiludiu rapidamente e passou a viver sua vida por meio do interesse público suscitado por seus problemas.

Ao mesmo tempo, era um espelho da luta das mulheres para libertar-se do passado, mas não conseguiu encontrar uma maneira de fugir dele.

Sua anorexia era a expressão física de seus problemas, mas ela quase a ostentava como emblema de sua resistência ao ambiente do palácio. Diana era a ‘celebridade’ arquetípica, no sentido em que abraçou sua condição de celebridade, mas, ao mesmo tempo, ansiava por voltar ao anonimato.

Ela era ‘abordável’ de um modo que nenhum outro membro da família real foi até hoje. Não creio que ela tenha sido uma pessoa excepcional sob qualquer aspecto, mas era alguém que aparecia numa telenovela-realidade -precursora da TV-realidade que chegaria mais tarde. Era Bridget Jones [personagem de romance de Helen Fielding que registra em livro toda a sua vida e a busca pelo homem ideal], mas traduzida para uma esfera mais elevada.

O frenesi que cercou o casamento original foi inteiramente diferente do fervor que Diana passou a suscitar mais tarde. Foi ‘institucional’ -um espetáculo público do tipo antigo, que se enquadrava nas rotinas tradicionais.

Basta colocar em contraste o casamento e o funeral, em que Elton John cantou, num encontro extraordinário entre a realeza e a cultura popular.

Além disso, Elton reescreveu para o funeral uma homenagem melódica, mas sentimentalóide, a Marilyn Monroe; espantosamente, isso foi tolerado pelo palácio, principalmente porque a família real errara no tom de sua própria reação à morte de Diana.

Comprovando que algumas coisas continuam iguais, apesar de mudar, a família real, sobretudo a rainha, conseguiu reafirmar sua autoridade, tanto que, hoje, 80% da população expressa apoio a ela. Os problemas de Diana não estavam relacionados apenas à realeza enquanto tal ou a sua própria fama mundial ambígua.

Também se deviam a algumas questões bastante simples e diretas. Quando, em sua entrevista célebre, ela disse que havia ‘três de nós’ em seu casamento, descreveu um problema bastante comum, embora tortuoso: que seu marido, desde o início, não conseguira esquecer seu relacionamento passado, que tinha sido muito forte -tão forte que foi retomado após a morte de Diana.

‘Princesa do povo’

Enquanto o casamento de Diana e Charles existiu oficialmente, houve poucas decorrências diretas para a política. Diana apenas passou a defender causas humanitárias de maneira pública quando seu casamento já tinha claramente ingressado em fase terminal.

[O então premiê] Tony Blair foi magistral no tratamento público que deu à morte de Diana, declarando que ela tinha sido a ‘princesa do povo’. Foi um momento-chave também na vida dele e uma plataforma para sua popularidade inicial, baseada em grande medida numa conexão pessoal com o eleitorado.

Mas os diários de Alastair Campbell [ex-diretor de Comunicações de Blair, renunciou em 2003] mostram que eles passaram uma noite em claro decidindo como reagir (à morte de Diana). O próprio Campbell parece ter ficado fortemente impressionado quando conheceu Diana.

Como parece ter sido ele quem cunhou a frase ‘princesa do povo’, esse foi mais um momento emblemático no surgimento do culto às celebridades, porque ele queria arrancar um pouco de capital político do acontecimento, além de captar o estado de ânimo da nação.

Fui olhar a multidão de cartas escritas a Diana por pessoas comuns, em sua memória, e que estavam empilhadas diante do palácio de Kensington. Elas mostram que muitas mulheres de fato sentiam uma empatia especial por Diana -muitas escreveram como se ela ainda estivesse viva.

Não vi muitas cartas de homens. Mas a emoção coletiva aconteceu e desapareceu rapidamente, quase como se a coisa toda tivesse sido mais uma história que a realidade. Hoje, Diana parece uma figura distante. Blair não conquistou nenhuma vantagem de longo prazo a partir da maneira como enfrentou a morte de Lady Di.

Pelo contrário, ele dependia um pouco demais de uma forma personalizada de legitimidade. Mais tarde, sofreu mais do que talvez teria feito se tivesse construído uma presença pessoal mais digna, baseada em algo mais sólido; a desilusão das pessoas em relação a ele foi um pouco como o que acontece quando um caso de amor azeda.

Hoje a família real exerce pouca influência sobre a política, mesmo num sentido difuso.

A deferência desapareceu para sempre. O futuro da família real está em discussão: o que acontecerá quando a rainha morrer ou abdicar do trono?

Charles não é nem um pouco popular, e tampouco Camilla o é, apesar de a população estar mais conformada com ela do que estava antes.

A monarquia vai perdurar, mas talvez fique mais e mais marginalizada -mais uma atração turística que símbolo da nação e de sua continuidade.

ANTHONY GIDDENS é sociólogo e ex-diretor da London School of Economics. Foi o principal teórico da Terceira Via, programa encampado por políticos como Tony Blair e o ex-presidente dos EUA Bill Clinton. É autor de, entre outros, ‘O Debate Global sobre a Terceira Via’ (ed. Unesp). Depoimento dado a Andrea Murta .

Tradução de Clara Allain.’

Caio Liudvik

Gente como a gente

‘Longe de ser um paradigma para a mulher ‘pós-feminista’ do mundo contemporâneo, a princesa Diana, morta há dez anos, foi sobretudo personagem de um enredo que remonta ao tempo das tragédias gregas e dos contos de fada, numa remixagem midiática para as massas.

A tese é do francês Alain Touraine, na entrevista a seguir, dada à Folha por telefone.

Touraine, um dos principais sociólogos da atualidade, se consagrou como agudo analista da sociedade pós-industrial.

Após se devotar a estudos sobre o trabalho e a classe operária -boa parte dos quais na América Latina- e sobre movimentos sociais, ele se voltou para a revalorização da categoria do sujeito.

Sua meta é desvendar os protagonistas e as formas de ação que hoje impulsionam as grandes transformações -que, para ele, são mais culturais que sociopolíticas.

E é nesse contexto que Touraine decidiu atentar para a questão da mulher. Realizou na França, entre 2004 e 2005, 60 entrevistas, três reuniões de grupos de discussão e um estudo complementar sobre as mulheres muçulmanas.

O resultado é o livro ‘O Mundo das Mulheres’ (trad. Francisco Morás, 208 págs., R$ 35), que está saindo no Brasil pela editora Vozes.

Nele, o professor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) mostra como as mulheres são hoje construtoras de uma nova cultura, válida não só para elas mesmas mas para o conjunto da sociedade.

Uma cultura marcada pela priorização não mais da ‘conquista do mundo’ -típica da época da dominação masculina-, mas sim de uma ‘construção de si’ sustentada na sexualidade e na combinação do que, antes, eram pólos opostos -por exemplo, afetividade e razão, corpo e espírito, masculino e feminino.

Alquimias múltiplas que superariam as assimetrias e ‘formas de dominação que deram sua dinâmica (e sua brutalidade) à modernização européia’.

Para Touraine hoje a mulher afirma sua autonomia e liberdade sem recorrer ao discurso da vitimização nem à queima de sutiãs em praça pública.

E, assim, ela também reflete e reforça o primado da felicidade individual e o descrédito que pesa sobre a política e sobre as formas tradicionais de ação e de utopia coletivas.

FOLHA – Qual o significado da princesa Diana, dez anos após sua morte? Ela seria um símbolo dessa mulher ‘pós-feminista’ de que o sr. trata no livro?

ALAIN TOURAINE – Essa não é minha opinião, pois considero que toda a evolução cultural de que falo é uma outra coisa. A personagem de Lady Di teve uma popularidade extraordinária por razões diferentes.

Trata-se de um fenômeno clássico: a família real -e tudo o que diz respeito à família real, seja na Inglaterra, em Mônaco etc.- tem um aspecto de conto de fadas. Por outro lado, há um tipo de brutalidade nas relações dentro desse mundo dourado da família real, relações de uma brutalidade extrema: o príncipe que casa com uma mulher muito jovem e já tem uma amante…

Vendo sociologicamente, penso na emoção extrema da população, carregando problemas da vida pessoal, conflitos pessoais, sonhos, violência ou amor que se encontram ao mesmo tempo na corte.

Essa mistura da dureza da História e da sensibilidade de uma história de vida pessoal existe, por exemplo, em Maria Antonieta, rainha da França guilhotinada, ou nas amantes de Luís 14.

Não acredito de modo nenhum que isso seja de hoje, já que o tema da princesa infeliz já está presente na tragédia grega, está presente em todo lugar e é algo que considero mais fundamental, mais permanente. Não acredito de modo algum que se possa considerar a personagem de Lady Di como especificamente pós-feminista.

FOLHA – Em seu livro, o sr. cita a mudança cultural protagonizada pela mulher atual como sendo a capacidade de combinação de opostos. Um fato como o namoro de Diana com um homem de origem árabe [Dodi al Fayed] não significa uma síntese -ao invés de um choque- de culturas? TOURAINE – Quando você me diz que o último namorado de Diana foi árabe, digo: primeiramente era milionário, em segundo lugar, inglês e, em terceiro, árabe. Enfim, não se trata aqui de ele ser árabe, pois era filho do proprietário da Harrods [célebre loja de departamentos londrina, do milionário egípcio Mohamed al Fayed]. Dificilmente se pareceria com um homem do Terceiro Mundo.

FOLHA – O que explica então o fascínio despertado pela princesa?

TOURAINE – É essa mistura que é fascinante para as pessoas: de um lado, o sentimento pessoal e a corte e, de outro, os milhões e os bilhões em dinheiro.

Penso que o mundo do poder e o mundo do dinheiro são completamente controlados, frios. Quando vemos tudo isso ser perturbado, alterado, por uma sensibilidade pessoal, por uma história extremamente complicada entre o príncipe, sua mulher e seu amante, ficamos fascinados.

Que as coisas que acontecem na rua ao lado se passem também na casa dos bilionários e na corte também fascina.

Mas o que me toca, o que toca milhões de pessoas, é esse sentimento da proximidade dessa mulher, da morte, do acidente como uma tragédia grega. O amor, o dinheiro, os tronos, a traição, a morte são todos temas da vida humana e se encontram nessa personagem.

Penso que as inúmeras pessoas, de vários lugares, que enviaram flores [após a morte de Diana] são pessoas sensíveis -o que me parece tão sincero quanto respeitável- ao que é o encontro de uma tragédia, uma história de um amor pessoal, no meio de um mundo frio, poderoso e imóvel, que são o trono e o dinheiro.

FOLHA – Camille Paglia declarou que, com a entrada de Lady Di na família real, a monarquia britânica se ‘modernizou’. O sr. concorda? TOURAINE – Escute, não concordo, porque não vejo onde está a modernidade nisso. A rainha defende as tradições, o que é o papel dela. Mas não se pode dizer que ela seja modernizadora.

Quanto ao príncipe herdeiro [Charles], o mínimo que posso dizer é que se pode ter dúvidas sobre o fato de sua chegada ao trono salvar a monarquia britânica. O Reino Unido é um país de grande tradição.

Há uma espécie de força intrínseca à monarquia, embora a rainha tenha um poder muito pequeno, enquanto o rei da Suécia e a rainha da Holanda não têm poder nenhum.

A Inglaterra é um país em que, mais do que em qualquer outro, convivem aspectos extremamente modernos e extremamente tradicionais. Mas eu diria que, com efeito, Lady Di representa problemas que são não modernos, mas eternos e alheios à instituição.

Nesse sentido, o mau humor da rainha em relação a Lady Di indica bem que a monarquia se sentiu ameaçada.

E hoje penso que muita gente, ao olhar para esse homem que pode se tornar rei [príncipe Charles], sempre se lembrará do drama de sua vida, do drama de Lady Di.

Isso é um elemento negativo para a monarquia britânica.

FOLHA – O sr. detectou alguma influência da imagem de Lady Di sobre as mulheres ouvidas na pesquisa que resultou no livro?

TOURAINE – Não. As mulheres comuns, normais, médias, estão concentradas na construção cultural da personalidade delas, enquanto o fenômeno Lady Di é do gênero da fábula, da relação com o imaginário.

Não quero exagerar, mas diria que a referência a Lady Di seria provavelmente considerada negativa pela maioria das mulheres que eu ouvi.

Não sua personalidade, mas o excesso de publicidade [em torno dela], a mídia etc.

FOLHA – Falando agora de seu livro, por que escolheu a mulher como objeto de pesquisa?

TOURAINE – Meu livro não trata da identidade feminina. Ele apresenta proposições sobre as transformações da sociedade, em particular a idéia de que as categorias culturais comandavam, a partir de um dado momento, as categorias sociais.

Observei inicialmente que as mulheres correspondiam a essas mudanças ou eram suas portadoras. E descobri que não havia nenhuma resposta.

Iniciei um trabalho pessoal de entrevista com grupos e indivíduos e me deparei com temas que correspondiam exatamente àquilo que eu pensava.

Isto é, que essas mulheres se definiam em termos de cultura, de personalidade, e consideravam que ser mulher era a meta da vida, que elas queriam se construir como mulheres e principalmente numa determinada área, a sexualidade.

Portanto, não fiz uma ruptura com o que fazia antes; eu diria que transformei a tese geral de meu livro sobre o novo paradigma [‘Um Novo Paradigma -Para Compreender o Mundo de Hoje’, ed. Vozes] em definição e descoberta de novos atores. A passagem para um novo paradigma é realizada sobretudo pelas mulheres.

FOLHA – A partir de seu livro, é possível responder à pergunta de Freud ‘o que querem as mulheres?’?

TOURAINE – A referência a Freud é particularmente imprópria aqui na medida em que o tema foi pouco estudado por ele e, por vezes, de maneira quase ridícula, como sobre a inveja do pênis etc.

Meu ponto de vista não é o da psicologia. Escutei as mulheres, as fiz falar entre elas, e segundo uma visão da sociedade.

Quais são ou devem ser suas condutas, seus princípios de orientação positiva. Eu descobri essas mulheres como criadoras ou aquelas que afirmavam uma nova moral.

Para falar rapidamente, a imagem masculina era a imagem da conquista do mundo, e a imagem feminina é não a da conquista, mas sim a da construção de si.

Um retorno ao interior, acrescentando-se que o que é feito ou iniciado pelas mulheres é adotado pelos homens com grande facilidade ou com grande lentidão.

Quando nós entrevistamos os homens, em geral eles dizem que estão de acordo com essas transformações, que, com efeito, eram transformações culturais feitas para todo mundo, homens e mulheres.

FOLHA – Essa diferença que o sr. assinalou, entre a conquista do mundo e a construção de si, se deve a uma distinção de ‘natureza’ entre o masculino e o feminino?

TOURAINE – Minha interpretação foi antes de tudo histórica. Ou seja: houve um modelo de desenvolvimento histórico, que podemos chamar de ocidental ou europeu, que se baseou em fundamentos como a conquista do mundo. Ou seja, a concentração de poder e recursos nas mãos de pequenas elites e a submissão de categorias como os trabalhadores e colonizados, mulheres e crianças.

Ao longo do século 20 ou dos dois últimos séculos, as revoluções suprimiram os reis, os movimentos quiseram obter capacidades e direitos, as colônias foram descolonizadas etc.

E então o mundo ocidental se encontrou sem projetos construtivos e num tipo de abandono, digamos, ao mercado e a um tipo de consumo elementar.

E o que observo é que se constituem e se constituíram no mundo ocidental, num amplo sentido, novos objetivos, que são não de modo nenhum de conquista, mas sim, ao contrário, fundamentalmente de restabelecer uma certa unidade entre pólos que haviam sido contrapostos. Evidentemente o caso mais importante é o da ecologia política.

As mulheres de início participaram ativamente desse movimento, mas realizam algo análogo, que é: não se deve opor o corpo e o espírito, o corpo revestindo o espírito.

É preciso, ao contrário, reconciliar, combinar os opostos, e isso se tornou um grande tema da cultura contemporânea.

Há muitos estudos mostrando que, quando interrogadas sobre a escolha entre a vida profissional e a vida privada, elas respondem: ‘Não é uma questão de escolha, nós podemos combinar as duas coisas’ -e é isso o que é característico da cultura contemporânea.

FOLHA – Então o ‘mundo das mulheres’ é hoje o mundo de todos?

TOURAINE – Certamente. É algo clássico, os grandes movimentos culturais ou sociais foram sempre promovidos por grupos particulares, mas com uma intenção universalista.

As mulheres não dizem jamais que querem substituir um mundo masculino por um feminino. Elas querem é ir além das oposições, suprimir a dominação do homem sobre a mulher e promover um mundo de reintegração dos elementos que haviam sido contrapostos.

FOLHA – E quais as perspectivas para os homens no ‘mundo das mulheres’? Um tipo de feminização?

TOURAINE – Essa questão é muito difícil. Não diria feminização, mas de certa forma os homens estão envolvidos no movimento que foi mais definido pelas mulheres, isto é, um cuidado de si, seja pela ginástica, o cuidado com o corpo ou o retorno a religiões orientais.

FOLHA – Como definir o papel da sexualidade na construção de si ambicionada pelas mulheres? O que elas compreendem ser a realização e a felicidade na esfera sexual?

TOURAINE – Eu diria que o que as mulheres e, atrás delas, os homens fazem de uma maneira maciça hoje em dia é a idéia de transformar isso que se chama sexo, pulsão, libido em relação consigo mesmo em modelo de conduta, ao qual se incorporam esses elementos libidinais, como diriam os psicanalistas, ou eróticos etc.

No fundo, uma relação com o corpo em todas as suas dimensões: há uma reabilitação do corpo como um modo de se afirmar para si mesma.

FOLHA – Por que o sr. diz que ‘as lésbicas e os gays não podem ser considerados terceiro e quarto sexos’, respectivamente?

TOURAINE – Creio que o papel das lésbicas na evolução das idéias foi essencial, enquanto os gays tiveram um papel de contestação, de intervenção, ainda maior.

Mas me interesso muito pelas reflexões de feministas americanas que dizem que o que acontece e deve acontecer é um tipo de supressão ou, em todo caso, de indiferenciação relativa dos papéis sexuais.

Em relação aos homossexuais, homens e mulheres, transexuais, pessoas que são bissexuais, multissexuais, penso que essas feministas têm razão em dizer que as mulheres intervêm para superar essa dualidade.

Elas têm razão em dizer que essa dualidade está intimamente ligada à situação tradicional de dominação masculina sobre as mulheres e que, a partir do momento em que se quer suprimir essa dominação, as categorias homem-mulher se tornam frágeis -não somente como gênero mas também como sexo.

É por isso que sou um pouco hesitante sobre a importância a longo prazo do movimento homossexual, pois creio que é mais a indiferenciação e a mistura de categorias do que a criação de nova categorias.

Evidentemente, é preciso respeitar os direitos de todos os que aparecem como minorias ou, simplesmente, de uma sexualidade diferente.

FOLHA – Sua pesquisa constatou um interesse muito pequeno das mulheres por política…

TOURAINE – Não é um interesse muito pequeno, é uma rejeição.

Essas mulheres não gostam de serem chamadas de feministas, pois, para elas, ‘feminista’ é uma definição política, e elas se situam em um plano cultural.

E é verdade que é uma grande diferença, as feministas desempenharam um papel essencialmente por mudar a lei, enquanto as mulheres de hoje não se preocupam tanto com a mudança da lei, mas com a mudança cultural.

FOLHA – Como o sr. analisa a possibilidade de a democrata Hillary Clinton se tornar presidente dos EUA?

TOURAINE – Não diria que Hillary Clinton seja uma personagem definida essencialmente por valores femininos. Já observei -e talvez seja um fenômeno francês- que o meio que permanece mais machista ou antifeminino é o meio político.

Desse ponto de vista, o meio político está atrasado e segue o movimento geral, mas considero que ser ou não mulher não tem peso decisivo no valor do candidato.

FOLHA – O feminismo está ultrapassado?

TOURAINE – O que realmente se chamou de movimento das mulheres, de liberação das mulheres, de feminismo foi essencialmente um movimento político. Esse movimento nasceu em vários países, mas onde teve mais peso foi no Reino Unido.

E em vários países a aquisição do direito ao voto pela mulher foi o objetivo prioritário.

Em seguida houve todas as questões capitais sobre a liberdade de dispor do corpo e, portanto, sobre contracepção e aborto.

Foi quando o movimento feminista passou de tema político a tema propriamente cultural. Houve, assim, um deslocamento extremamente nítido da ordem política, jurídica, rumo a uma ordem cultural e da conduta de si.

FOLHA – Sua pesquisa foi realizada na França. Os resultados seriam similares num país como o Brasil?

TOURAINE – Numerosos estudos feitos sobre as mulheres na América Latina, sobretudo no Brasil e, em certa medida, no Chile apontam tratar-se de um problema muito diferente, mas que ao mesmo tempo remete ao mesmo problema.

O grande fenômeno que se observa nos meios populares é primeiramente o papel dominante das mulheres, pois as famílias são freqüentemente monoparentais.

As mulheres têm os filhos, os homens desaparecem, e então observamos freqüentemente que são as mulheres que tomam as iniciativas quanto a escola, hospital etc.

Contrariamente ao que se diz em relação ao sul da América Latina -pois a realidade mexicana é bem diferente-, a idéia da mulher dominada é uma idéia em grande medida falsa.

FOLHA – Um importante capítulo de seu livro é dedicado às muçulmanas que vivem na França. Como elas se inserem nesse novo mundo das mulheres?

TOURAINE – A tese que se disseminou pelo mundo é a do choque de civilizações de [Samuel] Huntington.

Eu me perguntei, então: essas mulheres que estão entre o meio familiar e comunitário muçulmano e o meio francês vivem o conflito entre essas duas culturas?

Ora, não é de modo nenhum o que observei. Elas se preocupam essencialmente com a forma de combinar as duas culturas, adotando certos aspectos e rejeitando outros.

Quase todas essas mulheres aderem ao islã, mas recusam o controle exercido pela família ou pela comunidade sobre elas.

Portanto, são cidadãs francesas, falam francês, vão à escola e se definem absolutamente como francesas.

Mas, ao mesmo tempo, têm consciência de que há uma forte discriminação contra os muçulmanos e muçulmanas na França e são extremamente hostis às tendências racistas na sociedade francesa.

O resultado que obtive é que essas mulheres afirmam ser preciso reforçar a individualidade. Cito a frase de uma mulher que está deixando a casa dos pais: ‘Percebo que, pela primeira vez na minha vida, acabo de dizer ‘eu’.

Aquilo em que acredito é que esse encontro de culturas, que pode resultar num choque, pode também resultar no desenvolvimento do indivíduo e da capacidade de combinar uma pluralidade de experiências culturais.

FOLHA – É possível mencionar alguém, nos campos da arte, cultura ou política, que fosse o protótipo da nova mulher ?

TOURAINE – Não gosto dessa imagem. Mas diria que foi no mundo escandinavo que se formou o maior número de mulheres que alcançaram grande responsabilidade no desenvolvimento de idéias que possam resultar na transformação profunda da sociedade.

Historicamente, houve no mundo escandinavo uma criatividade em tudo o que diz respeito à reflexão sobre a mulher e que é, indiscutivelmente, maior que em outros países.

FOLHA – Para resumir, o rosto do mundo global é um rosto feminino?

TOURAINE – Não diria que é um rosto feminino, diria que é um rosto esculpido pelas mulheres, e que, numa certa medida, está além das oposições de sexo. O que não quero fazer é uma psicologia das mulheres contra uma psicologia dos homens.

Penso que as mulheres, por terem sido dominadas, foram elementos de ação, de vingança, de restabelecimento e reivindicação de direitos. São justamente as mulheres que criam esse mundo cultural novo.

Mas não é um mundo das mulheres, mas um mundo criado a partir da vontade das mulheres de se libertar e feito, como disse, tanto pelos homens quanto pelas mulheres.’

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