Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Luciano Trigo

‘Susan Sontag seguramente será lembrada como ‘a consciência crítica da América’, como intelectual independente e engajada, como crítica severa dos reacionarismos de direita e esquerda.

Tudo isso é verdade. A ensaísta e romancista americana tinha uma característica cada vez mais rara entre os intelectuais sérios: o gosto pela polêmica, que a levou a meter o bedelho em debates que mobilizaram a opinião pública nas últimas quatro décadas.

Ela deu opiniões controversas sobre assuntos tão diferentes quanto a estética fascista, a Aids e a literatura pornográfica. Esteve na Guerra do Vietnã, como correspondente, e décadas mais tarde nos Bálcãs, promovendo uma encenação de ‘Esperando Godot’ na Sarajevo em ruínas. Atacou a forma como a mídia de seu país tratou os atentados de 11 de Setembro e, filha de judeus, criticou a ocupação israelense dos territórios palestinos.

Sontag foi também uma espécie de embaixadora informal da cultura européia na atmosfera intelectual rarefeita dos Estados Unidos, transitando entre o jornalismo e o ensaio, com sucesso variado. Como tal, ela teve um papel de destaque sobretudo nos anos 60 e 70, quando, tirando partido da alienação e desinformação gerais do americano médio sobre o Velho Mundo, escreveu ensaios que apresentavam Walter Benjamin, Elias Canetti, E.M. Cioran, Roland Barthes e Jean-Luc Godard, então ‘novidades’ na América.

Integrando o público americano ao debate sobre a modernidade literária, estética e cinematográfica, ela acabou provocando reações no próprio mercado europeu das idéias. Sempre atenta a tesouros ignorados em seu país, ela também escreveu um ensaio sobre Machado de Assis, que repercutiu mais aqui do que lá.

Livros como ‘A Vontade Radical’ e ‘Contra a Interpretação’ reuniram textos que teorizavam sobre a cultura cotidiana (como ‘Notas sobre o Camp’) e abordavam temas como as minorias e a sexualidade num estilo original e ousado. Mas, em sua maioria, são peças datadas, muito presas a uma atitude contestatória e a uma percepção de mundo que a história tratou de esmagar.

Menos efêmeros foram seus ensaios sobre o câncer, do qual ela própria foi vítima (‘A Doença como Metáfora’) e sobre fotografia (‘Ensaio sobre a Fotografia’), tema ao qual voltou num texto recente sobre a percepção do horror e a fotografia de guerra (‘Olhando a Dor Alheia’) -no qual analisa o consumo da violência e das atrocidades de um conflito armado como mero espetáculo, que não provoca a cumplicidade do espectador.

Talvez seja esta a característica mais importante da obra de Sontag: exigir que o leitor tome partido, lutando assim contra o processo, orquestrado ou não, de emburrecimento e infantilização do ser humano. Cobrou de Gabriel García Márquez que se manifestasse sobre as execuções em Cuba e classificou de besteira o discurso de Bush de ‘bem contra o mal’. Numa de suas últimas aparições públicas, em Frankfurt, no ano passado, quando recebeu o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, ela aproveitou a ocasião para atacar, previsivelmente, a política do presidente Bush.

Bonita, ambiguamente homossexual e duplamente vaidosa, como intelectual e como mulher, de certa forma Susan Sontag acabou se transformando numa autora prêt-à-porter para aquela fatia do público sempre ávida por uma voz inteligente que critique o establishment. Quando esteve no Rio e fez uma palestra na Biblioteca Nacional, em 2002, foi consumida pela platéia como mais um produto da cultura do espetáculo e da celebridade: a encarnação da ‘mulher inteligente’, que não hesitou em bater boca com um convidado ao se sentir contestada, nem em conquistar aplausos fáceis ao criticar a reserva de lugares no auditório, enquanto do lado de fora centenas de pessoas se espremiam na fila para cultuá-la.

Hoje quem vem ocupando esse espaço de porta-voz do inconformismo é o gorducho cineasta Michael Moore. Eu preferia Susan Sontag, mais sutil e elegante. Cada época tem a contracultura que merece. Luciano Trigo é jornalista e escritor’



Nelson Ascher

‘Autora vivia entre ativismo e literatura’, copyright Folha de S. Paulo, 29/12/04

‘Susan Sontag, cujo melhor livro de ensaios se chama ‘Sob o Signo de Saturno’, morreu, aos 71 anos, sob o signo da infâmia. Se tal infâmia não faz justiça a seu trabalho sério, tampouco se pode dizer que tenha sido imerecida. Afinal, menos de uma semana após os ataques de 11 de setembro de 2001, quando o que restara de 3.000 de seus concidadãos nem tinha começado a esfriar, ela achou de bom tom, num artigo algo vago, ambíguo e, sobretudo, oblíquo publicado pela ‘New Yorker’, condenar não tanto os fanáticos religiosos que perpetraram o massacre, quanto a política externa de seu país. E, sem se importar muito com os sentimentos dos parentes e amigos das vítimas, preferiu ademais defender a reputação dos assassinos da acusação, que lhe parecia injusta, de ‘covardes’.

Houve quem, naqueles dias, assumisse posições piores, mas dessas mentes meio robóticas, meio pavlovianas, ninguém esperava nada diferente. Talvez seja pelos méritos que a escritora acumulou ao longo da carreira que sua reação chocou um público maior e várias vozes da blogosfera instituíram logo um ‘prêmio Susan Sontag’ que vem, desde então, sendo simbolicamente ‘conferido’ aos norte-americanos mais dispostos a atribuir a seu governo e/ou compatriotas todos os males que afligem o planeta.

Tal ‘faux pas’ político, porém (nem sequer seu primeiro), não lhe desmerece a trajetória, uma trajetória rica, variada e igualmente cheia de altos e baixos. Se, durante a Guerra do Vietnã, ela visitou Hanói para manifestar sua solidariedade à ditadura local, ela se esqueceu de usar sua influência para interceder depois, junto ao governo norte-vietnamita, em prol dos milhões de prisioneiros políticos e refugiados que a vitória deste criou. Por outro lado, seu ativismo nos anos da Guerra da Bósnia pesou na decisão americana de, contrapondo-se à indiferença e irresponsabilidade européias, intervir para interromper a carnificina. (Vale a pena observar que seu filho, o ensaísta David Rieff, desempenhou um papel igualmente honrado nessa causa.)

A lógica da fama tornou inevitável que Sontag se destacasse antes como ativista do que como autora. Infelizmente, seu ativismo é o que ela possuía de menos pessoal. Suas posições políticas, que derivavam não de um pensamento profundo, mas do espírito de rebanho que caracteriza o grosso da intelectualidade contemporânea, congelaram-se na década de 60 e foram sempre tão convencionais quanto possível. O que ela tinha a dizer era apenas uma versão mimeografada e morna do catecismo da ‘Nova Esquerda’ (New Left) que, por sua vez, não passava de uma repetição degradada da vulgata esquerdista dos anos 20/ 30.

Embora, proporcionalmente, o impacto de seus escritos especializados tenha sido menor, estes são sem dúvida mais duráveis. Sontag, ao que tudo indica, ambicionava se consagrar como ficcionista. No entanto, é como leitora que seu nome vai perdurar. Como leitora ativa, bem entendido, ou seja, como crítica literária. Esta, como se sabe, quase nunca é uma carreira glamourosa e, para uma mulher cuja beleza rivalizava com sua inteligência, não deve ter sido fácil admitir que seu verdadeiro talento a dirigia para um afazer longe do centro do palco. Sua paixão pela criação literária, sua autêntica admiração por autores e obras bastaram, todavia, para que ela jamais abandonasse a atividade em questão.

Não que seus textos se aproximassem do nível daqueles escritos por um Erich Auerbach, Paul Valéry, Roman Jakobson ou Harold Bloom. Ainda assim, eles exibiam duas virtudes raras: a clareza e a curiosidade. A americana, mais do que ‘scholar’, era uma divulgadora de nível superior que, elegantemente, ajudava o público leigo a se familiarizar com escritores difíceis ou obscuros, bem como com idéias complexas.

Seus ensaios sobre Walter Benjamin, Elias Canetti, Artaud, Roland Barthes e outros são exemplos acabados do alto jornalismo literário. Ela colaborou com o desenvolvimento de uma abordagem refinada mas não preconceituosa da cultural popular ou de massas e os volumes que publicou sobre a fotografia e sobre as doenças (um desencadeado pelo câncer de que sofreu 30 anos atrás, o segundo pela epidemia da AIDS), se bem que contenham muito de discutível, são informados e prazerosamente legíveis.

Quanto a sua outra virtude, a curiosidade, esta a manteve atenta seja ao que surgia de interessante, seja ao que havia sido injustamente ignorado. Ela promoveu gente de primeira, como o iugoslavo Danilo Kis e o húngaro Peter Nadas, e redigiu belas introduções às edições em inglês de Juan Rulfo e Machado de Assis. Ao contrário do que acontece tão amiúde, seu relativo insucesso literário não a amargurou a ponto de desinteressá-la das qualidades alheias. Sontag foi, enfim, uma intelectual cuja estima crescerá à medida que sua fama diminua e sua obra, despida das polêmicas circunstanciais, atinja o público adequado.’



Flavio Moura

‘‘EUA não sabem o que é a guerra’’, copyright Folha de S. Paulo, 29/12/04

‘Leia a seguir trechos inéditos de entrevista com Susan Sontag publicada na Folha em 24/8/2003.

MACHADO DE ASSIS – Acho ele um dos maiores escritores do século 19 e o melhor da América Latina. E Roberto Schwarz é um dos maiores críticos culturais do mundo. Leio tudo que posso sobre ele. Não apenas o trabalho sobre Machado, mas todos os ensaios que ele escreve. Acho que está entre os mais distintos, inteligentes, interessantes intelectuais escrevendo hoje. Mas não é muito conhecido. Não sei o que acontece com o Brasil. O português sempre foi marginalizado, embora seja a sexta língua mais falada do mundo. ‘O Cortiço’, de Aluísio Azevedo, é um livro impressionante, mas acho que sou a única pessoa de fora do Brasil que o leu.

SEBASTIÃO SALGADO – Salgado é um grande fotógrafo. Mas eu tenho um problema com a maneira como ele nomeia seus objetos. Há uma política muito fraca por trás de seu trabalho. O projeto sobre as migrações, por exemplo. Não é a mesma coisa fugir de um país por motivos econômicos ou por causa da guerra. Meu problema não é com o fato de as fotos serem belas, mas, sim, com a narrativa, com as histórias que ele está tentando contar. Elas são muito superficiais.

CONFLITO NO IRAQUE – Na Europa, parece que muita gente não considera a guerra uma solução. Mas isso não é verdade nos Estados Unidos. Talvez porque não saibam o que é a guerra, acham que ela pode ser uma saída. Na Inglaterra, por exemplo, Tony Blair e seu governo estão com sérios problemas, pois ele mentiu sobre a questão das armas de destruição em massa. Nos Estados Unidos, Bush não está em apuros, mas fez exatamente a mesma coisa. Isso porque as pessoas aqui não se importam se ele mentiu ou não. Acham que a razão não são as armas, mas vingança pelo 11 de Setembro. E se alguém lhes disser que não foi o Iraque que fez isso, responderão: ‘Mas temos de mostrar nossa força’.’



Gerald Thomas

‘Desta vez, a realidade ultrapassou a metáfora’, copyright Folha de S. Paulo, 29/12/04

‘Não posso dizer que Susan Sontag era minha amiga, propriamente. Mas éramos ‘conhecidos’. E esse conhecimento se deu através de Samuel Beckett, seu fascínio pela obra dele e pelo fato de eu conhecer o mestre. Falo da década de 80, quando todos os ícones estavam vivos e eu estava em cartaz com a ‘Beckett Trilogy’ no La MaMa, estrelada por Julian Beck, um grande amigo (esse, sim, enorme amigo) de Susan.

Susan vinha visitar a produção várias vezes, e íamos tomar café numa espelunca anexa ao teatro, na rua 4, no East Village. Ela me perguntava (a palavra mais certa seria ‘torturava’ com perguntas) sobre Beckett: ‘Como ele é?’, ‘como anda?’, ‘como senta?’, ‘você conhece o apartamento dele?’. Coincidentemente, o nome da mulher de Beckett era Suzanne. Ela me atentou para esse fato.

Dias depois, recebo um telefonema, e ela me convida para conhecer sua ENORME coleção de botas de caubói, quando ainda morava na rua 17 e estava casada com a coreógrafa Lucinda Childs (que mais tarde, em 95, se tornou parceira minha numa produção fracassada, que tinha Luciano Berio como líder, em Florença).

Fiquei boquiaberto e não conseguia muito entender aquela intelectual, de quem eu tinha lido tudo e havia assistido aos debates (ela mediava Umberto Eco na New York University, mas não o deixava falar) e divagava apaixonadamente sobre Roland Barthes, com aquele ‘closet’ repleto com prateleiras e mais prateleiras cheias de botas de caubói. ‘São o meu fetiche e não me pergunte mais!’, dizia ela, morrendo de rir. ‘Quem venceu a batalha contra o câncer [ela escreveu um livro sobre isso, ‘A Doença como Metáfora’) e tem um filho para sustentar, pode-se dar a esse luxo.’

Um dia me chamou às pressas para Boston, ou melhor, Cambridge, Massachusetts, onde fica o American Repertory Theatre. O diretor artístico de lá, Robert Brustein (um teórico importante do teatro americano), a havia convidado a montar uma peça de Diderot. E lá fomos nós. Daniela Thomas, eu e Alisa Solomon (minha amiga e crítica do ‘Village Voice’) e, decepcionados com a produção, não sabíamos o que dizer no final do espetáculo.

Mas a ‘flamboyance’ de Susan não deixava espaço para que alguém inserisse qualquer tipo de crítica. O público dormia, e a crítica tinha caído de pau. Susan precisava de carinho e elogios. Alisa, vidrada em Sontag, procurou desviar o assunto e falar da sua obra como semióloga, e isso a irritou bastante. ‘Os críticos não iam tolerar a minha incursão no teatro. Seria demais para eles. Eles tinham que me destruir!!!!!’

De volta a Nova York e separada de Lucinda, recebo um telefonema dela. ‘Venha ver o meu novo apartamento na King Street, no SoHo. Agora estou morando do lado da Grove Press, ou seja, um pouco mais perto de Beckett.’

Achei engraçado a facilidade com que Susan tratou sua separação e a mudança. Era época de plena ‘guerra’ entra ela e Camille Paglia na imprensa americana. Ela, dessa vez, me perguntou sobre Machado de Assis. Envergonhado, disse que não sabia muito sobre Machado e que era melhor continuarmos a falar sobre Beckett. Foi lá que ela teve a primeira idéia de encenar ‘Esperando Godot’. Só não sabia ainda onde.

Anos se passaram e ela aparecia esporadicamente. Viu o ‘Flash and Crash Days’ no Lincoln Center e me mandou um cartão: ‘Não achei a produção à altura da trilogia Kafka, me ligue’. A essa altura, já estava casada com a fotógrafa Annie Leibovitz e morava no complexo ‘posh’ aqui nessa mesma rua 23, onde moro, só que no lado do Chelsea. Annie, por sua vez, já havia sido namorada de Bia Feitler, a brasileira que revolucionou a diagramação da ‘Harper’s Bazaar’ e ‘Rolling Stone’ e nos deliciamos em conversa fútil.

Sempre foi ativa em vários aspectos da vida intelectual, mas perdemos contato nestes últimos anos. Eu a seguia pela imprensa e vi que foi uma das vozes mais lúcidas e ativas quando os aviões abateram o WTC e continuou sendo uma das vozes dissidentes e lúcidas na América até o fim. Gerald Thomas é diretor teatral’