Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Estado de S. Paulo


CRISE POLÍTICA
Paulo Renato Souza


Governo ditatorial


‘Um governo ditatorial caracteriza-se, entre outras coisas, pelo uso do poder
público para proteger seus membros e apoiadores e intimidar, denegrir, detratar
e perseguir seus opositores. Desde o início da presente crise, quando das
primeiras denúncias de um esquema de corrupção sem precedentes em nossa
História, o comportamento do governo do presidente Lula mostra sinais
inequívocos de autoritarismo e desapreço pela democracia. Os valores
republicanos, que enchiam a boca de muitos petistas, há muito foram relegados ao
esquecimento. O episódio mais recente da investigação pelo Conselho de Controle
de Atividades Financeiras (Coaf) e pela Polícia Federal nas contas e nos
telefones do caseiro Francenildo Santos Costa constitui-se numa cabal
demonstração dessa atitude ditatorial do atual governo federal.


Apesar de todas as tentativas dos partidos do governo e seus aliados de negar
a corrupção sistêmica praticada pelo atual governo, há elementos que são
inegáveis, porque comprovados ou confessados. Um desses aspectos não negados,
nem mesmo pelos que foram absolvidos na pizzaria congressual, é o esquema do
chamado ‘valerioduto’, para transferir dinheiro para alguns parlamentares. O
dinheiro era sacado em espécie, em visitas ao Banco Rural, por esposas,
assessores e afins de alguns parlamentares. Em outras ocasiões, malas e cuecas
cheias de dinheiro foram flagradas em várias inspeções rotineiras em nossos
aeroportos. No total, esses esquemas movimentaram centenas de milhões de dólares
que foram, de uma maneira ou outra, sacados na boca do caixa de instituições
financeiras.


O Coaf é um órgão, subordinado ao Ministério da Fazenda, ao qual cabem a
supervisão e investigação sobre movimentações financeiras suspeitas de
constituírem lavagem de dinheiro, evasão de divisas ou sonegação fiscal. Uma de
suas principais fontes de informação é precisamente a supervisão das
movimentações financeiras em espécie. Todos os bancos e instituições financeiras
são obrigados a informar ao Banco Central, e este ao Coaf, quaisquer retiradas
ou depósitos em dinheiro vivo acima de R$ 10 mil. Ou seja, seria impossível
movimentar as centenas de milhões de reais em dinheiro do valerioduto e outros
esquemas similares sem que houvesse o conhecimento e a conivência das
autoridades responsáveis por esses órgãos.


Desde o início da atual crise alimento a convicção de que, sendo o Coaf um
órgão do Ministério da Fazenda, deveria o ministro Antonio Palocci ser não
apenas convocado a depor nas CPIs, mas também indiciado por gestão pelo menos
negligente, ao não ter coibido ou ao menos investigado tamanho fluxo de dinheiro
vivo em nossas instituições financeiras. Eis que agora o poderoso Coaf se volta
para investigar os R$ 25 mil transferidos para a conta do caseiro
Francenildo.


A investigação ao caseiro Francenildo também mobiliza nossa Polícia Federal,
que segue seus passos, investigando seus telefonemas e encontros. É bom lembrar
que foi essa mesma Polícia Federal que prendeu de maneira espalhafatosa
empresários acusados de sonegação fiscal em São Paulo e invadiu escritórios de
advocacia, supostamente para evitar a destruição de provas, mas deixou livre até
hoje o sr. Marcos Valério para queimar à nossa vista, por meio do noticiário na
TV, muitas provas de seu esquema de corrupção. Demais recordar também que os
dirigentes do Banco Rural, que desde a CPI do Banestado freqüenta as páginas de
denúncias por fraudes financeiras, não foram importunados, apesar de todas as
evidências, confissões e provas recentes.


As ações contra o caseiro Francenildo têm um objetivo confessado por algumas
autoridades do governo atual, tentando desqualificá-lo como culpado de algum
crime. Outros governistas são mais audaciosos: tentam mostrar que ele foi
‘treinado por alguém’, nas palavras do ministro Luiz Marinho, para fazer o
depoimento que fez e incriminar o ministro Palocci. Ora, esses detalhes não têm
a menor importância no caso. Mesmo que o caseiro tenha sido treinado pela
oposição, mesmo até que – no pior cenário possível – tenha sido beneficiado
financeiramente por sua denúncia, isso não tira o mérito de suas declarações
como testemunha. Acaso não é a própria Justiça que se serve de testemunhos de
criminosos como parte das provas contra terceiros? São eles menos válidos do que
outros testemunhos? O caseiro poderia ou não ter cometido irregularidades em sua
vida pessoal, mas isso não cala seu testemunho de que viu o ministro na casa e,
portanto, que ele cometeu o crime de perjúrio ao mentir sobre o fato no seu
depoimento à CPI, o que caracteriza crime de responsabilidade, mormente para uma
autoridade de seu quilate.


Há, porém, outro objetivo, este inconfessado, na ação do governo e da
polícia: intimidar outras pessoas que podem também haver testemunhado as mesmas
incursões do ministro à tal casa. Pode ser que familiares do próprio caseiro,
caseiros de casas vizinhas ou moradores da mesma rua tenham também algo a dizer.
Eles seguramente pensarão dez vezes antes de fazê-lo.


O Supremo Tribunal Federal impediu o depoimento do caseiro na CPI. Enquanto
isso, ele já foi chamado diversas vezes para depor na Polícia Federal a portas
fechadas. Seu testemunho interessa a toda a sociedade e, por isso, ele deve
voltar à CPI. A CPI dos Bingos tem, sim, de saber dos movimentos dos assessores
do sr. Palocci que freqüentavam a tal casa. Afinal, alguns deles vêm sendo
mencionados em acusações desde o episódio Waldomiro Diniz, passando pelo ‘lobby’
em favor da Gtech.


Em nome da democracia em nosso país, a sociedade brasileira exige que o
caseiro fale a portas abertas, seja através de uma revisão da decisão do
Supremo, seja por uma reconvocação do Congresso.


Paulo Renato Souza, economista, foi ministro da Educação no governo Fernando
Henrique Cardoso, gerente de Operações do BID, reitor da Unicamp e secretário de
Educação de São Paulo no governo Montoro E-mail: paulo.renato@isd.org.br


ENTREVISTA / VARGAS LLOSA
Fernando Rimblas


Pela liberdade no raro ofício de escrever. E viver


‘Tradução de Celso Paciornik


O escritor peruano Mário Vargas Llosa completa 70 anos na terça-feira em um
momento doce de sua vida e escrita. Romance, ensaio, cinema e teatro respaldam a
vitalidade inesgotável de um criador maduro. Sobre sua mesa de trabalho, uma
manada de hipopótamos guarda seu humor e seu trabalho. Talvez essa coleção,
dividida entre suas casas espalhadas pelo mundo, seja a guardiã dos segredos
criativos de um escritor fundamental do século 20, autor de obras como Conversa
na Catedral e Os Cadernos de Don Rigoberto, clássicos da literatura
latino-americana.


O senhor chega aos 70 anos em uma verdadeira explosão criativa.


E espero poder manter esse estado até morrer, quero estar muito vivo até o
final.


A pulsão criativa aumenta à medida em que o tempo passa?


Nunca me preocupei muito com o tempo. A idéia de envelhecer, de morrer, não é
algo que me tenha obcecado nem angustiado, salvo em períodos em que – por razões
diversas – tive que interromper meu trabalho, ou não pude manter meu ritmo
normal. Enquanto estou comprometido com projetos que me apaixonam, não me
preocupo com o tempo nem com a decadência. Creio que a pessoa deve se manter
viva como se fosse imortal, que a vida é belíssima e que só existe uma, então é
preciso aproveitá-la ao máximo. E não concebo melhor maneira do que tratando de
realizar as próprias ilusões. Então, sim, chego aos 70 anos, uma idade muito
respeitável, mas não me sinto velho em absoluto. Ao menos psicologicamente.


Um dos ganchos promocionais utilizados para vender um de seus últimos livros
dizia: ‘Por fim, o Vargas Llosa de esquerda.’ O senhor é tão de direita assim?


Não gosto de qualificações como essas. São conjuros, um modo de
desclassificar o outro e de sentir-se seguro em seu próprio rincão. Em muitas
coisas,. me identifico com idéias que se trata convencionalmente como ‘de
esquerda’: acredito na sociedade laica, nas reformas sociais, sou a favor dos
casamentos gays, do aborto, da descriminação das drogas. Mas amo profundamente a
liberdade. É uma das maiores conquistas da humanidade e deve ser defendida. E
isso me leva muitas vezes a desencontros radicais com a esquerda, porque alguns
de seus setores não têm essa concepção da liberdade e estão dispostos a
sacrificá-la pelo poder. De modo que ataco os ditadores, sem exceção, inclusive
os de esquerda, como Fidel Castro ou Hugo Chávez, da mesma forma como ataquei
Pinochet do primeiro ao último dia. Agora, serei de direita por criticar a
esquerda e não engolir o que esta engole muitas vezes, como o nacionalismo ou
até mesmo o racismo? Quanto ao resto, acredito que muitíssimas coisas me afastam
da direita. Não me vejo como um conservador, não acredito que o modelo ideal de
uma sociedade esteja no passado. Sou um liberal, acredito que, ao contrário, é
preciso continuar construindo, aperfeiçoando o modelo ideal de sociedade.


O trabalho do intelectual ainda tem uma função pública?


Penso que sim, embora menos do que acreditávamos quando jovens. Nos anos 50,
e mesmo nos 60, a idéia generalizada era que um intelectual podia influir na
vida política e social. Suas opiniões eram importantes e, por isso, era preciso
se comprometer. Hoje creio que havia muita ingenuidade nessa idéia. Mas tampouco
estou de acordo com os que acreditam que a literatura, ou a cultura em geral,
não tem maior efeito sobre a história, que é uma atividade fundamentalmente de
entretenimento – muito elaborado, superior, mas de entretenimento -, e que não
deixa marca na vida política ou social. Isso me parece inexato, e nesse sentido,
sim, artistas e intelectuais tem uma responsabilidade, sem dúvida alguma.


O senhor tem casas em Paris, Madri, Lima, Londres. O que obtém de cada uma
das cidades onde vive?


Desde muito pequeno, quando ainda não o sabia exatamente, quis ser cidadão do
mundo, ou talvez, da Europa, porque meu sonho era a Europa, era Paris. Bem, a
vida me premiou nesse sentido, vivo com muita liberdade, mudando de lugares, e
não me sinto estrangeiro em nenhum lugar, nem mesmo em Londres, onde o normal é
sentir-se estrangeiro.


O que lembra de sua infância no Peru?


Passei minha infância em Cochabamba, na Bolívia, me tiraram de Arequipa com
apenas um ano, de modo que todas minhas recordações de infância são bolivianas.
Mas em minha família – que era um pouco bíblica: em casa vivíamos meus avós,
meus tios, minha mãe, eu, minhas primas – cultivava-se muito a lembrança do
Peru, de Arequipa, sobretudo, dessa cidade do sul onde nasci, de onde era a
família. E aí eu me sentia, claro, muito peruano, muito arequipano. Claro, não
tinha recordações próprias mas sim herdadas de meus avós, de minha mãe, de meus
tios. Ou seja, o Peru foi para mim, primeiro, uma fantasia. Só o conheci aos 10
anos, quando fui viver em Piura, onde passei dois anos. Este foi meu primeiro
contato com o Peru e essas recordações me marcaram e foram fonte de várias
histórias. Depois, aos 11 anos, fui a Lima, uma cidade com a qual tive, desde o
começo, uma relação muito difícil, porque ir viver em Lima significou a
separação de minha família materna, da qual gostava muito, de um ambiente em que
era muito mimado. Fui viver com meu pai, com quem não havia vivido até então,
uma pessoa muito severa, muito rígida, muito autoritária, de quem tinha muito
medo. De modo que minhas primeiras recordações de Lima são antes desastrosas e
talvez por isso tive uma relação conflitiva com a cidade. Creio que isso se vê
bastante nos romances. Mas no Peru estão as referências, ali me formei, é dele
ainda o espanhol que falo e escrevo, apesar de que vivi muito mais tempo fora
dali.


Conserva algum objeto desde não se lembra quando, algo que o tenha
acompanhado durante muito tempo?


Uma parente minha, uma menina que esteve vivendo conosco em Paris, morreu num
acidente de aviação, em Pointe à Pitre, Guadalupe, e tive que ir identificar o
cadáver. Foi uma experiência espantosa. Desde então, guardei na minha carteira
um pedaço do vestido que essa sobrinha usava. Há muito pouco tempo, quando me
roubaram a carteira em Amsterdã, levava essa recordação carinhosa de uma pessoa
de quem gostei muito, e que havia guardado durante praticamente 30 anos.


O que causou mais vítimas inocentes na história: bandeiras ou religiões?


A primeira razão de violência no mundo tem sido a religião e a segunda, o
nacionalismo. Todas as grandes guerras de religião têm também um conteúdo
nacionalista muito forte. Foram as duas fontes principais de apocalipse na
história.


Continuam sendo?


Sim. Ultimamente temos uma confirmação trágica e ao mesmo tempo grotesca de
como a religião pode incendiar um clima, criar uma incomunicação. O nacionalismo
o vimos, por exemplo, nos Bálcãs, no coração da Europa: de repente aquela
explosão irracional de desumanidade, de selvageria. Quando se escava essas
catástrofes, sempre se chega a uma raiz que tem a ver com a religião e com o
nacionalismo.


Quem é o culpado?


Os que assumem a religião de uma maneira fundamentalista, excludente,
fanática, e os que fazem do nacionalismo uma religião. O nacionalismo converte
em religião algo que, em sua origem, é perfeitamente legítimo: a identificação
com o lugar onde se nasce, com a língua, com o entorno, um sentimento positivo
que se transforma numa forma de fé excludente e fanática e produz uma violência
terrível. É muito triste comprovar que a cultura – que o Século das Luzes pensou
que seria o grande antídoto contra o fanatismo, a intolerância e contra essa
forma de irracionalidade que é querer impor uma verdade única – não é contenção
suficiente ante a barbárie. Ao contrário, já vimos como países tão civilizados
como a Alemanha dos anos 30, o país mais civilizado do mundo, se entregou à
loucura coletiva do nazismo. No mundo islâmico ocorre algo parecido. Às vezes
não são setores ignorantes mas figuras do mais alto nível intelectual que
assumem diretamente essa forma irracional de fé, de negação, de exclusão do
outro, que conduz irremediavelmente à violência.


Há um componente violento inerente à natureza humana?


Sim, há um instinto de morte, de destruição, no ser humano, sempre presente
na história, que em alguns períodos se atenua ou se sublima, às vezes na arte,
às vezes no amor, mas que subjaz sempre na vida e em determinadas circunstâncias
aflora e causa as catástrofes mais espantosas. Um dos mecanismos que o ser
humano encontrou para atenuar esse instinto destruidor foi a democracia, a
possibilidade de uma coexistência de credos, costumes e línguas mediante
concessões mútuas. A democracia fez avançar extraordinariamente a humanidade,
mas não conseguiu erradicar esse instinto de destruição enraizado em nós. Para
os crentes, este é o pecado original; para os demais tem a ver com os instintos,
que às vezes prevalecem sobre a racionalidade, a anulam, embotam o ser humano e
ao final impõem o império do ódio. A tolerância é a única garantia da
sobrevivência.


Terá mudado tanto a perspectiva histórica que o que nos anos 60 era um
projeto possível hoje é tão somente uma via morta que acabará necessariamente em
pesadelo?


Nos anos 60, a ilusão da sociedade perfeita havia lançado raízes em toda uma
geração em meio mundo. O 68 é uma expressão desse sentimento, que já havia
aparecido com o triunfo da revolução cubana, de que se podia construir a
sociedade perfeita com uma ação de vanguardas heróicas, sacrificadas. A ilusão
produziu figuras muito atraentes, românticas, mas o balanço final deixou na
América Latina uma multidão de ditaduras militares absolutamente desumanas,
implacáveis, que encontraram nas guerrilhas, nos movimentos de libertação, o
pretexto ideal para interromper os progressos democráticos iniciados em alguns
países ou simplesmente para acabar com tradições democráticas arraigadas, como
no Chile e no Uruguai. Foi preciso começar do zero, reconstruindo essas
democracias que os grandes idealistas satanizaram e apresentaram como a máscara
da exploração. Ao final, a humanidade descobriu que a democracia era preferível,
que era preferível renunciar à sociedade perfeita e aceitar o princípio das
sociedades aperfeiçoáveis pela democracia, pelos consensos, pelas instituições,
porque assim morriam muito menos inocentes dos que morreram por esses
maximalismos revolucionários que levam à destruição das liberdades. A destruição
das liberdades não traz progresso social, contrariamente ao que ensinaram Sartre
ou Lukács, todos os grandes gurus dos anos 50. Marcuse também, de quem Josep Pla
dizia: ‘Um desses grandes pensadores que contribuíram como ninguém para a
confusão contemporânea.’ Frase magnífica.


Que complexos a América Latina carrega?


Uma incapacidade manifesta de aproveitar as oportunidades que se lhe
apresentam. E uma tendência a perseverar no erro. Talvez seja injusto
generalizar, porque há menos ditaduras hoje – mas temos a mais longeva do mundo,
a de Fidel Castro; já são 45 anos, mais de três gerações de cubanos. Temos
também um fenômeno, esse pequeno Fidel que é Hugo Chávez, cuja aspiração é
suceder Castro como ditador longevo. Mas com essas exceções, a América Latina
tem democracias, ainda que imperfeitas, e um fenômeno interessante que não
existia há 20 anos: uma esquerda democrática, a de Lula, Tabaré Vázquez, o caso
magnífico do Chile com Lagos e Bachelet. É uma esquerda que aceita o jogo
democrático, liberal em políticas econômicas – à maneira de um Tony Blair ou do
socialismo de Felipe González na Espanha – com grandes benefícios para o país,
como os que se conseguiram na Espanha. É um fenômeno novo na América Latina.


Nos convide para jantar em Lima.


A comida é uma das melhores coisas do Peru. Pablo Neruda dizia que no Peru se
come ou não se come; agora, os que comem, como comem bem! No Peru há uma cozinha
muito rica, muito criativa. A comida é um dos aspectos da vida onde mais se
desenvolveu a criatividade dos peruanos, talvez pela grande tradição histórica
repressiva de nossa história: desde a época pré-hispânica tínhamos impérios
muito desenvolvidos, mas controladores da vida, assim a gastronomia era uma
atividade onde se podia desenvolver com toda liberdade a imaginação, a fantasia.
Hoje acontece algo curioso no Peru: todos os rapazes e moças querem ser chefs.


Com ingredientes extraordinários.


Claro, e assim a comida é muito rica e variada. E, além disso, motivo de
orgulho, de apresentação. Mesmo povoados muito pequenos introduzem variantes nos
pratos típicos. Vejamos, então, um cardápio. Para mim é muito especial o ‘chupe
de camarones’, um prato típico de Arequipa, absolutamente maravilhoso. Se você
sobreviver ao chupe e for valente, pode comer como segundo prato um ‘lomito
saltado con arroz’ ou um ‘seco de cordero’, prato do norte, ou ainda um ‘arroz
con pato’, de Chiclayo. E assim poderia continuar um cardápio interminável,
percorrendo toda a geografia peruana.


Como mudou o Vargas Llosa leitor ao longo dos anos? Que leitura segue lhe
dando prazer?


Ainda não tinha cinco anos quando comecei a ler e me lembro como o mundo se
alargou para mim, como me senti de imediato vivendo em mais lugares,
transformado em muitas pessoas. A vida se multiplicou de maneira extraordinária
e, esse tipo de milagres, ainda os vivo quando um livro me apaixona. Claro que
minhas leituras são em parte condicionadas por meu trabalho, pelo que estou
escrevendo. Depois é que vêm as leituras por prazer, muitas vezes releituras de
autores que me marcaram, como Flaubert, Faulkner, livros que reli, como Madame
Bovary, que me marcou enormemente, mas também contemporâneos. Mas em alguma
coisa eu mudei: quando jovem, acreditava ter a obrigação moral de terminar todo
livro que começava, mesmo que me entediasse infinitamente.


O que os livros lhe deram?


Sem os livros que li, sem as idéias que me convenceram, que se integraram em
minha maneira de ser, teria sido muito pior do que sou e teria tido uma visão
muito mais pobre da realidade, uma sensibilidade muito menos alerta. Isto é, a
literatura e a cultura influem, sim, na vida, mas não creio que esta possa ser
decidida de antemão; não dá para planejar atividades criativas tendo
determinados efeitos como objetivos. Não funciona automaticamente, mas sim de
uma maneira mais sutil, imprevisível. E que deixa certamente uma tremenda marca
na vida.


Que escritores detesta, mas admira?


Louis Ferdinand Céline, extraordinário romancista que reflete um mundo negro,
de sordidez, mediocridade e mesquinharia, com aquela verve popular, saborosa,
vulgar; e, ao mesmo tempo, um personagem repugnante, um racista anti-semita,
autor de um dos livros mais asquerosos que já se escreveu, as Bagattelles pour
un Massacre. Mas há muitos casos de personagens pouco estimáveis e, no entanto,
escritores extraordinários.


Como se depuram as responsabilidades da literatura?


Um escritor tem a obrigação de escrever com autenticidade, despejar o que tem
dentro, aquilo pelo que se tornou escritor. Mas sem disciplina essa
autenticidade não vale. Creio que não se escreveu nenhum grande livro que não
seja a expressão autêntica de uma personalidade. Autêntica não quer dizer boa,
pode ser perversa, mas acredito que as obras que ficam na memória, porque nos
revelam algo muito profundo sobre nós mesmos, são as que foram escritas com uma
espécie de imolação. Talvez o caso mais alentador seja o do escritor que está
sempre procurando, embora às vezes quebre a cabeça na tentativa, e para o qual a
literatura é sempre um jogo perigoso. Esse é o escritor que eu mais admiro.


Por que se dedicou a escrever um ensaio sobre Victor Hugo?


Hugo tinha uma facilidade para escrever quase desumana. Acabava uma obra de
teatro numa semana, um romance em três. Às vezes saíam coisas muito pobres, mas
também cumes tão extraordinários como Os Miseráveis, uma obra-prima absoluta.
Victor Hugo é um caso extraordinário de grande criador, cujo equivalente em
nossa língua seria Pablo Neruda, autor também de uma obra gigantesca, onde há de
tudo: obras-primas, palavrório e, às vezes, coisas péssimas. Victor Hugo, cuja
faceta retórica é de interesse duvidoso para o leitor contemporâneo, continua
deslumbrando com livros como Nossa Senhora de Paris ou Os Miseráveis, parte de
sua poesia ou até com aspectos que se mencionam menos, como sua pintura
visionária, de sombras e castelos, muito criativa e muito atual ainda.


Em que reside a elegância?


A elegância é uma mistura de bom gosto, desenvoltura e prioridades claras.
Quem tiver essas três aptidões, é uma pessoa naturalmente elegante.


Quais certezas guarda no bolso?


Uma não é minha, disse-a Popper e me convenceu absolutamente: com todas as
coisas que andam mal no mundo, nunca a humanidade viveu melhor, nunca teve
melhores instrumentos para poder derrotar os grandes demônios, a fome, a doença,
a ignorância, a exploração. É algo que convém ter presente, sobretudo diante dos
pessimistas: há 50 anos vivíamos pior do que hoje. A segunda certeza é que nunca
sacrificarei minha liberdade por nada, é uma condição sine qua non da
existência. A terceira é que a vida, mesmo que esteja habitualmente repleta de
decepções e frustrações, ainda que jamais chegaremos a materializar nossos
sonhos, é sempre maravilhosa.


O sr. conheceu a Espanha ainda muito jovem. Como ela mudou?


A Espanha é o caso mais extraordinário de transformação de uma sociedade que
já vi. Cheguei à Espanha em 58 e se parecia muito com os países subdesenvolvidos
da América Latina: uma ditadura brutal, um país de contrastes sociais e
econômicos de nível sul-americano, com uma minoria com alto nível de vida, uma
classe média escassa e uma massa enorme de espanhóis pobres, que emigravam. A
Espanha vivia completamente ensimesmada, era um país aquartelado. Os jovens
espanhóis não podem imaginar a Espanha de 40 anos atrás, uma vez que hoje é como
se a democracia fosse a história da Espanha.


Que hipoteca deixaremos às próximas gerações?


Os seres humanos são cidadãos do mundo. Isso oferece oportunidades
extraordinárias, mas também pode ser fonte de grandes catástrofes. Nos últimos
50 anos o mundo mudou mais que em toda a história, de maneira que é possível que
dentro de 20 anos o mundo seja outro. Estamos numa fronteira.


Pesquisas mostram que uma proporção de 65% dos menores de 30 anos não
demonstram o menor interesse pela atividade política. Do que precisamos?
Governantes eficazes, políticos honestos ou intelectuais que levantem a voz?


Este é um dos grandes problemas atuais. A política se petrificou e o grande
desafio para as democracias desenvolvidas é a renovação. Era preciso devolver a
ilusão pela política aos jovens. É muito difícil que uma democracia se regenere
sem a participação dos melhores na vida política; e desgraçadamente, há uma
aversão cada vez maior pela política, que é considerada desprezível. É preciso
devolver a dignidade e a decência à política.’


PASQUIM EM LIVRO
Mario Sergio Conti


O Pasquim, chega de saudade


‘O pior motivo, o motivo errado, para ler e apreciar a antologia com o melhor
de O Pasquim é a nostalgia. A saudade, do ponto de vista de um indivíduo, pode
ser uma bóia em tempos de decadência. O sujeito lembra dos bons tempos, quando
corpo e mente estavam no ápice, e encontra um refúgio diante dos horrores do
presente. Socialmente, a banalidade da nostalgia não funciona. A vida prossegue,
os jovens não podem apreender a experiência passada por meio da saudade dos
velhos. A experiência individual só pode ser socializada através da arte. Senão,
vira papo de velho. Os bons tempos não voltam mais, mesmo. Nada mais chato que
conversa de velho: ‘Meninos, eu vi…’


O primeiro volume de O Pasquim – Antologia (1969-1971), publicada pela
editora Desiderata, é excelente porque não é papo de velho. As 352 páginas do
livro trazem centenas de cartuns, caricaturas, artigos, miniensaios, perfis,
entrevistas, fotomontagens, piadas, histórias em quadrinhos, crônicas, dicas e
fotonovelas que dizem respeito ao presente. O material selecionado por Jaguar e
Sérgio Augusto tem qualidade intrínseca. Não é preciso ter vivido naqueles
tempos, na virada dos anos 60 para os 70, para curtir a graça, a inteligência, a
variedade e a criatividade presentes em cada página. O material não é composto
de ruínas nem o livro é museu. Está vivo, é pertinente, surpreende. Ele diz
respeito ao que o Brasil era então para um grupo de jornalistas e humoristas, às
aspirações que eles tinham em relação ao País, e naquilo que a sociedade
brasileira se tornou.


Sérgio Augusto e Jaguar contam, no início do livro, como o semanário foi
criado e funcionava. Parece milagre que o jornal tenha emplacado. Meia dúzia de
jornalistas cariocas, sem dinheiro, sem business plan, sem um sócio capitalista
e sem saber direito o que fazer, botaram O Pasquim na rua. Rapidamente, ele
encontrou seu caminho editorial e seu público. Dois dias depois de publicado o
primeiro número, a tiragem de 14 mil exemplares esgotou. Em quatro meses, ele
vendia 80 mil exemplares. Passaram-se mais três semanas e as vendas chegavam a
200 mil.


Retrospectivamente, é fácil explicar esse sucesso estrondoso, jamais
equiparado por nenhuma publicação brasileira desde então: o que o jornal
publicava era engraçado e inteligente. Tome-se como miniexemplo quatro aforismos
de Ivan Lessa. ‘No Brasil morre-se muito de médico.’ ‘O brasileiro é um povo com
os pés no chão – e as mãos também.’ ‘A cada 15 anos os brasileiros esquecem o
que aconteceu nos últimos 15 anos.’ ‘Todos os editoriais da imprensa brasileira
têm dois dedos de testa e são escritos numa escola militar do Panamá.’


O difícil é explicar como o jornal pôde ser tão bom. Leve-se em conta o
contexto. O primeiro volume da antologia cobre os anos 1969-1971, um dos
períodos mais torpes da vida nacional. Foi a época de maior repressão da
ditadura militar. Não havia liberdade de organização, expressão, reunião e
eleição. A tortura corria solta em quartéis e delegacias. Os sindicatos e
entidades estudantis estavam sob intervenção ou dominados por pelegos. O
Congresso fora dizimado por cassações e pela proibição da organização
partidária. A esquerda estava toda na clandestinidade e alguns grupos foram para
a aventura terrorista. Os órgãos de imprensa que criticavam os militares foram
colocados sob censura, enquanto os jornais e tevês que os apoiavam se dedicavam
a enaltecer com um patriotismo sabujo e tacanho. A censura se estendia também ao
cinema, ao teatro e à música. O medo e a burrice eram quase absolutos.


Pela força da situação, e também por opção, O Pasquim não fez oposição
política ao regime. A censura o atingiu a partir do número 39, mas mesmo antes a
estratégia do jornal era outra. Ele partiu para a crítica de costumes (com o
enaltecimento de mulheres liberadas, como Leila Diniz e Danuza Leão), para a
gozação dos intelectuais orgânicos do regime (Gustavo Corção, Roberto Campos e
Nelson Rodrigues), para o deboche das instituições que davam sustentação à
ditadura (Rede Globo, Academia Brasileira de Letras, revista Manchete), para dar
voz a artistas exilados (Chico Buarque, Glauber Rocha e Caetano Veloso), para
chamar a atenção para figuras da vida popular ou marginal (entrevistas com
Madame Satã, o assaltante Meneghetti e Natal da Portela), para a discussão de
drogas, rock e liberdade sexual (com a apresentação das idéias de Herbert
Marcuse e Wilhelm Reich).


Num artigo que ficou clássico, A República do Silêncio, Sartre defende que
nunca os franceses foram tão livres quanto na ocupação nazista. A sua idéia diz
respeito ao existencialismo: cada gesto de um francês durante a ocupação
implicava responsabilidade e engajamento, pois a sua conseqüência direta poderia
ser a prisão e a morte. Em condições brasileiras, a experiência d’O Pasquim
reproduz e embaralha o paradoxo sartriano: num país tiranizado, nunca um grupo
de intelectuais foi tão livre.


Primeiro, livre da chatice do Brasil institucional. Não há na Antologia uma
receita de salvação nacional, nenhum programa de redenção nacional, uma idéia
para melhorar a vida dos brasileiros. Depois, livre dos grandes temas, da
linguagem empolada e corrupta da política, da economia e do dinheiro. Não há uma
palavra no livro sobre déficit público, reforma política, câmbio, educação,
desenvolvimento. O Pasquim não embarcou no discurso da seriedade nacional. O que
havia no jornal era a explosiva mistura de liberdade e prazer. Liberdade de
criar, de polemizar, de satirizar, de rir de um país. E prazer em trabalhar, em
curtir a vida, a boemia, o sexo, as drogas.


Liberdade e prazer, como se sabe, conduzem à anarquia. O Pasquim era um
jornal anárquico no funcionamento, dizem Sérgio Augusto e Jaguar. Tudo bem. Mas,
é evidente, o jornal era, antes de qualquer coisa, produto de trabalho. De
trabalho num ambiente de liberdade. Daí a liberdade de experimentação, que rende
os melhores textos e desenhos da Antologia. Não é preciso conhecer Vinicius de
Morais e Ciro Monteiro para reconhecer que o perfil que o poeta escreve do
cantor é uma jóia. Ou que o Departamento de Anúncios Plagiados é um grande
achado. Ou que a entrevista de Ivan Lessa com Billy Eckstine registra com
precisão a relação mágica entre um fã e um artista. Ou que o cartum de Millôr
Fernandes que está na contracapa do livro – mostrando os censores se divertindo
com o material enviado pelo Pasquim – seja uma obra-prima.


Trabalho + liberdade + prazer – política = O Pasquim. Os caretas sempre dirão
que a política é importante, que trabalho e prazer não se misturam, que toda
liberdade é relativa, e que a equação é impossível, pois utópica. Pois durante
os áureos tempos do jornal a utopia se realizou. Chega de saudade. A Antologia é
um livro do presente: contra a modorra dos tempos que correm, ela é subversiva e
libertária.’


ANIMAÇÃO DIGITAL
Renato Cruz


Brasileiro leva diversão digital ao mundo


‘O esquilo Scrat volta a correr atrás da noz na sexta-feira. Carlos Saldanha,
carioca de 37 anos, dirigiu A Era do Gelo 2, animação por computador que busca
repetir o sucesso do primeiro filme, lançado há quatro anos, que acumulou mais
de US$ 380 milhões de bilheteria em todo mundo. Saldanha foi co-diretor de A Era
do Gelo e de Robôs (2005), os dois longas-metragens anteriores da produtora
americana Blue Sky. O filme que chega às telas esta semana é o primeiro que
Saldanha dirige sozinho.


O primeiro A Era do Gelo foi feito em computadores da Silicon Graphics. Em
Robôs, a Blue Sky passou a usar PCs comuns com o sistema operacional Linux.
‘Ficou muito mais ágil. Para Robôs, aumentamos a quantidade de computadores e,
para A Era do Gelo 2, quadruplicamos’, afirmou Saldanha, que, além de dirigir,
dublou um pássaro dodô que passa rapidamente por um campo de gêiseres e, em uma
única cena, emprestou a voz para o esquilo Scrat, que pia num ninho tentando se
fazer passar por filhote de pássaro. ‘São meus momentos de fama.’


As filhas de Saldanha – Manoela, de 8 anos, e Sofia, de 5 – também fazem
pontas no filme. Elas gravaram as vozes, em inglês, de filhotes de porco-espinho
que tentam tirar o avô de um buraco. ‘Pensei em fazê-las participar da versão
brasileira, mas esqueci de ligar para saber quando iam fazer a tradução.’ Com um
orçamento de cerca de US$ 70 milhões, o diretor comandou uma equipe de 300
pessoas, que trabalhou por dois anos. ‘É a metade do tempo que normalmente leva
um projeto desses.’


O desafio técnico foi muito maior no novo filme. Com o subtítulo de ‘the
meltdown’ (o degelo) em inglês, o longa-metragem mostra um mundo gelado a se
transformar em água. E água não é fácil de criar no computador. ‘Começamos a
desenvolver desde cedo uma técnica de efeito especial para criar a água, os
respingos’, explicou Saldanha. ‘No início, estávamos com medo de não conseguir
fazer o filme. Nunca tínhamos usado tanta tecnologia de água antes. No primeiro
filme, havia uma ou duas cenas. Em Robôs, três cenas. Este teve centenas de
cenas.’ Foi criada uma equipe especial de animadores, somente para cuidar da
água.


Da mesma forma, havia uma equipe de pêlos e penas. ‘A Blue Sky foi criada a
partir de um departamento de pesquisa e desenvolvimento’, disse Saldanha. ‘Para
cada filme, desenvolve uma tecnologia nova, que a gente chama de propagação. O
pêlo neste filme ficou sendo um personagem secundário, porque tem movimento,
interage com vento, com água, com tudo isso.’ A Blue Sky tem um software próprio
de geração de imagem, ou rendering, chamado CGI Studio.’


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