Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Veja

TROPA DE ELITE
Reinaldo Azevedo

Capitão Nascimento bate no Bonde do Foucault

‘Nunca antes neste país um produto cultural foi objeto de cerco tão covarde como Tropa de Elite, o filme do diretor José Padilha. Os donos dos morros dos cadernos de cultura dos jornais, investidos do papel de aiatolás das utopias permitidas, resolveram incinerá-lo antes que fosse lançado e emitiram a sua fatwa, a sua sentença: ‘Ele é reacionário e precisa ser destruído´. Num programa de TV, um careca, com barba e óculos inteligentes, índices que denunciam um ´inteliquitual´, sotaque inequívoco de amigo do povo, advertia: ´A mensagem é perigosa´. Outro, olhar esgazeado, sintaxe trêmula, sonhava: a solução é ´descriminar as drogas´. E houve quem não resistisse, cravando a palavra mágica: ´É de direita´. Nem chegaram a dizer se o filme – que é entretenimento, não tratado de sociologia – é bom ou não.

Seqüestrado pelo Bonde do Foucault (já explico o que é isso), Padilha foi libertado pelo povo. A pirataria transformou seu filme num fenômeno. A esquerda intelectual, organizada em bando para assaltar a reputação alheia (como de hábito), já não podia fazer mais nada. Pouco importava o que dissesse ou escrevesse, o filme era um sucesso. Derrotada, restou-lhe arrancar, como veremos, do indivíduo Padilha o que o cineasta Padilha não confessou. Por que tanta fúria? A resposta é simples: Tropa de Elite comete a ousadia de propor um dilema moral e de oferecer uma resposta. Em tempos de triunfo do analfabetismo também moral, é uma ofensa grave.

Qual dilema? Não há como ressuscitar o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), mas podemos consultar a sua obra e então indagar ao consumidor de droga: ´Você só pratica ações que possam ser generalizadas?´. Ou por outra: ´Se todos, na sociedade, seguirem o seu exemplo, o Brasil será um bom lugar para viver?´. O que o pensamento politicamente correto não suporta no Capitão Nascimento, o anti-herói com muito caráter, não é a sua truculência, mas a sua clareza; não é o seu defeito, mas a sua qualidade. Ele não padece de psicose dialética, uma brotoeja teórica que nasce na esquerda e que faz o bem brotar do mal, e o mal, do bem. Nascimento cultua é o bom paradoxo. Segue a máxima de Lúcio Flávio, um marginal lendário no Brasil, de tempos quase românticos: ´Bandido é bandido, polícia é polícia´.

A cena do filme já é famosa: numa incursão à favela, o Bope mata um traficante. No grupo de marginais, há um ´estudante´. Aos safanões, Nascimento lhe pergunta, depois de enfiar a sua cara no abdômen estuporado do cadáver: ´Quem matou esse cara?´. Com medo, o rapaz engrola uns ´não sei, não sei´. Alguns tapas na cara depois, acaba respondendo: ´Foram vocês´. E ouve do capitão a resposta que mais irritou o Bonde do Foucault: ´Não! Foi você, seu maconheiro´. Nascimento, quem diria?, é um discípulo de Kant. Um pouco desastrado, mas é. A narrativa é sempre pontuada por sua voz em off. Num dado momento, ele faz uma indagação: ´Quantas crianças nós vamos perder para o tráfico para que o playboy possa enrolar o seu baseado?´.

O Bope que aparece no filme de Padilha é incorruptível, mas violento. O principal parceiro de Nascimento chega a desistir de uma ação porque não quer compactuar com seus métodos, que, fica claro, são ilegais. Trata-se de uma mentira torpe a acusação de que o filme faz a apologia da tortura. Ocorre que o ódio que a patrulha ideológica passou a devotar à obra não deriva daí. Isso é pretexto. O que os ´playboys` do relativismo rejeitam é a evocação da responsabilidade dos consumidores de droga na tragédia social brasileira. Nascimento invadiu a praia do Posto 9, em Ipanema.

Já empreguei duas vezes a expressão ´Bonde do Foucault` para me referir à quadrilha ideológica que tentou pôr um saco da verdade na cabeça de Padilha: ´Confesse que você é um reacionário´. ´Bonde´, talvez vocês saibam, é como se chama, no Rio de Janeiro, a ação de bandidos quando decidem agir em conjunto para aterrorizar os cidadãos. Quem já viu Tropa de Elite sabe: faço alusão também a uma passagem em que universitários – alguns deles militantes de uma ONG e, de fato, aliados do tráfico – participam de uma aula-seminário sobre o filósofo francês Michel Foucault (1926-1984). Falam sobre o livro Vigiar e Punir, em que o autor discorre sobre a evolução da legislação penal ao longo da história e caracteriza, de modo muito crítico, os métodos coercitivos e punitivos do estado.

No Brasil, os traficantes de idéias mortas são quase tão perigosos quanto os donos dos morros, como evidenciam nossos livros didáticos. Foucault sempre foi um incompreendido. Por que digo isso? Porque ele era ainda mais picareta do que seus críticos apontaram. No filme, aluna e professor fazem um pastiche de seu pensamento, e isso serve de pretexto para um severo ataque à polícia, abominada pelos bacanas como força de repressão a serviço do estado e suas injustiças. Sim, isso pode ser Foucault, mas Foucault era pior do que isso. Em Vigiar e Punir, ele fica a um passo de sugerir que o castigo físico é preferível às formas que entende veladas de repressão postas em prática pelo estado moderno. Lixo.

O personagem Matias, um policial que faz o curso de direito, é o elo entre o Capitão Nascimento, o kantiano rústico, e esse núcleo universitário. A seqüência em que essas duas éticas se confrontam desmoraliza o discurso progressista sobre as drogas e revela não a convivência entre as diferenças, mas a conivência com o crime de uma franja da sociedade que pretende, a um só tempo, ser beneficiária de todas as vantagens do estado de direito e de todas as transgressões da delinqüência. Por isso o ´Bonde do Foucault` da imprensa tentou fazer um arrastão ideológico contra Tropa de Elite. Quem consome droga ilícita põe uma arma na mão de uma criança. É simples. É fato. É objetivo. Cheirar ou não cheirar é uma questão individual, moral, mas é também uma questão ética, voltada para o coletivo: em qual sociedade o consumidor de drogas escolheu viver? Posso assegurar: não há livro de Foucault que nos ajude a responder.

Derrotada, a elite da tropa esquerdopata não desistiu. José Padilha e o ator Wagner Moura foram convocados a ir além de suas sandálias. Assim como um juiz só fala nos autos, a voz que importa de um artista é a que está em seu trabalho. Ocorre que era preciso uma reparação. A opinião de ambos – ligeira e mal pensada – favorável à descriminação das drogas ameaçou, num dado momento, sobrepor-se ao próprio filme. Observem: Tropa de Elite trata é da falência de um sistema de segurança em que, segundo Nascimento, um policial ´ou se corrompe, ou se omite, ou vai para a guerra´.

A falha desse sistema independe do crime que ele é chamado a reprimir. Se as drogas forem liberadas e aquela falha permanecer, os maus policiais encontrarão outras formas de extorsão e associação com o crime. E esse me parece um aspecto importante do filme, que tem sido negligenciado. Um dos lemas da tropa é ´No Bope tem guerreiros que acreditam no Brasil´. Esse patriotismo ingênuo e retórico tem fôlego curto: um dos soldados da equipe morre, e seu caixão está coberto com a bandeira brasileira. Solene e desafiador, Nascimento chega ao velório e joga sobre o ´auriverde pendão da esperança` a assustadora bandeira do Bope: um crânio fincado por uma espada, atrás do qual se cruzam duas pistolas. Outro dos refrões do grupo pergunta e responde: ´Homem de preto, qual é sua missão? / Entrar na favela e deixar corpo no chão / Homem de preto, o que é que você faz? / Eu faço coisas que assustam satanás´. Resta evidente que o filme não propõe este Bope como modelo de polícia.

Pouco me importa o que pensam Padilha e Moura. O que interessa é o filme. E o filme submete a um justo ridículo a sociologia vagabunda que tenta ver a polícia e o bandido como lados opostos (às vezes unidos), mas de idêntica legitimidade, de um conflito inerente ao estado burguês. O kantiano rústico ´pegou geral` o Bonde do Foucault.’

 

Diogo Mainardi

Tropa de Elite é fichinha

‘Wagner Moura reclamou de mim. Foi um tal de fascista para cá, fascista para lá. Tudo porque fiz um comentário despretensioso sobre suas poses nos cartazes promocionais de Tropa de Elite. Ele está certo em reclamar. Ninguém pode julgar o trabalho de um ator baseado em meia dúzia de fotografias. E era só isso que eu conhecia de Wagner Moura: meia dúzia de fotografias estampadas nos jornais.

Na última segunda-feira, com grande esforço, consegui me arrastar até o cinema para assistir a Tropa de Elite. Como um carro-patrulha da PM carioca, o filme demora um bocado para carburar, mas acaba engrenando depois de uma hora. Wagner Moura faz seu papel direitinho. Contrariamente ao que aparenta nas fotografias, ele é contido, sereno, economizando nas narinas arfantes e nos arqueios de sobrancelhas. Talvez fosse o caso até mesmo de me desculpar.

Um dia depois de assistir a Tropa de Elite, acompanhei as imagens bem mais assustadoras de Jean Charles de Menezes em Londres, momentos antes de ser assassinado pela polícia local com sete tiros à queima-roupa, como se o metrô de Stockwell fosse uma boca-de-fumo no Morro do Turano, no Rio de Janeiro. Jean Charles passou pela roleta, caminhou por um corredor cheio de gente e desceu pela escada rolante, sempre seguido de perto por dois policiais identificados como Ken e Ivor. Em seu depoimento no tribunal, Ivor declarou que o comportamento de Jean Charles lhe pareceu suspeito. O que ele teria a dizer a respeito do comportamento do deputado tucano Paulo Renato Souza, que foi flagrado pela Folha de S.Paulo submetendo um artigo sobre o sistema bancário ao presidente do Bradesco?

A platéia que assistiu à pré-estréia de Tropa de Elite torceu para o protagonista e, pelo que li, aplaudiu as torturas praticadas pelos meganhas do Bope. O fato gerou uma gritaria danada. Como se os espectadores não soubessem distinguir a tortura praticada nas telas da tortura praticada na realidade. É desse jeito que o bom-mocismo instaura sua censura: tratando os espectadores como imbecis, incapazes de interpretar corretamente as idéias e as obras de imaginação.

Bem pior do que aplaudir as torturas praticadas por Wagner Moura em Tropa de Elite é aplaudir as torturas praticadas em nome de Renan Calheiros no Senado. É o que está acontecendo comigo. Eu sei que é errado, mas aplaudo toda vez que, em sua desavergonhada defesa de Renan Calheiros, Ideli Salvatti aparece na TV como se estivesse com um saco plástico enfiado na cabeça, sem ar, com a jugular inflada. E aplaudo toda vez que Aloizio Mercadante esperneia como se estivesse sendo ameaçado com um cabo de vassoura.

Wagner Moura disse que o maior mérito de Tropa de Elite é ter suscitado um debate. O maior – quem sabe o único – mérito do filme é justamente o contrário: ele acaba com o debate. O país é retratado como aquilo que de fato é: uma guerra de bandido contra bandido.’

 

INTERNET
Camila Pereira

Minha vida como pingüim

‘Elas são exemplos acabados de uma nova geração de crianças. Chegam da escola, dão uma volta no shopping, emendam com o jantar numa pizzaria e, se da maratona ainda sobra algum fôlego, vão a cinemas e livrarias. Mas nada disso se passa no mundo real. Os passeios são feitos em universos virtuais nos quais as crianças vivem pela internet situações que simulam a realidade, sempre representadas por um personagem que elas próprias criam. Os personagens têm nome, idade e até jeito de ser – tal qual o Second Life, o mundo virtual que faz sucesso há mais tempo entre os adultos. Dessa nova leva de sites infantis, uma pesquisa mostra que o mais freqüentado por crianças do Brasil e de vários outros países é o Club Penguin, da Disney, uma cidade de pingüins cujo total de ´habitantes` já é semelhante ao de metrópoles como Mumbai, na Índia: são 12 milhões de espécimes, a quem dão vida crianças de cinco continentes. Em paisagens pontuadas por lagos e montanhas nevadas, elas brincam de pescar, fazem campeonatos de bola de neve e praticam esqui, o esporte nacional do clube. O que as crianças afirmam ser mais divertido, no entanto, é a sensação de passar por situações típicas do mundo adulto, caso das amigas Gabriela Carlete e Juliana Bolletta, ambas de 10 anos: elas arranjaram emprego, escreveram para o jornal Penguin Times e têm dinheiro (em suas carteiras virtuais) para gastar – tudo em companhia de uma turma de amigos, que marca hora e lugar para navegar no tal clube.

Brinquedos em geral incentivam as crianças a simular situações da vida adulta, mas o que esses têm de diferente em relação aos convencionais é que nenhum outro proporciona uma interação tão completa. Desse ponto de vista, afirmam os especialistas, eles são uma boa novidade. Diz a psicóloga Ceres Araujo: ´Nos mundos virtuais, as crianças não só fazem escolhas, a exemplo do que ocorre com qualquer outra brincadeira, como ainda vivenciam as conseqüências delas´. No clube dos pingüins, por exemplo, elas acumulam dinheiro virtual para gastar, mas sabem que a poupança vai minguar caso decidam conferir luxos ao iglu onde moram, como lhe dar a forma de um aquário. Ao adotarem um animal, outra das brincadeiras do clube, terão de alimentá-lo bem – com excesso de chiclete, eles ficarão mais fracos. Em outro site de sucesso do gênero, o Neopets, quem descuida de seu animal de estimação sofre decepção ainda maior: ele permanece temporariamente fora da brincadeira. Avalia a professora Andréa Nolf, do Núcleo de Pesquisa de Psicologia em Informática da PUC de São Paulo: ´Os novos mundos virtuais para crianças têm o mérito de ajudar a desenvolver um senso de responsabilidade – e são ótima fonte de diversão´.

Ela e outros estudiosos fazem, no entanto, algumas ressalvas com base no que já foi pesquisado. A primeira é que esse gênero de site infantil, que se presta ao lazer, não deve consumir mais do que uma hora do dia de uma criança. A razão é simples: ela precisa preservar o tempo livre para brincar com outras crianças – longe do computador. Isso nem sempre acontece. Outro ponto fundamental em relação a esses mundos virtuais é que algumas de suas ferramentas ajudam, de fato, a tornar a navegação mais segura. Entre elas os especialistas apontam os filtros de segurança programados para vetar a circulação na rede de palavrões e informações pessoais, além das equipes de monitores de plantão para flagrar diálogos suspeitos – e eventualmente expulsar do clube os que extrapolam os limites da boa convivência (veja o quadro).

São todas ferramentas úteis, mas nenhuma delas substitui o papel dos pais de orientar os filhos sobre como fazer bom uso da internet. Desse gigantesco banco de dados, a maior parte não interessa às crianças (e muitas vezes a ninguém mais). No entanto, o restante pode lhes abrir um mundo de informações úteis e bom lazer. Ajudar as crianças a separar a parte boa do lixo que trafega na rede é certamente papel dos adultos. Funciona assim na casa de Thomas Tangerino, de 7 anos, e tem dado certo. O menino obedece a um conjunto de regras em casa: só entra na internet depois de feitas as tarefas escolares, não passa mais do que uma hora em frente ao computador e freqüentemente tem a seu lado a mãe, a psicóloga Simone Tangerino. Juntos, eles descobriram na internet vários dos sites infantis que tanto atraem Thomas e as crianças de sua geração. Sim, todos adoram o Club Penguin e descrevem com entusiasmo suas aventuras na internet. Resume Thomas: ´Não consigo imaginar como era antes, no tempo dos meus pais, sem um brinquedo tão legal quanto o meu computador´.

Proteção na rede

Novos universos virtuais para crianças, como o Club Penguin, vêm com ferramentas para tornar a navegação mais segura. Os especialistas afirmam que elas ajudam, mas que ainda assim os pais precisam orientar os filhos sobre como fazer bom uso da internet. Eis as ferramentas mais eficientes:

MONITORES ON-LINE

Equipes ficam de plantão para interceptar ofensas, palavrões e diálogos suspeitos. Tudo é gravado. O castigo para os participantes ´infratores` é a suspensão temporária ou mesmo a expulsão do jogo

FILTROS DE CONTEÚDO

São softwares programados para impedir que obscenidades, xingamentos e informações pessoais (como números de telefone ou de cartão de crédito) circulem pelos sites infantis

BATE-PAPO LIMITADO

A ferramenta oferece a opção de restringir as conversas no mundo virtual a um menu fixo de códigos e frases. Diminui com isso a possibilidade de a criança engatar diálogos inapropriados

O que os pais podem fazer:

• Orientar as crianças a só interagir no mundo virtual com pessoas conhecidas

• Instruí-las a não compartilhar com ninguém a senha pessoal para o ingresso nesse tipo de site’

 

DIOGO MAINARDI
Mario Sabino

O oráculo de Ipanema

‘Diogo Mainardi usa a primeira pessoa para falar do mundo. Eu usarei a primeira pessoa para falar dele. Conheço o Diogo há trinta anos, desde os tempos do colegial no Equipe, em São Paulo. Na década de 70, o Equipe era uma escola que abrigava filhos de intelectuais perseguidos pelo regime militar, de profissionais liberais com pensamento mais alinhado à esquerda e de ricos, simplesmente. Só havia uma aluna negra. Depois dela, o Diogo era o mais escurinho. A cota do Equipe. Estudamos com futuros músicos de rock (Titãs), futuros pintores (Casa 7), futuros cineastas (Cao Hamburger é um entre mais de 300) e nenhum futuro Prêmio Nobel de Medicina, Física ou Química. A moçada gostava mesmo era de fazer arte, digamos assim. Inclusive nós, da futura ´mídia golpista´. O Diogo e eu tínhamos 15 anos, embora ele acrescentasse mais unzinho à sua idade, naquela que foi a sua primeira obra de ficção. O Diogo do Equipe era uma antecipação do Diogo atual, autor de Lula É Minha Anta (editora Record; 238 páginas; 35 reais), coletânea de textos publicados em VEJA. Os alunos do Equipe usavam andrajos ripongos. O Diogo usava calças Fiorucci. Os alunos do Equipe viajavam de ônibus para pegar praia no Ceará. O Diogo viajava de avião para esquiar no Chile. Os alunos do Equipe não tomavam banho com regularidade. O Diogo tomava dois por dia. Muitos alunos do Equipe iam de motorista para a escola. O Diogo ia de ônibus (e com um Rolex no pulso, sem que isso fosse visto como uma demonstração perversa da elite a favor da desigualdade de renda). Os alunos do Equipe ouviam Caetano Veloso e Luiz Melodia. O Diogo ouvia Talking Heads e Devo. Os alunos do Equipe gostavam de meninas com pernas cabeludas. O Diogo gostava de meninas com pernas depiladas (e eu também).

Além da fumaça de baseados, respirava-se política no Equipe. Os professores de história eram todos ligados ao Partido Comunista Brasileiro e adjacências. À diferença dos doutrinadores de hoje, eles sabiam história e nos divertiam ao ridicularizar as versões ´burguesas´. Havia uma professora de história do Brasil da qual sonhávamos socializar o modo de reprodução. Nas suas aulas, saíamos lá do fundão, para sentar perto daquela visão do paraíso (não no sentido do Sérgio Buarque de Holanda). Pois um dia, ao final de uma aula virulenta contra o capitalismo, o Diogo pediu a palavra à filocubana e disse, naquele tom plácido que é uma de suas marcas: ´Fala a verdade, professora, vocês, comunistas, gostam mesmo é do charutão do Fidel Castro´. Não houve retaliação. A esquerda brasileira era bem mais tolerante naqueles anos.

O Diogo pertencia a outro PC: o ´Porcos Chauvinistas´. Esse era o nome da nossa turma politicamente incorreta (o termo não existia), que fazia um jornalzinho de periodicidade irregular como o mensalão petista, o ´Corriere del PC´. O título, inventado pelo Diogo, era uma gozação para cima dos comunistas italianos, naquele período histórico empenhados em engabelar o público com um troço chamado ´eurocomunismo` ou ´terceira via´. A forma e o conteúdo do nosso ´Corriere` eram menos pretensiosos. Numa folha de caderno manuscrita, circulávamos piadas sobre os professores e elegíamos misses entre as meninas da classe mais dotadas de certos atributos (nunca inteligência). Em todo número, colávamos a mesma fotografia 3 por 4 de um integrante feioso do ´PC´, com a seguinte legenda: ´Procura-se estuprador de galinhas´. O resto da classe achava isso um ´absurdo´, a palavra mais em voga no Equipe da década de 70.

AOS 16 ANOS, DO LADO DE GUSHIKEN

Em 1979, Diogo Mainardi estava no centro de São Paulo, quando foi colhido por um quebra-quebra promovido pelo Sindicato dos Bancários. Tentou fugir, mas levou uma cacetada de um policial. Furioso, aderiu à turba. O fotógrafo Pedro Martinelli, pensando se tratar de um manifestante, o flagrou enquanto quebrava a vidraça de um banco. Uma das fotos foi publicada em VEJA. A seqüência completa das imagens está reproduzida pela primeira vez nestas páginas

Uma de nossas atividades curriculares preferidas era jogar sinuca nos fundos de um boteco próximo ao colégio. Foi o cenário da defesa de minoria mais contundente que presenciei. O Diogo, que tinha aulas particulares de caratê em casa (pois é), pegou pelo colarinho um tipo que ameaçava dar uns cascudos num professor gay (de química). ´Se você fizer isso, eu quebro a sua cara, está escutando?´, disse o Diogo, num tom nada plácido, reconheço. O ameaçado ficou tão assustado quanto surpreso: como é que o Diogo, logo ele, capitão do ´PC´, podia defender um homossexual? Essa é a diferença entre o Garrincha e o Diogo, para ficar numa metáfora típica do momento político. Em seus dribles, o Garrincha fazia toda sorte de firula, mas sempre saía pela direita. O Diogo às vezes pode sair pela esquerda. A pretexto de aperfeiçoar o inglês, ele foi fazer o último ano do colegial numa high school pública da Califórnia. Os americanos estavam histéricos com o Irã dos aiatolás. Dali a pouco, a embaixada dos Estados Unidos em Teerã seria invadida e dezenas de funcionários mantidos reféns. O que fez o Diogo na high school? Pôs-se a defender a revolução iraniana e a atacar o xá deposto Reza Pahlevi (tio, aliás, da namorada do seu irmão mais velho). Para espanto do professor de American Studies – o equivalente à antiga educação moral e cívica brasileira -, ele contava em sala de aula como a CIA havia apoiado o regime corrupto do xá e, na América Latina, dado suporte ao golpe no Chile. O professor foi pesquisar nos jornais e – Oh, my Gosh! – confirmou tudo.

O colunista mais lido de VEJA apareceu pela primeira vez nas páginas da revista na edição de 19 de setembro de 1979. Foi na condição de ´desordeiro´, veja só que ironia. Uma foto estampada na página 17 mostra o Diogo, às vésperas de completar 17 anos, quebrando a vidraça da agência de um grande banco, em São Paulo. Recém-chegado dos Estados Unidos, ele estava no centro da cidade para renovar a carteira de identidade, quando foi colhido por uma manifestação do sindicato dos bancários logo degenerada em quebra-quebra. O Diogo tentou sair dali, mas um policial lhe deu uma cacetada. Furioso, ele se juntou à turba – e foi flagrado pelo fotógrafo Pedro Martinelli, de VEJA, que, é claro, pensou ser o garotão um bancário ou office-boy, apesar das botas italianas e do Rolex. A seqüência completa das imagens do ´desordeiro` pode ser vista nestas páginas. Do episódio, conclui-se que, pelo menos uma vez, o Diogo esteve alinhado ao petista Luiz Gushiken, então um dos chefes dos bancários paulistas e personagem de Lula É Minha Anta.

Em 1980, o Diogo passou no vestibular para a faculdade de economia da PUC. Cursou só um ano. Nessa ocasião, mudou-se para uma quitinete no centro de São Paulo. O lugar era meio sórdido. Numa das paredes do apartamento, acima da cama permanentemente desarrumada, ele pichou a frase ´De omnibus dubitandum est` (´Duvide de tudo´), mote latino que guiava o francês René Descartes. Troque-se o ´tudo` por ´políticos` e eis o cerne do pensamento mainardiano. Por isso acho engraçado quando ouço um político falar que é ´amigo do Diogo´. O Diogo não tem amigos políticos. Hoje bate nos petistas como amanhã espancará os tucanos, caso o PSDB volte ao Planalto. ´Encaro como um serviço de utilidade pública´, diz ele. O filme Tropa de Elite aponta o dedo contra os usuários de drogas? O Diogo já fazia isso no começo dos anos 80. Convidado para uma festa de publicitários e modelos, em que cocaína era servida feito canapé, ele pegou um punhado de pó, subiu numa mesa e interrompeu a festa com um discurso. Acusou os presentes – e olhe que era gente para burro – de financiarem o golpe de estado que o general Luis García Meza havia acabado de dar na Bolívia, com a ajuda dos cartéis da coca. Capitão Diogo Nascimento.

Cansado do Brasil brasileiro, mudou-se para Londres, matriculado na London School of Economics. A princípio, ficou maravilhado com a biblioteca de vários andares da escola. Mas, antes de completar um ano nessa faculdade tão conceituada quanto cara, elegeu como tutor Ivan Lessa, uma referência para sempre. Lessa indicou-lhe pencas de livros de ficção para ler – do irlandês Flann O´Brien ao americano Terry Southern. Resultado: o Diogo passou a matar aulas em libras esterlinas. Fui encontrar o meu amigo em Londres. Ele alugava um quarto na casa de um encanador e, quando não estava lendo a bibliografia passada pelo tutor Lessa, andava horas pela cidade, ensimesmado. Sua dieta era à base de goulash, fish-and-chips e scotch egg – um ovo cozido revestido de uma capa de farinha frita. Não sei como o Diogo sobreviveu a esse tipo de comida. De qualquer forma, tendo a crer que a culinária da velha Albion ajudou a forjar o notável estilo sem molhos do autor de quatro romances, dois roteiros cinematográficos e duas coletâneas de artigos publicados em VEJA, A Tapas e Pontapés e, agora, Lula É Minha Anta.

A história mais recente do Diogo é razoavelmente conhecida. Serviu de cicerone a Gore Vidal na visita do escritor americano ao país (o que pouca gente sabe é que Vidal aconselhou Diogo a entrar na carreira política e tentar a Presidência do Brasil). Era amigo de Paulo Francis e é chapa de Millôr Fernandes – os dois, mais Ivan Lessa, estão em fotografias penduradas na sala de jantar do Diogo. Viveu durante catorze anos em Veneza, onde se casou com Anna Michielotto, especialista na pintura de Tintoretto, e teve seu primeiro filho, Tito, que nasceu com paralisia cerebral. Há seis anos, escolheu o Rio de Janeiro para morar, porque a cidade oferecia melhores condições do que Veneza para o desenvolvimento de Tito, uma das crianças mais bem-humoradas que conheço. No Rio, nasceu o seu segundo filho, Nico, um garoto muito ´ishperrto´, na avaliação geral dos vizinhos ipanemenses. Desde 2003, o Diogo faz parte da bancada do programa Manhattan Connection, do canal GNT. Grava apenas com áudio, sem ver os seus interlocutores em Nova York, o que acentua a sua tendência de olhar para baixo quando está diante de uma câmera.

O Diogo é amigo de infância do dono do grupo Fasano, Rogério. Isso lhe garante mesa cativa nos restaurantes e um preço camarada nas contas. É um negocião, principalmente porque o veneziano Tito adora comer bem. A família toda vai para a cama cedo, por volta de 9 e meia da noite. O Diogo já está de pé às 5 e meia da manhã. Lê jornais nacionais, americanos e italianos na internet, e a rede lhe propicia também levantar informações sobre os personagens citados em suas colunas e no podcast que faz para VEJA on-line. Ele mora na Avenida Vieira Souto, no 3º andar de um predinho que nada tem de elegante ou luxuoso, mas ainda mantém o belíssimo apartamento no Canal Grande, em Veneza, num edifício do século XV, com janelas bizantinas, ao lado do Museu Guggenheim. O aluguel da maravilha é relativamente barato porque o dono é amicíssimo de Anna.

Lula É Minha Anta reúne colunas publicadas entre março de 2005 e setembro deste ano. É a história do mensalão vista pela ótica do Diogo. Como sabem os admiradores que acompanham seu trabalho, ele também participou das apurações de alguns episódios, contribuindo com entrevistas e dicas preciosas. No livro, o Diogo encadeia as colunas por meio de comentários em negrito que não deixam o leitor se perder em meio à torrente de acontecimentos. É, no todo, uma ótima crônica sobre a quadra mais espantosa da democracia brasileira. Visitei bastante o Diogo nesse período. Tardes e tardes de sábado na sala do seu apartamento – eu no sofá desconfortável de frente para o janelão que emoldura o mar do Posto 9; ele no divã igualmente desconfortável de costas para o janelão (vou acabar comprando uns móveis decentes para os Mainardi). Com as crianças brincando no quarto, a televisão ligada baixo em algum programa ruim da RAI, ficávamos naquele silêncio modorrento só possível entre amigos. Uma vez o Diogo caiu na risada. ´Por que você está rindo?´, perguntei. ´É porque estou fora do radar petista. Enquanto eles gostam de dinheiro e poder, eu gosto mesmo é de dormir´, respondeu o oráculo de Ipanema.’

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Folha de S. Paulo – 1

Folha de S. Paulo – 2

O Estado de S. Paulo – 1

O Estado de S. Paulo – 2

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