Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O genocídio cordial dos negros brasileiros

(Foto: Rafaela Biazi/Unsplash)

Os negros brasileiros cantam. Os negros brasileiros dançam. Os negros brasileiros fazem malabarismo com a bola. Os negros brasileiros morrem pelas balas da polícia. Os negros brasileiros morrem pela indiferença branca. Os negros brasileiros morrem, vítimas do racismo social.

“Os negros brasileiros”, escreveu há 42 anos o dramaturgo e político Abdias do Nascimento¹, “são as vítimas de um genocídio mascarado”. À primeira vista, o comentário, no mínimo, surpreende. A imagem do Brasil, até os anos de Jair Bolsonaro, não era a de uma democracia racial com uma mestiçagem cordial?

O Brasil nunca separou brancos e negros pela lei, isto é verdade, diferentemente da África meridional e do sul dos Estados Unidos. A ausência de racismo institucional e a herança católica tolerante à mestiçagem resultante do droit de cuissage², justificaram a construção da narrativa do convívio cordial. Validada pelo regime de Getúlio Vargas, nos anos 1940, segundo essa narrativa o Brasil seria uma democracia racial.

No entanto, a leitura do que se passa no cotidiano embaralha essa mensagem. No dia 2 de junho de 2020, o pequeno Miguel Otávio, 5 anos, morreu tragicamente. Ele caiu de uma altura mortal, do nono andar de um prédio residencial. Sua mãe, empregada doméstica, havia saído com o cão de sua patroa, branca e de classe média alta. A mãe negra lhe havia confiado o cuidado de seu filho. Em 18 de junho de 2020, João Pedro, adolescente de 14 anos, foi morto a tiros por um policial no subúrbio do Rio de Janeiro. Em 20 de setembro de 2019, a menina Ágatha Félix, 8 anos, foi morta por um policial em uma favela no Rio. Em 8 de setembro de 2019, Kauê Ribeiro dos Santos, de 12 anos, foi morto a tiros pela polícia em um distrito periférico do Rio. Dyogo Costa Xavier de Brito, 16 anos, sofreu o mesmo destino em uma rua de Niterói em 13 de agosto de 2019. Em 10 de maio de 2020, Kauã Victor Nunes Rozário, 11 anos, foi o alvo fatal da polícia, em Bangu, oeste do Rio. Em 8 de fevereiro de 2019, outros 16 jovens no Rio foram eliminados sem aviso prévio durante uma operação policial, conhecida como chacina do Morro do Fallet.

Na última década, 553.000 pessoas morreram violentamente no Brasil (62.000 casos só no ano de 2018). Muito mais do que em qualquer país do mundo. Mais do que na Síria, um país em guerra, ou nos Estados Unidos, um país de graves erros policiais. 70 a 75% das vítimas desses homicídios são negras. 5 a 10% delas, dependendo do ano, são mortas pela polícia. Todo ano esse número aumenta. A polícia brasileira matou 2.332 pessoas em 2012, 5.144 em 2017 e 6.220 em 2018. No Rio de Janeiro, de 1.814 indivíduos mortos a tiros pela polícia em 2019, 1.423 eram negros.

A conjuntura política desempenha um papel de acelerador dessa violência. Em 27 de agosto de 2019, Sérgio Camargo, nomeado pelo presidente Bolsonaro como diretor da Fundação Palmares³, instituição responsável pela luta contra as discriminações raciais, justificou a escravidão nestes termos: “A escravidão foi terrível, mas benéfica para os descendentes. Negros do Brasil vivem melhor que os negros da África”. No dia 19 de setembro seguinte, um deputado do Partido Social Liberal (PSL), partido do presidente Bolsonaro na época de sua eleição, tentou depredar uma exposição consagrada ao genocídio dos negros, instalada oficialmente nos corredores da Câmara dos Deputados. Coronel Tadeu – esse é o seu nome – justificou o seu gesto explicando que seria lógico o fato de “que jovens negros sejam mortos pela polícia uma vez que a maioria é envolvida com o tráfico de drogas”. Seu colega do PSL, Daniel Silveira, ex-policial militar, confirmou a declaração. “É evidente que muitos negros morrem. […] Muitos estão armados, são criminosos […]. Que não venham dizer que a polícia militar é a responsável por essas mortes”.

Os comentários, além de sua radicalidade, revelam algo mais profundo. A vida de um negro, delinquente ou não, não tem o mesmo valor que a de um branco. O morador da favela, por definição social e policial, é o inimigo. A polícia militar e seus batalhões de choque, o BOPE, empregam a lógica militarizada para assegurar a manutenção da ordem. As estatísticas de homicídios publicados pelo Ministério da Saúde colocam as vítimas da polícia sob a rubrica muito explícita, Y35-Y36, “operações de guerra”.

Esta guerra social é fruto de uma história. Ela é fruto da história de um país herdeiro de um longo período de escravidão passiva. De um país onde o negro deve saber qual é o seu lugar… e nele permanecer.

A vereadora do Rio, Marielle Franco, que estava investigando a conduta da polícia, morreu. O reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente, resumiu a situação desta forma. “No Brasil, todo mundo se beija. Mas, se você é negro, ninguém te contrata”. Os números falam. 54% da população brasileira é negra. 70% dos negros são pobres. Os negros têm rendimento médio que representa 59% em relação ao dos brancos. 64% dos encarcerados são negros. 24,4% dos deputados eleitos em 2018 são negros. Do total dos diretores das 500 maiores empresas brasileiras apenas 4,9% dele são negros. Dos 40 membros da Academia Brasileira de Letras, somente um deles é negro. Conceição Evaristo, escritora negra, traduzida em diversas línguas, apresentou sua candidatura em 20 de agosto de 2018. Ela conseguiu… Une voix⁴.

A revista brasileira CULT, em março de 2018, publicou um dossiê com o título esclarecedor: “A violência como ordem”. O sociólogo Jessé Souza⁵ esclarece: “Nossa organização familiar, econômica, política, nossa justiça, aufere seus fundamentos na escravidão”.

Conclusão tirada pelo grupo de rap de São Paulo, Racionais MC’s, em sua música Capítulo 4, versículo 3: “A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras. A cada 4 horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”.

NOTAS

¹ Abdias Nascimento, “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um racismo mascarado”. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1978.

² NT.: Expressão usada para caracterizar o direito feudal à primeira noite com as jovens esposas recém-casadas com um de seus vassalos ou servos. É empregada no texto para metaforicamente aludir à nossa história de abusos, assédios e violências de mesma ordem cometidos por colonizadores, senhores de escravos e homens brancos contra mulheres escravizadas, negras e indígenas.

³ Zumbi dos Palmares foi o negro mais famoso do Brasil colonial. Sua memória é homenageada desde 2003, no dia 20 de novembro, “Dia da consciência negra”.

⁴ NT.: A palavra francesa “voix” tem dupla significação em francês, como “voto” e como “voz”.

⁵ Jessé Souza. “A elite do atraso: da escravidão à Lava-Jato”. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

Texto publicado originalmente em francês, em 11 de junho de 2020, na seção ‘Tribuna’ do Institut de Relations Internationales et Stratégiques – IRIS, Paris/França, com o título original “Le génocide cordial des noirs brésiliens”. Disponível em: https://www.iris-france.org/147779-le-genocide-cordial-des-noirs-bresiliens/ . Tradução e revisão realizadas por Allice Toledo Lima da Silveira, Denise Aparecida de Paulo Ribeiro Leppos e Luzmara Curcino.

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Jean-Jacques Kourliandsky  é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É Formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros livros, de “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014).