Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os capitães do mato e as distrações da queda de Ícaro

(Foto: Museum of Fine Arts – Pieter Bruegel, o Velho)

Há uma conhecida pintura que metaforiza bem nosso tempo de distrações jornalísticas. Na obra, o pintor Pieter Bruegel (1525-1569) entretém os olhares para uma paisagem primaveril, de sol idílico, vista do alto de uma baía, em que embarcações aportam e partem, e o trabalho rotineiro continua sendo lavrado sem nenhuma interrupção. No entanto, o título da pintura, feita por volta de 1558 e exposta em Bruxelas, aponta para algo quase imperceptível: A queda de Ícaro, mais precisamente seu afogamento, no canto inferior esquerdo do quadro, logo abaixo da embarcação que parte sem sequer notar a agonia do afogado. Analogamente, parece ser assim (distraidamente) que a sociedade brasileira anda lidando com graves casos de racismo, sexismo e fraturas na democracia, que ficam nítidos nos recentes episódios envolvendo Hans River do Nascimento, Patricia Campos Mello, Vera Magalhães, a família Bolsonaro e também as conturbadas exonerações na Fundação Palmares feitas por seu presidente, o controverso jornalista Sérgio Camargo. Todos parecem atos imperceptíveis, mas que dizem muito sobre nossa sociedade.

História conhecida. Ícaro, famoso na mitologia grega como filho de Dédalo (habilidoso artesão), acabou por se afogar no mar próximo à ilha de Creta, em plena fuga com seu pai. Ambos eram prisioneiros do rei Minos e, na busca por liberdade, usaram asas com penas presas por cera. Voar alto demais faria a cera derreter feito manteiga, baixo demais faria as asas molharem. Por isso o pai, Dédalo, aconselha Ícaro a voar com moderação, em voo mediado e ponderado; porém, como é sabido, o filho vaidoso perde-se no horizonte próximo ao calor do sol, vê suas asas se desfazerem e a fatal queda ocorre. Ícaro afoga-se no mar. Ficou o mito. E apenas as penas na água. Contudo, na pintura de Pieter Bruegel, podemos ver que há as pernas de alguém se afogando – as quais, pelo título da obra, atribui-se a Ícaro (mito grego). O que o artista renascentista holandês quis metaforizar com isso? Há várias interpretações. No entanto, todas passam pela simples constatação de que os fatos cotidianos, as lavras vorazes da história, não param pela mera queda de um mito; não se distraem.

História em movimento. Talvez um dos mitos a cair vertiginosamente em nossa sociedade seja o da “democracia racial”, tão bem criticado e exaustivamente bem descrito pelo inconteste Florestan Fernandes nas últimas décadas do século XX. Ademais, não é possível defender a democracia racial em um país com mais de 70% da população carcerária de negros; com a maioria de trabalhadores informais, sem oportunidades, também negros; com o aumento drástico de casos de feminicídios no país nos últimos anos, sendo que a diferença entre os homicídios de mulheres negras para brancas é de 71%, segundo estudo publicado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra. Vale ressaltar, aqui, que todas as vidas importam. Os dados acima só nos fazem notar e verificar que há algo que não se sustenta muito tempo no ar, como Ícaro, em nossa nação: o mito da democracia racial.

Outro dilema, o mito de democracia sexual. O sexismo, faz tempo, é um dos nossos maiores problemas, seja pelo aumento de feminicídio, seja pelas recentes afrontas feitas às jornalistas Patricia Campos Mello (da Folha) e Vera Magalhães (do Estadão). O sexismo deve ser enfrentado cotidianamente como se deve lavrar a terra sem interrupções e distrações (ainda mais por nós, homens e negros). Os casos das jornalistas são graves, por isso é preciso preparar a terra para plantios futuros, para que nasçam flores de igualdade e equidade entre os gêneros.

Patricia Campos Mello foi acusada por Hans River do Nascimento, na CPMI das Fake News, de tentar comprar uma reportagem oferecendo sexo. Horas depois, Hans foi desmentido com provas cabais de que a jornalista não ofereceu nada de conteúdo sexual em troca de informações. Hans desceu a níveis baixos da dignidade humana ao acusar uma mulher de algo que ela não fez. Mas mais baixo foi aceitar fazer o papel de capacho e capitão do mato para a milícia virtual ao servir de escudo a uma prática secular de homens brancos. De forma quase simultânea e aparentemente calculada, as mentiras de Hans foram viralizadas na “esgotosfera”, muitas delas divulgadas pelos celulares de dois filhos (brancos) do atual presidente da República, como comprova a reportagem investigativa do The Intercept Brasil.

Contudo o agravamento do sexismo se deu neste Carnaval de 2020, quando o chefe do executivo, que deveria dar exemplo de responsabilidade e respeitabilidade à nação, divulgou vídeos criminosos e inconstitucionais com uma chamada para manifestações em 15 de março contra o Congresso Nacional e o STF. Na tentativa vã de dizer que os vídeos eram falsos ou anacrônicos (de 2015), o atual presidente da República arrumou a desculpa esfarrapada de que a jornalista Vera Magalhães (do Estadão) havia mentido sobre ele. E, mais uma vez, fez declarações sexistas. A partir daí, as coisas só pioraram para Bolsonaro. A Folha, o Estadão e O Globo divulgaram editoriais em defesa da jornalista. E até mesmo o Jornal Nacional fez reportagem extensa mostrando as “contradições” (leia-se: mentiras de Bolsonaro em horário nobre) do presidente da República na sexta-feira, dia 28.

Dos vários agravamentos ocorridos nas últimas semanas – que não podem ficar escondidos por meio de distrações jornalísticas ou de festas carnavalescas -, há também os que ocorrem na surdina sem ninguém perceber, como se fossem o afogamento de Ícaro na tela atribuída a Bruegel. Dentre os fatos que não se podem deixar passar estão as exonerações, sem nenhuma explicação, de quatro diretores da Fundação Palmares. Foram demitidas quatro pessoas que tinham cargos de comando na casa. Todas as exonerações foram feitas pelo presidente da Fundação Palmares nomeado por Bolsonaro, o controverso jornalista Sérgio Camargo. Vale, aqui, fazer um ressalva: Sérgio Camargo é mais um capitão do mato que faz escudo à casa grande; faz o escudo da “elite do atraso”, de maioria branca, faz o típico discurso sem reflexão. É apenas a existência sem validade, o mero reprodutor de clichês, de preconceito e de senso comum, pois acha que assim terá também poder. No entanto, sabemos qual é o papel desses medíocres capangas, capitães do mato e capachos na História: a lata de lixo. Ainda mais traidores da própria origem. As declarações de Sérgio Camargo nas redes sociais causam polêmica, pois as redes são de natureza binária e maniqueísta, mas elas não passam de mais uma “queda de Ícaro” que não provocam nem ondinha no entorno do que vale a pena levar adiante – veja que a tela de Bruegel não reservou sequer uma onda para o afogamento do filho de Dédalo.

A terra continuará sendo lavrada, governos continuarão a passar, nomeações permanecerão dependendo de interesses políticos por um período. Mas a força do tempo, da natureza, dos povos e dos movimentos democráticos fará o sexismo, o racismo e a falsa democracia sucumbirem, como Ícaro em uma paisagem de uma tela de Bruegel.

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Fabrício César de Oliveira é negro, mestre e doutor em Filosofia da Linguagem e Linguística pela Universidade Federal de São Carlos, professor, editor, tradutor e adora derreter a cera das asas de capitães do mato.