Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Empatia pode ser dilema para repórter de conflito

(Foto: Freeepik)

Em março de 2016, quando entrei no curso de jornalismo, um dos primeiros livros de leitura obrigatória foi O clube do bangue-bangue. Nele há a história de quatro jornalistas que fotografaram o fim do apartheid dentro das áreas subdesenvolvidas da África do Sul, as chamadas townships. O livro é muito conhecido por contar o caso da fotografia de Kevin Carter, na qual um menino faminto é retratado sendo observado por um urubu. Mesmo depois de ter ganhado o prêmio Pulitzer pela imagem, ele cometeu suicídio pelo dilema que o consumia: devia ter interferido na situação ou apenas fotografado?

Esse foi apenas o primeiro caso de que tive conhecimento sobre um dos dilemas da profissão quando você está cobrindo uma situação de conflito ou violência: o jornalista deve interferir? Conversei com quatro jornalistas que fizeram coberturas distintas para entender um pouco o que profissionais que já passaram por tais condições pensam e sentem em tais circunstâncias.

A epidemia de ebola na região da África Ocidental teve início em dezembro de 2013. Menos de um ano depois, em agosto de 2014, Serra Leoa teve seu pico de pessoas contaminadas com a doença causada pelo vírus de mesmo nome e que causa hemorragias intensas e falência de órgãos, podendo levar à morte. Em Serra Leoa, a doença se alastrou de maneira muito rápida por causa da decadência de seu sistema de saúde. Na época, quando um paciente não conseguia ser transportado por uma das quatro ambulâncias destinadas a atender 480 mil pessoas no distrito de Kailahun, por exemplo, era levado pelos parentes e amigos dentro do transporte público, podendo contaminar mais gente. Além da falta de estrutura para o deslocamento dos pacientes, o sistema de saúde do país também não oferecia materiais seguros para os médicos e enfermeiras. Luvas rasgadas ou a falta delas já era parte da rotina de trabalho.

Esse foi o cenário que os Médicos Sem Fronteiras tiveram que enfrentar ao começar o processo de conscientização e, depois, vacinação após mais de 2.200 mortes, além de 120 profissionais da saúde mortos em setembro de 2014.

Apesar da erradicação ter sido deficitária, impediu que o vírus continuasse matando mais pessoas. Não à toa, Ella Watson-Stryker, agente de saúde dos Médicos sem Fronteiras, foi capa da revista Time que homenageia os combatentes da doença. A Organização Mundial da Saúde declarou fim da epidemia em janeiro 2016.

O Brasil pôde acompanhar tudo desde as mortes que a doença causou até o surto cessar. Patrícia Campos Mello foi a jornalista da Folha de S.Paulo que esteve no país para acompanhar e contar o que estava ocorrendo no continente africano. Patrícia também cobriu os embates da população de Roraima com os venezuelanos que estavam entrando no Brasil, fugidos de sua terra natal por causa da crise econômica e política que o país está passando. São coberturas de calamidade humana, mas que Patrícia defende serem experiências iguais à intervenção federal no Rio de Janeiro. Para ela, o que importa são as pessoas e a reportagem, não importando onde e quando.

Uma das coisas que torna similar todas as coberturas é a ressaca moral com que ela, como jornalista, tem que lidar. “A gente vai, cobre, faz a matéria e volta pra sua cama quentinha e sua casa inteira. Eles, não”, explica.

Assim como ela, Yan Boechat também acredita que exista uma glamourização do jornalista que vai fazer cobertura fora do país. Boechat é repórter freelancer e cobre conflitos no Oriente Médio desde 2003. Sua primeira cobertura foi para a revista Época, sobre a guerra do Afeganistão. Esse conflito havia se iniciado dois anos anos antes, com os Estados Unidos declarando guerra ao invadir o território afegão após o ataque terrorista às Torres Gêmeas, no centro de Nova York.

Além da cobertura desse conflito, Boechat acompanhou os protestos da Primavera Árabe, revoltas populares contra governos no norte da África e no Oriente Médio, a guerra no Iraque contra o Estado Islâmico, grupo fundamentalista que busca tomar o poder, e a resistência na Ucrânia contra a dominação da Rússia.

O jornalista brasileiro trabalhava com economia e política quando resolveu começar a cobrir conflitos. Ele queria ver a história com os próprios olhos. E até hoje é assim. Ele tenta entender quais são as raízes históricas de um confronto e busca ao máximo não fazer “marketing” da luta, mas mostrar a perspectiva de quem está vivendo no local, no meio do conflito. “A minha pretensão é que as pessoas entendam que a verdade é mais complexa do que parece ser, que o mundo é mais complexo. Mudar essas ideias pré-concebidas de que os conflitos seriam entre o bem e o mal. O jornalismo internacional tem pouca preocupação em esclarecer isso”, explica.

Em maio de 2018, o jornalista foi fotografado socorrendo uma muçulmana na faixa de Gaza durante um ataque. Ele explica que, apesar de existirem momentos como esse, ele só presta ajuda caso não haja outra pessoa para fazer. “Eu vi um monte de gente morrer, um monte de gente ferida, mas não é meu papel salvar aquelas pessoas, infelizmente”, diz. Empatia, para ele, é uma consequência. Seu objetivo como jornalista é registrar aqueles momentos para as outras pessoas.

Diferente do que pensa e fez Boechat, Daiane Andrade, repórter da rádio BandNews FM, ainda mantém relacionamento com as pessoas que conheceu cobrindo a retirada do Exército Brasileiro no Haiti. Após Jean-Bertrand Aristide, presidente da ilha em 2004, ser destituído do poder, o Exército Brasileiro ficou responsável pela missão Minustah, com o objetivo de ajudar na estabilidade social e na pacificação das favelas do país. Mas, com o terremoto em 2010, o cenário de pobreza e precariedade do país se agravou e as Forças Armadas Brasileiras ficaram mais sete anos lá, até a Organização das Nações Unidas (ONU) entender que o país já estava em condições mínimas para se reconstruir sozinho.

Após fazer um curso de cobertura de conflitos em Curitiba, ministrado pelo Exército, e ser indicada para fazer outro no Rio de Janeiro, Daiane foi uma das jornalistas escolhidas para cobrir a retirada das tropas após treze anos no território. Mas, mesmo depois de ter estudado incansavelmente a história e os costumes, levou um susto com o tamanho da tragédia que encontrou no Haiti. Enquanto estava lá, em uma das primeiras saídas com o Exército, uma mãe veio com um bebê em sua direção e enquanto ela se aproximava, um militar a repreendeu, avisando para ficar longe. Daiane só entendeu depois o que estava para acontecer naquele momento: a mãe iria entregar o bebê para a repórter e fugir. Por não terem condições de criar os filhos, muitas mães os entregavam para desconhecidos. Outra vez, a repórter estava saindo de um orfanato quando uma menina abraçou sua perna e ali ficou até Daiane explicar para ela que teria que ir embora.

Essas cenas foram tão marcantes que, quando ela voltou ao Brasil, encontrou a freira que cuidava de uma das meninas e mandou vestido e boneca para a criança, que continuava na ilha. Como passava o dia inteiro na rua, a maior parte do material que foi ao ar enquanto ela estava lá foram entradas ao vivo, com entrevistas feitas na hora. O material fechado só era produzido ao final do dia, que se emendava em um descanso muito breve antes de recomeçar a rotina de cobertura.

A rotina puxada também fez parte da viagem de Letícia Duarte. Em 2013, ela fez uma cobertura especial para o jornal Zero Hora, contando sobre a imigração do norte da África para a Europa. Desde decidir a pauta até pegar o avião, passaram-se dois dias. Ela foi sozinha, com uma mochila nas costas e um par de celulares, acompanhar uma família no percurso que saiu da Turquia em direção à Alemanha, passando por sete países em oito dias. Por causa da rotina puxada e pela qualidade da rede de internet, enquanto estava fora do Brasil apenas redigiu alguns textos e enviou para a redação. Só conseguiu sentar e escrever o especial depois que estava no Brasil.

Em 2015, a crise dos refugiados na Europa tinha estourado e ela já acompanhava a situação pelos noticiários, mas ter que trazer a mesma história de um ângulo diferente era um desafio além do encarado todos os dias nas redações. A ideia era contar a narrativa do ponto de vista de uma família, o que ela chama de microcosmos. Seu objetivo principal foi transmitir para os leitores o sentimento de empatia pela situação.

Para Daiane, da BandNews FM, a responsabilidade de sensibilizar as pessoas com a situação foi além das entradas que fez do Haiti. Depois que voltou ao Brasil e publicou a série de reportagens especiais sobre os haitianos, ela ainda se sentia muito ligada a tudo que presenciou. “A história nunca acaba com a reportagem publicada”, diz.

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Ana Tereza May é jornalista em formação, atualmente residindo em Porto, Portugal. Em 2018, participou do Curso de Informação sobre Jornalismo em Situações de Conflito Armado realizado pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha e pela Oboré Projetos Especiais.