Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Ocultar mostrando: como a televisão desinforma sobre a Coreia do Norte

(Foto: Jung Yeon-je / AFP)

Na edição do Fantástico de 26 de abril, foi apresentada uma reportagem de aproximadamente 7 minutos a respeito do desaparecimento do líder norte-coreano Kim Jong-un. É interessante como o histórico narrativo das matérias a respeito da Coreia do Norte nos principais veículos de mídia tem papel fundamental no imagético do telespectador sobre o povo coreano, e não é diferente aqui.

A cabeça da reportagem, narrada pelos apresentadores Tadeu Schmidt e Poliana Abritta, indica o tom de praxe quando o assunto é Coreia do Norte: os verbos no futuro do pretérito auxiliam na criação de uma redoma mítica e impenetrável sobre o que realmente aconteceu com o líder coreano Kim Jong-un; mas também evidenciam a falta de fatos e o uso de fontes terceiras para especular a realidade do país. Exemplos: “teria sido”, “estaria”, “ficaria”. A trilha sonora é de suspense, para um sentimento de apreensão.

O início da matéria apresenta edições do jornal oficial da RPDC. A falta de fotos do líder na capa sugestiona sua ausência política e, portanto, seus problemas de saúde. Ao fazer isso, Álvaro Pereira Júnior concede a Kim Jong-un um caráter narcísico e personalista.

A primeira passagem do repórter tem a função primordial de ratificar o “mistério” que é a nação norte-coreana: “É um negócio impressionante, cheio de labirintos, ladeiras rolantes…”. Álvaro continua incitando a imaginação do telespectador à conjectura coreana quando diz: “Na saída, a gente tentou filmar alguma coisa, dei uma disfarçada ali…” enquanto é transmitido o vídeo feito por ele a partir de um dispositivo móvel. Contudo, na própria imagem é possível identificar uma equipe com câmera no local (6:20/6:22) – ou seja, a proibição, ao menos na área onde está, não é verdadeira.

O sociólogo francês Pierre Bourdieu aponta que o mundo da imagem é dominado pelas palavras e essas palavras fazem coisas, criam fantasias, medos, fobias ou, simplesmente, representações falsas (Bourdieu, p.26). A televisão seleciona o que faz parte da desordem do mundo (Charaudeau, p.18) e isso é feito com a Coreia do Norte quando a matéria explora a falta de informações sobre o país para criar um mundo fantástico, autoritário, onde seu líder assassina o irmão, tem dieta farta, “doença dos reis” e ainda obriga o jornal nacional a publicar suas fotos diariamente na primeira página.

O exotismo ao qual a Coreia do Norte é submetida constantemente evidencia questões problemáticas que assolam a imprensa no que se refere ao mundo oriental, ou às nações com experiências socialistas. A falta de conhecimento dos costumes e culturas milenares, o preconceito moralista, a xenofobia e, principalmente, a lógica do capitalismo central que rege a indústria midiática são alguns componentes dessa mistura. Meu objetivo com o texto, apesar disso, não é contra-argumentar essas características, mas apresentar uma análise do discurso televisivo, tão vazio do fazer jornalístico.

É importante apontar que, como acontece com muitas notícias não-ocidentais no Brasil, a matéria é baseada em fontes terceirizadas, como o site americano de entretenimento TMZ, fontes de fontes da CIA (sempre inacessíveis) e o Daily NK, que teria um infiltrado no país. Deve-se elucidar essa questão: quanto mais inacessível é a fonte, mais desconhecida é a sua motivação, ou conjunto de motivações, para entregar essa ou aquela informação. Dessa forma, jornalisticamente, a matéria não tem fôlego, mas se torna potente e eficaz na manutenção da ordem simbólica (Bourdieu, p.20). A figura caricatural de Kim Jong-un é consolidada com a participação de Anna Fifield, responsável por especular sobre sua saúde, seu peso, seus hábitos e até indicando, sem evidências materiais, o número de respirações por minuto do comandante.

À vista disso, o que a reportagem de Álvaro Pereira Júnior faz está muito longe do jornalismo, ao mesmo tempo em que cumpre a função de fabricar o estrangeiro: autoritário, alienado e malvado.

A televisão pode ocultar mostrando, mostrando uma coisa diferente do que seria preciso mostrar caso se fizesse o que supostamente se faz, isto é, informar; (…) construindo-o de tal maneira que adquire um sentido que não corresponde absolutamente à realidade (Bourdieu, p.24).

– 50% da população brasileira se informa pela TV (DataSenado)

– Em média, o brasileiro assiste de seis a sete horas de programação televisiva por dia (InsideTV/Ibope)

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Beatriz Aguiar é graduanda de Jornalismo pela PUC-Rio.