Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A providencial “sobrinha” de Tancredo Neves

Terminei a história anterior citando o famoso “não” de Figueiredo à repórter Sônia Carneiro, a Soninha, a quem meu marido chamava de “a intrépida”. E era mesmo. Com o seu destemor e irreverência, Soninha arrancou coisas dos políticos, que acabaram influenciando decisões importantes. Soninha, como se diz no jargão popular, ralava muito como única repórter da Rádio JB em Brasília, apesar do parentesco com a Condessa Pereira Carneiro, herdeira do complexo. Tancredo só a chamava de “minha sobrinha” e tinha por ela um grande afeto. Ouso dizer que Soninha deu o norte da campanha de Tancredo à Presidência. Repensando aquele período todo, Ulysses costumava dizer que nem a repórter tem a noção exata da sua própria contribuição para a transição democrática.

Vou tentar explicar a vocês como funcionavam as campanhas, em termos de comunicação dos candidatos com a sociedade. Cada qual no seu comitê, Maluf e Tancredo falavam diariamente com a imprensa, em horários determinados. Maluf falava sempre antes de Tancredo. Cada veículo dispunha de uma equipe para cobrir Maluf e outra para Tancredo. Soninha era uma só para cobrir os dois. Quando chegava ao comitê de Tancredo, já de língua para fora de tanto correr de um lado para outro, ela já ia contado o que Maluf havia falado e o fazia em forma de pergunta para o candidato da oposição. E era sempre assim: no dia seguinte, os jornais, invariavelmente, publicavam o embate verbal entre os dois candidatos. Soninha era o vaso capilar entre as duas candidaturas.

Mas o comando político da campanha de Tancredo, presidido por meu marido, não queria isso. Achava que Tancredo tinha que apresentar propostas objetivas do programa de governo e não ficar nesse bate-boca. Mas, só aqui entre nós, o programa de governo da Aliança Democrática era muito complexo, chato mesmo e, em muitos itens, burocraticamente árido. Tancredo preferia mesmo debater com Maluf. A pedido do pessoal da “Frente Liberal”, o conselho político anuncia uma decisão radical: a partir daquele momento, Tancredo não mais comentaria as declarações de Maluf. Até vocês que não viveram aquele período sabem que era praticamente impossível alguém botar rédeas num político com a biografia de Tancredo, o homem que amparou nos braços um presidente da República suicida, de quem fora ministro da Justiça aos 37 anos.

Foto oficial

Tancredo, para demonstrar obediência, avisou aos repórteres que havia sido proibido pelo comando de sua campanha de sequer pronunciar “o nome dessa pessoa”. Mas, na hora da coletiva, propriamente, eis que surge a intrépida repórter:

– Doutor Tancredo, o Maluf acaba de dizer que a sua candidatura só serve aos interesses dos especuladores do mercado financeiro, que lucram com a indefinição política da eleição.

Tancredo pulou da cadeira como se quisesse correr ao encontro de Maluf para tomar satisfação, mas se lembrou da decisão do comando da campanha e se “conteve”:

– Sou um fiel soldado da aliança que sustenta minha candidatura. O comando da campanha proibiu-me de responder a provocações do meu oponente. Mas, única e exclusivamente em homenagem a você, querida sobrinha, vou quebrar a regra para dizer que a candidatura de Maluf, por si só, já demonstra o caos a que chegamos.

E, partir de então, e até o final da campanha, Tancredo e Maluf ficaram nesse bate-boca. E tudo em deferência à “querida sobrinha”. E, assim, estabeleceu-se a luta do bem contra o mal. E do mal contra o bem. Só esse maniqueísmo para acalmar o povo que ficara plantado na rua por conta das “Diretas Já”.

A campanha de Tancredo, como se vê, não teve maiores percalços, apesar das fantasias que se criaram depois e que povoam até hoje mentes paranoicas. A esse respeito, aliás, Ulysses, certo dia, num encontro casual com o general Leônidas Pires Gonçalves, ministro do Exército escolhido por Tancredo, teve a curiosidade de perguntar:

– General, vira e mexe, leio uma notícia aqui, outra lá, de que Tancredo temia por golpes que poderiam impedi-lo de tomar posse. Que tinha montado um comitê de emergência para garantir sua fuga do Congresso no dia da posse, em caso de golpe. Comigo ele nunca falou disso. Ele falava disso com o senhor?

– Nunca! Isso é uma tola fantasia. Quem poderia estar contra o Tancredo, todos nós sabíamos. Mas o próprio Tancredo dobrou essa pessoa. Tudo isso é bobagem. Em nenhum momento a transição esteve ameaçada. Tivemos alguns problemas pontuais, mas provocado por terceiros – respondeu o general, sem, no entanto, dizer que a pessoa que resistiu inicialmente a Tancredo foi seu antecessor no cargo de ministro do Exército, o general Walter Pires, que acabou se tornando, como eu já disse aqui, interlocutor direto de Tancredo.

Um desses problemas pontuais a que se referiu o general Leônidas ocorreu quando o indicado, contra a vontade dos militares, para o Ministério da Aeronáutica, o brigadeiro Moreira Lima, a pedido de um fotógrafo, antes da posse, trocou a foto oficial do presidente da República pela do patrono da aviação, Santos Dumont. Figueiredo determinou a prisão do brigadeiro e mandou um recado a Tancredo: “Vá buscar seu ministro na cadeia”.

“Crise certa”

Parte dessa história já foi contada aqui neste jornal por um dos protagonistas do episódio, o senador Francisco Dornelles, testemunha mais do que credenciada da intimidade política de Tancredo Neves. Meu marido, a bem da verdade, nesse episódio, como de resto em todos os outros que envolveram militares, foi um mero espectador. Confesso que, nesse caso do Moreira Lima, Ulysses, sim, temeu pelo pior. Já Tancredo alternava momentos de preocupação com o de grande indignação pelo gesto infantil do brigadeiro que escolhera para comandar a Aeronáutica, contra a vontade da crepuscular ditadura, mas que, mesmo assim, era uma ditadura.

Moreira Lima sucederia a Délio de Mattos, de quem era inimigo. Quando seu nome foi confirmado, Délio mandou recado para Tancredo: “É crise certa”. No próximo encontro, eu conto como Tancredo saiu-se do imbróglio.

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[Jorge Bastos Moreno, de O Globo]