Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Viciados em rede

Jogos de RPG online estão criando uma legião de adolescentes dependentes e levando à especialização do atendimento psicológico e psiquiátrico no Brasil. Fenômeno recente, esse tipo de vício fez também com que clínicas para dependências químicas (como álcool e tabagismo) se adaptassem para tratar a nova patologia. A Associação Americana de Psiquiatria chegou a considerar a inclusão do vício em videogames na nova e quinta versão do DSM (Manual de Diagnósticos e Estatísticas), mas decidiu que ainda não há evidências suficientes.

Não é raro, porém, que psiquiatras e psicólogos deparem com casos de adolescentes e adultos jovens com graves consequências em suas vidas por causa do uso excessivo dos jogos. Pesquisas também mostram semelhanças entre os jogos online e os de azar, como bingos. Entre os jogos de videogame, aqueles que têm o maior potencial de criar dependência são conhecidos como MMORPG (massively multiplayer online roleplaying game). Traduzindo: diversos participantes se aventuram em desafios e simulações de guerras (para citar um dos cenários do RPG) de forma intensa, por muitas horas ou até dias seguidos.

O poder viciante desses jogos tem a ver com suas características: não há game over; o sucesso depende das horas investidas; e os desafios requerem um grupo de jogadores (para lutar contra o próprio jogo ou contra outras equipes), o que os torna responsáveis pelo time e os desestimula a deixá-lo.

Exaustão e desidratação

Há também um sistema de recompensa pelos desafios enfrentados e a interação entre os jogadores acaba funcionando como rede social. “Muitos dos pacientes contam que o mais legal é a interação com os colegas no jogo. Dizem se sentir mais valorizados, queridos e eficazes no jogo do que em casa ou na vida”, diz Cristiano Nabuco, pesquisador na área de dependência em internet do Instituto de Psiquiatria da USP.

A psiquiatra Analice Gigliotti, chefe do setor de dependências químicas da Santa Casa do Rio de Janeiro e médica do Espaço Cliff, conta que começou a tratar dependentes de tabaco há 20 anos, mas há pouco tempo teve de aprender a lidar com os jogadores compulsivos. “A internet é a dependência da vez, com um uso cada vez mais distribuído. Nela, os jogos online são os mais perversos”, afirma. Além do Rio, há serviços especializados em dependências tecnológicas em São Paulo e Porto Alegre. Psiquiatras e psicólogos que tratam de transtornos do impulso também têm lidado mais e mais com jogadores online.

Em outros países, o problema é mais discutido e também mais grave: Coreia do Sul, China e Estados Unidos têm casos de mortes de jovens em decorrência de dias ininterruptos de jogos. Nos EUA, no início do mês, um garoto de 15 anos foi hospitalizado por exaustão e desidratação após jogar “Call of Duty” por quatro dias inteiros. Serviços especializados em jogos online também são mais numerosos e existem desde 2006 na Europa. Na Coreia do Sul há até um acampamento de “desintoxicação” de jogos para meninos, onde eles fazem atividade física e reaprendem a brincar.

Canal de comunicação

A tendência, dizem especialistas, é que o problema comece cada vez mais cedo, até porque já há redes sociais com jogos para crianças e o uso de eletrônicos é estimulado pelos próprios pais. “Sempre se pensou que era um passatempo inofensivo. Mas começamos a ver uma situação curiosa nas famílias: o problema estava dentro do quarto dos adolescentes, enquanto os pais achavam que assim estavam seguros”, afirma Daniel Spritzer, psiquiatra e coordenador do Grupo de Estudos de Adições Tecnológicas, em Porto Alegre.

É o caso de Julio (nome fictício), de 18 anos, do Rio de Janeiro. Sua mãe, que também preferiu não se identificar, percebeu que o simples gosto por jogos eletrônicos havia se tornado um vício quando o filho parou de estudar e perdeu o interesse em sair de casa. “O problema piorou aos 15 anos. Se eu pedia para ele sair do computador, começava a briga. Ele mentia dizendo que ia dormir, mas ficava jogando. O que mais doeu foi o afastamento da família. Não sabia mais o que fazer.”

Ela conta que a coisa piorou de vez quando ele repetiu de ano e começou a colocar dinheiro na conta de outra pessoa para que seu personagem no jogo ficasse mais poderoso. A solução foi buscar tratamento em uma clínica privada, no início do ano. “Ele não está 100%, mas já melhorou muito. Faz terapia e usa remédio para controlar a compulsão”, diz a mãe.

Segundo Analice Gigliotti, é importante que os pais busquem ajuda porque esse comportamento pode se arrastar e atrapalhar durante toda a vida. Quanto à abordagem, Spritzer diz que os pais precisam se aproximar do filho sem recriminá-lo para abrir um canal de comunicação. “Não adianta virar policial do filho. A ideia do tratamento é reaprender a usar o computador e colocar outras atividades no lugar.”

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[Mariana Versolato, daFolha de S.Paulo]