Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O câncer em metástase do jornalismo

Convencionou-se chamar de sensacionalismo o “uso e efeito de assuntos sensacionais, capazes de causar impacto, de chocar a opinião pública, sem que haja qualquer preocupação com a veracidade” (dicionário eletrônico Houaiss). E não é somente isso. O sensacionalismo assumiu papel imprescindível na imprensa mundial quando os fatos passaram a ser menos importantes que o impacto causado por eles. A propagação dos acontecimentos ganhou como requintes o impacto, o alarde e o desespero. Parece não haver mais remédio e contenções para esta enfermidade visceral e infecciosa que ameaça o verdadeiro jornalismo, mascarada de defensoria pública, mas revestida de uma hipocrisia sem igual, repouso ignóbil do interesse por altos níveis de audiência.

Não é possível contar quantos programas de rádio e televisão neste país ocupam seus horários, baseados na figura de um apresentador, jornalista ou não, utilizando-se das formas mais grotescas e vis para manter uma audiência maculada de sangue, assassinatos, miséria, falsa preocupação, propagação do caos. Assim vivem os sensacionalistas. A eles não incomoda o fato de mostrar sangue ao meio-dia na TV, não lhes atormenta a consciência usufruir de um mendigo em deplorável estado de miséria para exibir em cores fulgurantes sua reabilitação através do programa; para os sensacionalistas, a dor deve ser exibida sem anestésico, a morte sem disfarce e brutal, o sofrimento explícito da tela para os olhos dos telespectadores.

Isso não é problema apenas do jornalismo brasileiro. Pelo mundo há casos inacreditáveis do que se pode fazer para alcançar a atenção do público. Mas no Brasil o que surpreende é a audácia desmedida dos sensacionalistas ao cobrirem um acontecimento. Não faz muito tempo, uma jornalista de São Paulo conseguiu conversar com um sequestrador no cativeiro através de celular; na Bahia, ao meio-dia – é preciso selecionar com cuidado os canais de televisão para não se assustar ou perder a fome diante da ostentação de cadáveres e poças de sangue; o horário do final da tarde se transformou em espaço ideal para os programas policiais que, se por um lado desempenham o importante serviço de procura a criminosos, por outro reavivam a descrença no Estado de Direito, nas autoridades, disseminando o caos final da sociedade.

Indiferença do senso crítico

Ater-se aos fatos. Este é um principio louvável do jornalista que dimensiona o impacto de acordo com o acontecimento, desconsiderando qualquer propagação excedente ao assunto e evitando exasperações que comprometeriam a cobertura imparcial e veraz da situação. Isto não tem acontecido e preocupa. Basta acontecer um evento de grande choque, como em Santa Maria, RS, para surgirem, dos mais recônditos poços do esquecimento – numa ascensão propulsada pela intensidade da dor nacional –, aqueles mesmos jornalistas que outrora falavam sem ânimo dos assassinatos e notícias de segunda e terceira escala do agendamento.

O câncer em metástase, para os animais, é a eminência da morte. Dizer que o jornalismo verdadeiro está à beira da morte consiste um sensacionalismo execrável, além do que não seria justo punir com a mesma palavra os honrados jornalistas desta terra, ainda que a situação não seja favorável. Mas percebendo como se multiplicam esses programas no rádio, na TV e inclusive nos jornais, o panorama começa a assustar. Enquanto o senso crítico estiver mergulhado na indiferença causada pelo sensacionalismo, ferindo de morte a razão e a consciência dos consumidores de notícias no Brasil, a enfermidade continuará se espalhando até um ponto crucial definido pelo abandono dessa funesta prática ou pela sua manutenção – ponto final de uma história chamada jornalismo-verdade.

***

[Mailson Ramos é estudante, Salvador, BA]