Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O menino da Rocinha e a pauta social

Na era da informação descentralizada e do novo paradigma emissor-receptor, o papel de moldar o debate público sai do vertical para o horizontal. E aí, quem vai colocá-lo na pauta? Vivemos uma época de crise. Uma crise de representação. Há décadas, pensadores como Jean Baudrillard, Zygmunt Bauman e François Lyotard já previam essa crise para o ambiente vivenciado pela nossa, já adulta, Geração Y. Aqui no Brasil, um dos primeiros a identificar esse cenário foi Muniz Sodré. Em sua obra A máquina de Narciso, lançada há 24 anos, ele cita um exemplo que poderia muito bem ter sido extraído na noite passada. Uma pesquisadora, ao indagar a um engraxate morador da Rocinha sobre o que ele gostaria de ver na televisão, recebe como resposta um simples: “eu”.

Apesar de usado em outro contexto por Sodré, esse pequeno relato expõe a distância entre a mídia corporativista dos dias atuais e o cidadão. Mesmo em municípios minúsculos, como é o caso de Artur Nogueira, no interior paulista (a cerca de 150 km da capital), a preocupação comercial e política dos meios de comunicação consegue fazer a imprensa deixar de lado o aprofundamento de questões sociais e o engajamento dos cidadãos em prol de uma mudança na realidade local (um artigo sobre o assunto chegou a ser apresentado no Unasp).

Se a situação é assim em lugares menores, imagine em um contexto de mídia globalizada – marcada por grandes corporações interligadas e obtendo quase um monopólio do acesso à informação.

Não quero aqui – parafraseando o apóstolo Judas – blasfemar contra tudo o que é imprensa. Nestes novos tempos, cercados por meios de comunicação interativos digitais, é incabível a visão de uma mídia onipotente, capaz de controlar e organizar todos os fluxos sociais do planeta. Ela ainda é muito poderosa, ainda pauta boa parte do nosso cotidiano e atua de modo central no regime tecnovisual da indústria consumista, porém sofre para acompanhar as novas redes de comunicação e abre espaço – apesar de pequeno – para conteúdos inovadores e revolucionários.

O caminho não é unilateral

É errôneo também o desejo de imputar aos grandes veículos de comunicação, as mega corporações, o dever – quase cívico – de um papel pedagógico de compreensão e descoberta. Não adianta clamar a Abraão, como fez o rico: “Molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua.” Já dizia Jesus, “Está posto entre nós e vós um grande abismo.” Enquanto vocifera palavras ao léu contra o “Império do Mal” – a “temível” grande imprensa –, o meio alternativo fica no escanteio.

No paradigma atual, a figura de uma mídia formadora no esquema vertical é quebrada por um horizonte multifacetado – uma verdadeira teia de aranha. Se a demanda atual é a do “todos-todos”, por que não pensar em uma mídia alternativa formadora, capaz de suscitar o debate social – uma releitura do agenda setting de McCombs e Shaw? Considerando o caráter corporativo da grande mídia, por que não pensar na expressão cultural e de identidade contida nos jornais e rádios comunitários espalhados – e reprimidos – ao redor do Brasil?

Uma pauta midiática onde aquele rapaz da favela da Rocinha possa se ver representado não cabe em uma visão instrumental dos meios de comunicação e de suas funções. É por meio da imprensa alternativa, ou ao menos começando por ela, que os debates podem fugir da agenda política e econômica dominante migrando para o social. Como ponderou Sodré, na sociedade atual, aquilo que incomoda, que é estranho ao estamento dominante (chamado por ele de “grotesco”), não consegue fazer parte da pauta pública, sendo renegado à Quiriate-Arba, antiga cidade de refúgio israelita para onde iam assassinos nos antigos tempos bíblicos.

Cabe a você, mídia, a nós, mídias, fazer o impossível. Dar voz àquele menino da Rocinha. Aquele que disse “eu”.

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Guilherme Cavalcante é estudante de Jornalismo