Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

García Márquez, jornalista esportivo

Uma grata surpresa aguarda quem ler o final do segundo capítulo do livro de memórias Viver para contar, do escritor colombiano e Prêmio Nobel de Literatura Gabriel García Márquez.

Ei-la.

“Finalmente, no sábado da semana seguinte, quando entrei em nosso cubículo do El Heraldo às 5 da tarde, Alfonso Fuenmayor nem levantou os olhos para terminar o editorial. ‘É melhor apressar seus assuntos, professor’, disse-me ele, ‘que semana que vem Crónica chega às bancas.’

Não me assustei porque já tinha ouvido a frase em duas ocasiões anteriores. No entanto, a terceira foi à vera. O maior acontecimento jornalístico da semana – com uma vantagem absoluta – tinha sido a chegada do jogador brasileiro de futebol Heleno de Freitas para o Deportivo Junior, mas não iríamos tratar do assunto competindo com a imprensa especializada, e sim, como sendo uma notícia de grande interesse cultural e social. Crónica não se deixaria engessar por esse tipo de diferença, e menos ainda tratando-se de algo tão popular como o futebol.

A decisão foi unânime e o trabalho eficaz. Tínhamos preparado tanto material durante a espera que a única coisa que entrou de última hora foi a reportagem sobre Heleno de Freitas escrita por Germán Vargas, mestre do gênero fanático por futebol. O primeiro número apareceu pontual nas bancas no sábado, 29 de abril de 1950, dia de Santa Catarina de Siena, escritora de cartas azuis, na praça mais bela do mundo. Crónica foi impressa com um lema criado por mim debaixo do nome: ‘Seu melhor weekend’. Sabíamos que estávamos desafiando o purismo indigesto que prevalecia na imprensa colombiana daqueles anos, mas o que queríamos dizer com o lema não tinha um equivalente com os mesmos matizes na língua espanhola. A capa era um desenho a tinta de Heleno de Freitas feito por Alfonso Melo, o único retratista de nossos três desenhistas.

A edição, apesar da pressa de última hora e da falta de publicidade, esgotou-se muito antes que a redação em peso chegasse ao estádio municipal no dia seguinte – domingo, 30 de abril – onde se disputava o clássico entre Deportivo Junior e Sporting, ambos de Barranquilla. A própria revista estava dividida porque Germán e Álvaro torciam pelo Sporting, a Alfonso e eu pelo Junior. No entanto, o nome de Heleno e a excelente reportagem de Germán Vargas sustentaram o equívoco de que Crónica era finalmente a grande revista que a Colômbia esperava.

O estádio estava lotado até o topo. Aos seis minutos do 1º tempo, Heleno de Freitas fez o seu primeiro gol na Colômbia, com um tiro de esquerda do meio de campo. Embora o Sporting tenha acabado vencendo por 3 a 2, a tarde foi de Heleno, e depois foi nossa, pelo acerto da capa premonitória. Não houve, porém, poder humano ou divino capaz de fazer o público entender que Crónica não era uma revista esportiva, e sim, um semanário cultural que homenageava Heleno de Freitas como sendo uma das grandes notícias do ano.”

Vale lembrar que o Brasil estava longe na época de ganhar sua primeira Copa do Mundo, em 1958, assim como García Márquez de publicar seu primeiro livro. Mas é evidente o carinho e admiração dos colombianos e seu maior escritor pelo futebol brasileiro, na tradução sempre ótima de Eric Nepomuceno para a editora Record. Um outro escritor colombiano mais recente, por exemplo – e do qual não lembro, infelizmente, o nome agora – escreveu uma crônica saborosa de um aluno que chamado ao quadro, da sala de aula, para falar de Sócrates, proferiu uma louvação do ex-jogador do Corinthians.

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Crônica esportiva é um circo

Desde o final do século passado, quando a TV Globo escancarou as portas da crônica futebolística brasileira começando pelo técnico Rubens Minelli e pelo ex-jogador Gerson, o setor virou um circo com extensão no jornalismo esportivo em geral. Na época, ninguém deu muita bola para os protestos das associações de cronistas esportivos brasileiras, da mesma forma que nunca a Globo e demais grandes meios de comunicação do país têm o mínimo respeito com os sindicatos e associações da classe jornalística.

Assim, era de se esperar que nesta Copa a coisa continuasse mas nunca se imaginaria que a ponto da Folha de S.Paulo, por exemplo, lançar o empresário Pão de Açúcar, Abílio Diniz, como o novo entendedor de bola da parada. Junto com ele e, claro, com acesso pleno aos jogos do Mundial nos estádios, o que nunca foi possibilitado à população em geral, apresentar-se-ão, em outros meios, os comentaristas e repórteres futebolísticos Rafinha Bastos (que eu não sei até hoje o que é), Marcelo Tas e uma penca de ex-jogadores, inclusive estrangeiros, onde se destaca o também técnico Passarela e até alemães, como Lothar Matheus. Falarão em português?

Pode-se fugir do Galvão, mas vai ser difícil escapar do resto.

Aliás, por que nenhuma emissora chamou até agora para comentar também a Copa seu grande realizador: o ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, que já voltou clandestinamente ao país para comemorar seu aniversário na mãe pátria? João Havelange não dá, está impossibilitado. (Z.B.S.)

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Zulcy Borges de Souza é jornalista