Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

De costas para o campo

Em princípio, o emprego poderia parecer o melhor do Brasil. Os deveres incluíam comparecer aos jogos da Copa do Mundo e ficar próximo à ação que prende a atenção de dezenas de milhões de pessoas por todo o mundo.

Quem conseguisse o emprego estaria presente na história do futebol, enquanto aos outros restaria checar o placar em seus telefones celulares e conferir as jogadas em telas de computador.

Mas há um detalhe desagradável nesse emprego: é proibido assistir ao jogo, mesmo que por um minuto.

Aliás, não é permitido sequer olhar para o campo.

Dá pena dos guardas de segurança da Copa do Mundo, essas almas sofredoras, incumbidas de manter a ordem nos estádios vibrantes observando atentamente as arquibancadas.

Independentemente de quem vença a Copa do Mundo deste ano, esses guardas talvez componham as poucas dezenas de pessoas no Brasil que não veem os jogos.

"Se eu noto que eles estão acompanhando o jogo, sou obrigado a lhes fazer uma advertência", disse Karlo Saltoris, coordenador de segurança na Arena das Dunas, o estádio em Natal. "O trabalho deles é manter as escadas e saídas de emergência desobstruídas."

Como um caçador

Com uniformes alaranjados berrantes, os guardas ficam de sentinela no campo, com os braços cruzados atrás das costas, e desviam o olhar do gramado onde astros como Messi, Xavi e Neymar chamam a atenção de todo o planeta.

Estádios em outros países têm guardas como medida de segurança. Mas os campos nas 12 cidades-sedes da Copa do Mundo no Brasil são palcos maiores e mais chamativos do que os demais. Os guardas que atuam nos campos de futebol são como amantes de arte forçados a andar de olhos vendados no Louvre.

Alguns seguranças admitiram, sob a condição de manter o anonimato por medo de perder o emprego, que de vez em quando conseguem ver os jogos de relance. Um guarda foi visto com a cabeça virada e uma expressão tensa quando o herói brasileiro Neymar fez o gol da vitória contra a Croácia.

"É possível ver um pouquinho dos jogos", disse um segurança em Natal antes da partida. "De vez em quando, é preciso virar-se ligeiramente, caso a bola venha em sua direção."

Mas para Saltoris, homem com postura militar e um rádio transmissor que chia sem parar, uma bola voando na Copa do Mundo não é desculpa para seus guardas negligenciarem suas funções.

"Mesmo que a bola os atinja, eles devem ficar impassíveis", disse. "E, caso se machuquem, temos paramédicos para cuidar deles."

O manual de Regulamentos de Segurança Pessoal e em Estádios da Fifa deixa isso bem claro. O Código de Conduta dos Funcionários não abre exceção no caso do "jogo bonito". "Os funcionários não são empregados ou contratados para assistir ao evento", afirma o manual. "Eles devem se concentrar o tempo todo em seus deveres e responsabilidades."

O Brasil tem sido amplamente criticado pela desorganização nos preparativos para o evento. Protestos e manifestações contra o dinheiro gasto na Copa do Mundo ameaçaram prejudicar os jogos.

Houve algumas falhas de segurança nas primeiras partidas. Poucos dias após o início da Copa, cerca de 30 torcedores sem ingressos empurraram os guardas e entraram no estádio do Rio de Janeiro. Em um vídeo feito com telefone celular, guardas de segurança aparecem desamparados ao lado dos portões arrombados.

Mauricio Vargas, voluntário de 26 anos que coordena os ônibus de traslado diante do estádio em Fortaleza, comentou que por dinheiro algum ele trabalharia de costas para o campo. Ele sabe que isso o privaria de testemunhar momentos históricos.

"O coordenador fica nos observando como um caçador", disse ele, erguendo um rifle imaginário na altura dos olhos.

Antes de um jogo, Vargas disse que negligenciaria seus deveres se necessário, sem se importar com as consequências. "Hoje vou dizer aos coordenadores que verei esse jogo", afirmou ele. "Não me importo se eles discordarem. Vou ver o jogo, custe o que custar."

Situação cruel

Os seguranças que ficam nas arquibancadas superiores têm mais sorte, pois pelo menos ficam de frente para o campo, embora enxerguem os jogadores apenas como borrões coloridos tremeluzindo em um vasto oceano verde.

"Esse é um bom emprego, pois é possível assistir ao jogo e ser pago", disse um guarda no nível superior.

Diga isso aos guardas obrigados a ignorar o campo, cuja situação é tão cruel que faz pensar no mito grego de Tântalo. Os deuses obrigaram Tântalo a sofrer fome e sede eternas. Ele ficava sob uma árvore com frutos pendendo para baixo, mas sempre fora de seu alcance, e toda vez que tentava tomar água o lago recuava.

Ele é a raiz da palavra "tantalizing", ou "tentador" em português. Certamente os guardas de segurança na Copa do Mundo a conhecem.

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Andrew Keh e Sergio Peçanha, doNew York Times