Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

As nuances de um jornalista ‘abutre’

“O Abutre” bem que poderia creditar o argentino “Abutres” como inspiração. Em ambos os casos, alguém busca se aproveitar de acidentes. No filme argentino, de Pablo Trapero (2010), um advogado é o abutre em questão. No americano, de Dan Gilroy (também roteirista), trata-se de um cinegrafista.

Explicando melhor: no início, Louis Bloom (Jake Gyllenhaal) vive de expedientes como roubo de ferragens para sobreviver. Mas, ao cruzar com um acidente de trânsito, vislumbra novas possibilidades, caso consiga imitar o sujeito que, ali, busca imagens espetaculares para a televisão.

Bloom vai nessa: apesar do equipamento amador, começa a perseguir acidentes. Como consegue mostrar o que há de mais repugnante, ganha a confiança da produtora de um programa de notícias, Nina (Rene Russo), numa emissora de Los Angeles.

O público também parece apreciar. A audiência melhora, o preço das reportagens sobe, Louis consegue melhores equipamentos. O negócio prospera, e o filme também, porque ele não é apenas um cinegrafista. É um empreendedor.

Evidentemente, trata-se de um homem sem escrúpulos, embora comum –em mais de um sentido. A interpretação de Gyllenhaal, notável, dá conta do personagem, em especial pelo trabalho facial: os olhos atentos, ligeiramente melancólicos, mas nunca entregues, aptos a conquistar.

Suas palavras não desmentem o que o rosto diz, apenas explicitam: pode ser humilde, bajulador e chantagista, se preciso. “O Abutre” é a história de um homem talhado para o êxito. O mundo da mídia apenas facilita as coisas.

Se deve algo ao “Abutres” argentino, o filme americano firma sua personalidade. É mais profundo na observação dos seres e dos costumes e impõe-se, enfim, como uma ação, capaz de fugir do rame-rame do gênero com a mesma desenvoltura com que arma uma cena de perseguição.

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Inácio Araujo é crítico de cinema da Folha de S.Paulo