Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

A batalha de Itararé

Toda a movimentação de Hugo Chávez para tentar agitar militarmente a América do Sul, depois do ataque agressivo da Colômbia, apoiada pelos Estados Unidos, ao Equador, em busca de guerrilheiros – apoiados tanto por Chávez, como pelo presidente equatoriano, Rafael Correia – deu no repeteco da Batalha de Itararé, a que não houve, como ironizou o jornalista e humorista Aparício Torelly, que se auto-denominou, depois da sua sacada engraçadíssima, de Barão de Itararé.

O jornalista Marcone Formiga, editor da revista semanal brasiliense Brasília Em Dia, homenageou o barão, ao destacar, na capa da revista, ‘A batalha de Itararé’, em cômica ilustração de William. Escracho para mostrar como os acontecimentos se dão na América do Sul, dominada por ditadores e democratas com pendores ditatoriais, disponíveis pelo modelo democrático em curso, que, por enquanto, balança, mas não cai.

As forças do desequilíbrio agiram para evitar a catástrofe, dando razão ao comentarista e psicanaliista freudiano Tostão: ‘Nada mais chato que um jogo entre duas equipes excessivamente equilibradas. Uma anula a outra. Viva o desequilíbrio com equilíbrio.’ Não há equilíbrio na natureza, que está sempre mudando, como igualmente o desequilíbrio é o toque de Midas da política em face dos antagonismos sociais. O que ficou evidente na palhaçada sul-americana foi que as motivações profundas da crise não vieram à tona, mostrando que a grande mídia é, realmente, cultora do disfarce e da mentira.

Que seria da China sem Brasil?

As motivações reais estão óbvias, mas o óbvio ululante, como disse Nelson Rodrigues, não é visto porque não interessa a sua emergência como fator grotesco, implacável e didático. A revista mensal da Confederação Nacional da Indústria – que dá um balanço completo da evolução dos fatos econômicos e políticos com muita competência – mostrou a obviedade. Na sua última edição, de fevereiro, ela evidenciou o que os jornais em geral não levaram em consideração, isto é, o que realmente está em jogo na recente crise política e econômica na América do Sul: a união sul-americana. Ficaram no acessório, deixando o essencial de lado.

A região amazônica que permeia os sete países sul-americanos – Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela e Guianas – representa um PIB de 572 bilhões de dólares, construído pelo trabalho de 176 milhões de pessoas. O presidente Sarkozi não veio recentemente à região à toa, nem está brincando quando diz que quer intermediar a distensão entre guerrilheiros e governo colombiano. Não quer a eternização do fato de que a América do Sul continue sendo o quintal dos Estados Unidos, com a mídia conservadora sul-americana batendo palmas.

As riquezas minerais, energéticas, alimentícias e a biodiversidade clamam pela união para implementar a infra-estrutura econômica capaz de transformar a América do Sul numa potência mundial, superior à Europa e a China. Afinal, ambas dependem, para sobreviver, dos insumos que a América do Sul possui. A integração econômica em torno dos interesses continentais, evidencia a revista, daria a verdadeira dimensão do problema. Mas, as forças contrariadas venceram na tarefa de dividir para reinar.

O que seria a China se não fosse, agora, os minérios, os alimentos e a energia brasileiros, que seguram e ampliam o valor das ações das empresas do setor, girando o mercado de capitais, apesar da crise na bolsa dos Estados Unidos?

Conceitos invertidos

Seria fortuito que, no compasso da sobredesvalorização do dólar, os preços dos produtos primários estejam se sobrevalorizando, como forma de compensação? A prova é a disparada do preço do petróleo, apesar de a demanda global sinalizar recessão nos Estados Unidos, mergulhados em crise monetária. Tal crise diria alguma coisa na recente Batalha de Itararé sul-americana?

Seria conveniente para o dólar ter à sua frente uma moeda sul-americana ancorada em riquezas reais, que se sobrevalorizam? A grande mídia deixou esse assunto desvalorizado nas páginas que cobriram a batalha que não houve. Sobredesvalorizou as riquezas concretas e sobrevalorizou os fatores diversionistas na forma de excessiva ênfase nos personalismos. Estes, e não os fatores históricos, em sua interatividade dialética, determinantes dos acontecimentos, mereceram os destaques principais. Atingiu seu objetivo: confundir para evitar esclarecimento.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em recente encontro do PSDB, disse que se inverteram os fatores que determinaram o desenvolvimentismo ocorrido dos anos de 1950 em diante. As matérias-primas não valiam nada, enquanto os produtos industrializados, detentores de patentes, ciência e tecnologia aplicadas à produção, subiam de preço, impondo, naquela ocasião, na relação capitalista entre o centro e a periferia, deterioração nos termos de trocas em favor do primeiro e prejuízo para a segunda. Agora, na inversão, a deterioração dos termos de troca trabalha em favor dos detentores das matérias-primas e da industrialização ainda incipiente em marcha. Essa evidência, no entanto, não pode ser destacada para não elevar o grau de conscientização política na América do Sul.

A riqueza real vai se impondo frente à moeda norte-americana, afetada pelos excessivos déficits, que levam o mercado financeiro a desfazer-se dela, como mostra o movimento monetário global neste momento. Evidentemente, a discussão em torno da união sul-americana fortaleceria os propósitos sul-americanos em busca da valorização de suas riquezas reais em meio a um contexto onde se inverteu o conceito de riqueza. Mas, para preponderar tal linha de ação política, a união sul-americana, que eliminaria divisões políticas radicais internas, teria que falar mais alto. No entanto, tenta-se fazer valer conceitos invertidos que a história econômica está rompendo, sob o silêncio calculado da grande mídia.

Ideologia utilitarista

O poder midiático se apega ao poder monetário ancorado no dólar sem lastro que se esvai. A emissão de papel moeda, que se tornou o padrão monetário depois da crise de 1929 para substituir o padrão ouro do século 19, detonado pelo equilibrismo macroeconômico pregado pela economia clássica, voltou-se contra si mesma, mostrando que o poder norte-americano ancorado na ficção monetária vai dando lugar a uma nova correlação de forças, cuja emergência a mídia conservadora cuida de evitar o quanto pode.

O excesso das emissões, que colocou no centro do sistema a especulação como forma de reprodução do capital, a fim de compensar os desequilíbrios decorrentes da insuficiência de consumo que a sobreacumulação de capital provoca, principalmente na periferia capitalista, leva o sistema monetário, apoiado no dólar em processo de sobredesvalorização, a perder utilidade, paulatinamente, enquanto eleva a utilidade da riqueza real, tanto a existente na América do Sul, como em terras árabes.

Para que falar disso tão fortemente, se interesses contrariados, com apoio no poder midiático, dançariam?

A desvalorização do dólar, que vai se transformando em fonte inflacionária, no cenário global, em contraposição à sobrevalorização dos preços das commodities – petróleo, alimentos, energia – que sinaliza poder dos seus detentores, especialmente os países sul-americanos da região amazônica – evidencia que a moeda sul-americana entra na dança da ideologia utilitarista, na medida em que perde utilidade o fetichismo monetário dolarizado, tendente a deixar de ser equivalente universal.

Mídia conservadora e reacionária

A fragilidade do dólar capa-lhe seu poder de referência internacional para se transformar em inflação potencial. Os árabes, por exemplo, que importam alimentos cotados em euros, já estão sob pressão inflacionária do dólar. Outros importadores da Europa, igualmente. Já-já, a situação fica ruim para quem tem reservas excessivas em dólar que se sobredesvalorizam, enquanto a visão política periférica – brasileira, em destaque – se mantém graças ao trabalho da grande mídia, alienada relativamente às suas próprias mercadorias que se sobrevalorizam, ganhando vantagem competitiva. Perdem tempo e dinheiro ao não valorizar o próprio patrimônio.

Não foi isso que levou os árabes a formarem a Opep? A união sul-americana, por meio da integração econômica, destaca a revista da CNI, colocaria a América do Sul em destaque no palco internacional. Não está lá ainda porque tem uma classe política entreguista orientada por uma mídia que trabalha contra a união sul-americana, vendo fantasmas na proposta de banco central sul-americano, moeda sul-americana, parlamento sul-americano, segurança continental sul-americana etc. Bate palma para a União Européia – expressa no poder do euro em ascensão frente ao dólar – mas descasca a união sul-americana. Tremenda coerência subalterna.

Se essa discussão estivesse adiantada nas páginas dos jornais, colocando em confronto os pontos de vistas diversificados, em atendimento ao bom jornalismo, representaria, naturalmente, antídoto contra as guerras internas. Estas, naturalmente, existem e tendem a prosperar porque, internamente, as forças políticas nos países sul-americanos, ao contrário do que ocorreu com as forças políticas européias, ainda não pensam e agem politicamente em termos geoestratégicos, dadas as divisões de classe, nos planos nacionais, que se debatem ideológica e histericamente, no compasso da ideologia conservadora e reacionária da grande mídia.

Distensão estava no ar

Foi muito boa a ironia, destacada pela imprensa argentina e colocada no ar pela presidente Cristina Kirchner: ‘Ainda ficam dizendo que são as mulheres as histéricas.’ A histeria, conforme destaca Freud, é um estado de espírito que se desenvolve no exterior da realidade, na medida em que foge desta para construir um mundo à parte, desvinculado do real concreto em movimento.

A invasão da Colômbia sobre o Equador é, na prática, uma histeria sul-americana, bem programada, animada, disfarçadamente mas com fervor, pelo poder midiático conservador. Como reconheceu o presidente colombiano, Álvaro Uribe, ela foi planejada e não comunicada ao presidente do Equador, Rafael Correia, para não atrapalhar os planos colombianos. Como, nos dias imediatamente anteriores à invasão, encontrava-se na Colômbia o contra-almirante Joseph Nimmich, diretor da força área conjunta interagencial do sul dos Estados Unidos, evidentemente, as coisas ficam mais claras sobre o verdadeiro comando da ação terrorista patrocinada por Uribe-Nimmich-W. Bush.

Os democratas – Uribe e W. Bush – viraram guerrilheiros terroristas, promovendo a invasão, e os terroristas – Farc e seus apoiadores, Chávez e Correa – democratas, pregando contra os invasores. Não apenas a invasão foi planejada, mas igualmente, a desculpa pela invasão, logo em seguida. Não houve improvisação, como não destacou a grande mídia.

Destaque-se ainda algo não destacado pelo poder midiático com pendores norte-americanos: o clima de guerra inexistia no momento do ataque. Pelo contrário, avançava uma situação que não era do agrado da grande mídia, isto é, do governo norte-americano e das forças internas colombianas favoráveis ao armamentismo da Colômbia para lutar contra os guerrilheiros e seus apoiadores. A distensão política – e não a guerra – estava no ar.

Ojeriza a Chávez

Isso ficou comprovado com a entrevista de Luís Eládio Pérez, refém colombiano libertado pelas Farc, dada ao repórter Rodrigo Craveiro, do Correio Braziliense, na terça-feira, 04/03. Eládio destacou o clima distensionista e creditou tal clima à ação política de Hugo Chávez. A quem interessaria esse clima e a quem não interessaria?

A invasão ditatorial colombiana, no momento em que a distensão avançava, comprovou que os interessados na não-distensão não são Chávez e Correa, mas Uribe e Bush. Estes se uniram simultaneamente ao processo de distensão para romper a corda, invertendo o clima, tornando-o irrespirável.

Em território equatoriano, Raul Reyes estava preparando a guerra, segundo os analistas Uribe e W. Bush, ou a distensão em marcha, segundo os próprios reféns que participaram da movimentação por dentro dos acontecimentos?

O que fez a grande mídia diante dessa dicotomia nas escaramuças da guerra? Relevou o fato essencial a segundo plano e priorizou o acessório, o personalismo chavista e sua ojeriza a Chávez.

O ditador e o democrata

Alon Feurweker, editor de política do Correio Braziliense, em comentário excelente na segunda-feira, 03/03, ressaltou o essencial: não foram as forças externas que estimularam o aparecimento e o prolongamento das Farc – no caso, Venezuela e Equador, que se destacaram na tarefa de intermediar a libertação dos reféns, distensionando o clima político, como destacou o colombiano Eládio Pérez no cenário sul-americano. Inversamente, foram as forças internas, colombianas, apoiadas pelos interesses norte-americanos, os que botaram fogo no paiol.

Tais forças, historicamente, resistiram à distribuição do poder político no país ao longo do processo de redemocratização do continente, depois dos anos de 1980, quando os Estados Unidos mudaram o discurso de apoio às ditaduras, passando a apoiar a democracia. Se houvesse na Colômbia, como também na Venezuela, distensão dos conflitos internos, como houve no Brasil pós-ditadura militar, com a anistia jogando todos os grupos e tendências para o processo eleitoral, não haveria razão para a guerrilha existir. A resistência à democracia para todos está na raiz do conflito, como bem assinalou Alon.

O que se viu nos editoriais? O mais do mesmo: ênfase no personalismo, não na história. Visão unilateral, mecanicista. O mecanicismo midiático conveniente continuou considerando ditadores o presidente da Venezuela e seus aliados, os presidentes do Equador e da Bolívia, Correa e Morales, enquanto o verdadeiro ditador foi considerado democrata: o presidente da Colômbia.

Verdade ou mentira?

Chávez, evidentemente, caiu na armadilha da guerra, dando uma de tresloucado com suas tropas quando era hora do discurso de estadista. Pregou a guerra, quando Uribe pediu desculpas imediatas antes e depois da reunião da OEA, na quinta-feira, 05/03, e depois, na sexta-feira, em Santo Domingo.

O ensaio cínico magistral do presidente colombiano evitou que ele fosse considerado o verdadeiro ditador na parada, transferindo esse ônus para quem estava intermediando a distensão, graças, evidentemente, à manipulação midiática.

Chávez, envergonhadamente, teve, depois do fanfarronismo, de recolher os flaps, saindo totalmente, chamuscado, como agitador do ambiente sul-americano, no momento em que foi reativo, e não ativo, sem competência política necessária. Se, em vez de fazer o jogo de guerra, de forma destemperada, tivesse, no calor dos acontecimentos, proposto o que recomendou na reunião de Santo Domingo, ou seja, que os guerrilheiros se transformem em partido político – como aconteceu com o M-19 – teria faturado. A ejaculação precocemente guerreira chavista enterrou os propósitos de liderança do próprio presidente venezuelano.

A provocação Uribe-W. Bush surtiu efeito. Favoreceu amplamente os propósitos indisfarçados da grande mídia, que reforçou a acusação sobre Chávez, intensificando sua caracterização de ditador e encobrindo o verdadeiro ditador, revelado pela ocasião, o titular do poder na Colômbia, tendo por trás os conselheiros de Washington.

Para piorar, Chávez teria sido, segundo informações dos militares da Colômbia, o culpado pelo massacre dos guerrilheiros das Farc, na medida em que estes puderam ser identificados por intermédio de telefonema dado aos guerrilheiros pelo titular do poder venezuelano.

Verdade ou mentira?

Chávez mereceu muito bem a gozação do Barão de Itararé, encarnada na capa da revista Brasília Em Dia.

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Jornalista, Brasília, DF