Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A Bolívia soberana

A cena é paradigmática. Aquele homem de cara quadrada, traços de aymara, originário da gema, com um capacete branco – de trabalhador – bem em frente a um complexo de gás, uma das mais importantes riquezas da Bolívia. Nas mãos, o decreto que nacionaliza as empresas de hidrocarbonetos. Coisa pouca, nada muito revolucionário. Um sonho perseguido por milhares de bolivianos, com marchas gigantescas, quedas de presidente e lutas imemoriais. No alto da empresa, um soldado desfralda a bandeira da Bolívia, num ato simbólico de soberania. Coisa rara por aquelas terras de saques e rapinagens históricas, perpetrados pela elite cortesã. Evo Morales não ‘defraudou’ seu povo. Todos esperavam por isso.

O ato de governo, que seria considerado normal se fosse apresentado em Washington, levou a imprensa brasileira e latino-americana a paroxismos de histeria. Evo Morales surge como mais um filhote do mal, cria maldita de Chávez e Fidel. Poucos foram os que fizeram análises frias, como as que são feitas quando os Estados Unidos decidem que determinados países estão cheios de ‘terroristas’ e precisam ser destruídos. Se o Tio Sam declara guerra em nome da democracia, ninguém questiona o ‘nacionalismo’ de Bush, que mata terroristas para defender o solo sagrados de seu país.

Benefícios

Mas se Evo Morales nacionaliza empresas estratégicas para o desenvolvimento da Bolívia, vira um louco populista. Ora, como bem diz o pensador argentino Jorge Enea Spilimbergo, os países centrais procuram não incentivar o nacionalismo nas nações periféricas, porque a insurgência da periferia em nome do nacional pode significar a morte para os que dominam.

Por incrível que possa parecer, Evo Morales tomou uma decisão que o próprio Bush tomaria. A diferença é que Bush o faria em nome do seu governo e Evo o faz em nome das gentes e por causa do povo. Conforme análise do economista Nildo Ouriques, em entrevista na CBN, do ponto de vista fiscal, a racionalidade da decisão é impecável. ‘Os preços do petróleo e seus derivados estão lá no alto. É justo que um Estado soberano redefina suas metas em função das necessidades do país.’ Ouriques deixa claro que a histeria que se ouve no rádio e na TV é totalmente desprovida de análise. ‘É ideologia pura.’ Qualquer pessoa sabe que, num contrato, se uma das partes é lesada pode tranqüilamente rompê-lo. Redefinir contratos é uma norma no mundo capitalista. Se o preço do petróleo aumenta, é justo que as empresas queiram rever os contratos. Quem aceita ser lesado, assim, quieto?

Nildo lembra ainda que a decisão de Evo Morales está pautada em questões que estão visceralmente ligadas à vida mesma do povo boliviano. Com a nacionalização, o excedente fica dentro do país, ajuda o indígena do altiplano que ainda morre de frio apesar de a Bolívia ser rica em gás, mantém o camponês no campo, impede a destruição da natureza, estende os benefícios do gás aos pobres e vai criando as bases para a implantação de um Estado nacional-popular.

Despacito

É óbvio que a Petrobrás, que age no mundo como uma empresa capitalista, vai ter lá os seus problemas a resolver. Mas isso faz parte do jogo do mundo dos negócios. Até agora a empresa brasileira não esboçou qualquer tentativa de rediscutir os contratos com o governo boliviano dentro da lógica da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas), por exemplo. Uma lógica que passa por outros pressupostos que não a mera exploração do mais fraco. Talvez esse episódio na Bolívia leve o governo brasileiro a enfrentar seus contratos com as nações irmãs de um jeito mais solidário.

O certo é que a Bolívia vive mesmo sua hora histórica. Não é uma revolução nos moldes sonhados por tantos. Mas é, verdadeiramente, uma outra ‘mirada’, um outro jeito de fazer as coisas. Será que é tão difícil de entender que é possível fazer política, governar, organizar a vida de outro jeito que não o imposto pelos organismos internacionais e pela polícia do mundo? A imprensa brasileira deveria ler mais, se informar mais, compreender mais a vida dos países latino-americanos antes de cometer tantas sandices. A Pátria Grande tem vivido esses anos todos acossada pela dependência e pela super-exploração do trabalho.

Agora, os países estão descobrindo suas riquezas, estão metidos até o pescoço na guerra energética e, o que é mais incrível, sabem que podem controlar eles mesmos os seus recursos. Estão adultos. Têm direção! Que ninguém venha dizer que aquilo que sonha o povo não é possível de ser sonhado. Porque aquilo que se sonha em comunhão vira realidade. É o que se vê na Venezuela e agora na Bolívia. E em menor medida na Argentina. Devagar, ‘despacito’, os governos vão sintonizando com as gentes. Dia virá que o equilíbrio se fará. Isso se ‘mister danger’ e seus asseclas não detonarem tudo. É preciso resistir!

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Jornalista do OLA, projeto de observação e análise das lutas populares na América Latina