Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A ética fantástica

Foi com espanto e indignação que desliguei meu televisor no domingo 24/3, após assistir ao Fantástico, programa dominical levado ao ar pela Rede Globo. Uma matéria sobre o desemprego, emendada a outra sobre como os ricos gastam dinheiro, me fez questionar valores éticos e humanos que vêm fazendo falta à imprensa brasileira.

A matéria do programa televisivo alertava para o aumento do desemprego em todo o país. De acordo com a reportagem, mais de 20% da população economicamente ativa vêm amanhecendo na fila do emprego todos os dias.

Em dado momento, a matéria apresentou aos telespectadores a saga de três homens simples em busca de financiamento para concretizar o sonho de ter um negócio próprio. Tratava-se do Microcrédito, um serviço do governo federal com o intuito de agilizar financiamentos a pequenos empresários.

Quase não acreditei quando a reportagem mostrou um dos rapazes recebendo, meses depois do primeiro contato com o órgão financiador, um cheque de R$ 200. Esse era o financiamento ao qual tinha direito para mudar de vida.

De repente, a matéria mudou o foco e passou a falar sobre os representantes daquele 1% da população cuja renda per capita é de R$ 2.900, em média, atingindo uma renda familiar de R$ 10.500/mês.

E não parou por aí. Com seu off ‘divertido-sabe-se-lá-por-quê’, a apresentadora Glória Maria passou a narrar as aventuras de milionários brasileiros comprando carros importados e divertindo-se nas estações de esqui em Aspen, EUA, onde uma diária em hotel chega a custar R$ 3 mil por pessoa. As imagens dessa minoria feliz foram embaladas ao som de uma música cujo refrão eram gargalhadas retumbantes. Quem está rindo de quem, afinal?

Executivos da comunicação

Quando tudo aquilo terminou, desliguei a TV, atônito, tentando encontrar um sentido para o que acabara de presenciar. Qual será a verdadeira intenção do Fantástico com tudo isso?

Será que os editores quiseram fazer uma crítica ao comportamento de empresários que torram dinheiro comprando carros importados e esquiando em Aspen enquanto o povo brasileiro passa fome?

Se foi esta a intenção, por mais nobre que seja, ela pode gerar uma reação contrária por parte do telespectador que, ao contrário do rico empresário, não reúne condições sequer para morar dignamente.

Que ética fantástica é essa, que não mede as conseqüências de uma pauta que pode estimular ainda mais a violência em nosso país? Eu mesmo engrosso a lista dos milhões de desempregados brasileiros, e revoltou-me a aparente falta de respeito com que o assunto foi abordado.

Acho que a Globo nos deve, pelo menos uma explicação sobre o ocorrido. Não é possível que nós, brasileiros, continuemos alvo fácil da inocência ou do sadismo da grande mídia. Eu, como jornalista e cidadão brasileiro, não admitirei mais ser alvo de gargalhadas alheias só por estar desempregado e não poder esquiar em Aspen.

Está na hora de os jornalistas pararem de se comportar como executivos da comunicação e reavaliarem seus conceitos morais e éticos. A informação não pode ser tratada como moeda de compra e venda. Ela deve ser encarada, sim, como informação. No caso do jornalismo, os fins nem sempre deveriam justificar os meios.

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Jornalista que vem se especializando na arte do job hunting