Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A ‘Ovelha Negra’ santista

Não se trata de má vontade ou saudosismo, mas em que pese toda a liberdade que desfrutamos, dos ilimitados recursos e opções hoje em dia disponíveis, o fato é que, como se diz na gíria, ainda há muitas coisas que não chegam aos pés de antigamente. O muito que se ganhou em matéria de conforto, praticidade, qualidade de vida, em contrapartida ficou para trás nas cruciais áreas humanísticas e culturais. Salta aos olhos a estagnação e mesmo o retrocesso em setores vitais da sociedade, seja sob o ponto de vista social, que patina e sofre com os problemas de sempre, como nos meios intelectual, musical e esportivo. E de forma ainda mais dramática, no jornalístico.

Ainda outro dia, um amigo meu, de regresso de um longo período nos Estados Unidos, me falava que a música brasileira que se toca lá é a mesma de vinte anos atrás, ou seja, de Tom Jobim, Ivan Lins, Jorge Benjor, Chico, Caetano. Um repertório que não é renovado por absoluta falta de composições à altura do pessoal da antiga. E de fato, depois da fase áurea da bossa nova e do gradual desaparecimento do samba de raiz, ter como nossos grandes representantes internacionais as sacolejantes canções de Ivete Sangalo e Daniela Mercury, e pior ainda, coisas abomináveis como “Ah, se eu te pego” e “Lepo-Lepo”, é mais uma evidência do quanto o nível caiu, de como estamos mal na fita.

No âmbito jornalístico, que é o que nos interessa aqui, longe de ser estranhável, o gritante rebaixamento de nível em curso está vinculado ao declínio da imprensa tradicional, cujo papel de grande baluarte da democracia e caixa de ressonância da sociedade, lhe foi abruptamente subtraído, em parte pela televisão, mas sobretudo pelas incisivas e onipresentes mídias digitais. Esvaziamento que contrasta com a vitalidade e a criatividade que esbanjava nas décadas de 70 e 80, curiosamente – mas não por acaso –, justamente nos chamados anos de chumbo da ditadura. Afinal, faz parte da matriz e da essência do jornalismo o protagonismo em épocas de exceção e crise, que é quando mais seu papel se torna fundamental em defesa dos direitos civis e constitucionais. Em suma, da democracia.

Foi mediante esse empenho e desempenho que a imprensa viveu sua fase mais profícua e relevante, participando decisivamente do processo de redemocratização do país. A grande imprensa, em particular, redimindo-se do apoio inicial ao golpe militar de 1964, e a chamada imprensa alternativa, de breve porém notável atuação, minando e desmoralizando a linha dura com seu viés debochado e sarcástico. Papel que fizeram a fama de nanicos como o Pasquim, Opinião, o gaúcho Coojornal, e o santista Ovelha Negra, que em sua breve existência, em meio censura, a repressão feroz e o sufoco financeiro, deixaram um legado que ainda hoje vale muito a pena conhecer e relembrar.

Projetos culturais independentes

É com este propósito que está aberta ao público desde o último dia 23/4, na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos (SP), a exposição “Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática”, coordenada pelo grupo Humor Gráfico na Imprensa Alternativa Brasileira, com curadoria do cartunista e professor universitário Osvaldo Dacosta, reunindo o acervo do hebdomadário Ovelha Negra, criado pelo cartunista santista Geandré, que circulou entre os anos de 1976 e 1977.

“’Com a exposição é possível demonstrar a importância do jornal na imprensa alternativa brasileira, apresentá-lo ao público que não o conhece e transmitir um pouco do clima do jornal, seu humor, a irreverência e a contestação sobre o país, propondo um questionamento ao visitante, no sentido de comparar o Brasil dos anos 70 e o atual”, explicou Dacosta a reportagem do jornal A Tribuna.

Na exposição, que poderá ser vista gratuitamente até o dia 31 de maio, de terça a domingo, das 9 às 18 horas, à avenida Bartolomeu de Gusmão, 15, no bairro Embaré em Santos, o visitante tem acesso a edições originais e reproduções do jornal que foi o primeiro no país a ser basicamente de cartuns. Pouco depois do surgimento do lendário Charlie Hebdo, o satírico semanário francês que monopolizou as manchetes no início do ano com a chacina de 11 de seus cartunistas por dois terroristas da Al Qaeda. Mesmo de curta existência, ganhou rapidamente prestígio no meio pelo nível de colaboradores como Paulo Caruso, Angeli e Laerte, nomes consagrados no mercado editorial.

“É importante destacar que não é apenas uma exposição para cartunistas e jornalistas. O público em geral pode se interessar porque vai conhecer um pouco mais sobre o período da ditadura no Brasil, apreciando o trabalho de artistas talentosos e conferir que o bom humor é uma das características mais bacanas do ser humano. Nesses tempos em que alguns pedem a volta da ditadura, esta exposição é oportuna para jogar uma luz sobre essa sombra de nossa história recente”, completa, lembrando que a exposição é um dos projetos contemplados pelo Concurso de Apoio a Projetos Culturais Independentes, da Secretaria de Cultura de Santos, e que inclui também oficinas sobre o tema, também gratuito.

Fica o convite.

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Ivan Berger é jornalista