Sunday, 05 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

As unhas do bandeirante

 

Os jornais paulistas informam nas edições de terça-feira (15/5) que o Monumento às Bandeiras, escultura de Victor Brecheret que é considerada um dos símbolos de São Paulo, foi alvo de vandalismo: um dos bandeirantes que monta um cavalo teve as unhas do pé esquerdo pintadas de azul.

A obra é conhecida como “deixa que eu empurro”, ou “empurra-empurra”, e já foi motivo de muita ironia porque as cordas que supostamente deveriam puxar a embarcação, na metáfora do escultor, são frouxas, e quem a movimenta são na verdade os braços e pernas dos indígenas, não os homens brancos montados a cavalo. Daí a versão popular segundo a qual a canoa simbólica do avanço paulista é “empurrada” pelo povo, e não puxada pelos heróis oficiais.

Interpretações à parte, os jornais são unânimes em afirmar que se trata de um ato de vandalismo. No entanto, com base naquilo que a imprensa costuma chamar de arte contemporânea, a pintura das unhas dos pés do bandeirante poderia ser considerada também uma intervenção artística. Afinal, desde que o establishment cultural passou a considerar que tudo é arte, quem estaria autorizado a afirmar que as intenções do suposto predador não seria eminentemente uma obra dos deuses?

Estética aposentada

Dependendo de suas relações comerciais, um crítico poderia dizer que o interventor anônimo quis chamar a atenção para o fato de que os bandeirantes de Brecheret diante do Parque Ibirapuera não usavam botas, ao contrário da estátua erigida por Júlio Guerra em homenagem ao bandeirante Borba Gato na entrada do bairro de Santo Amaro, que se apresenta bem calçado, bem vestido e armado de arcabuz.

O acontecimento poderia suscitar alguma polêmica, se houvesse alguém disposto a discutir os critérios pelos quais um objeto, um gesto, uma imagem ou um movimento deixa o mundo da nulidade para se transformar em representação subjetiva e esteticamente significativa de alguma coisa.

Mas esse tipo de debate, ou melhor, a simples hipótese de alguém se atrever a questionar o que vem a ser a arte contemporânea já é capaz de suscitar manifestações raivosas dos defensores do novo conservadorismo niilista. O poeta, jornalista e crítico de arte Affonso Romano de Sant’Anna já enfiou o dedo nessa ferida em 2008, ao publicar, pela editora Rocco, seu devastador ensaio intitulado “O enigma vazio”.

As unhas pintadas do bandeirante deveriam se inserir nesse contexto, simplesmente porque, se se tratasse de uma intervenção de um dos “artistas” adotados pela mídia, seu ato não seria considerado vandalismo.

Assim como as pichações dos anos 1980 deixaram a marginalidade para se estabelecerem no ramo das manifestações legítimas, com direito a uma Bienal Internacional no Museu Brasileiro de Escultura, quem pode assegurar a eterna marginalização daqueles que dão um toque contemporâneo a muros, monumentos e estátuas em espaços públicos?

No Brasil há uma diferença entre a “arte” do grafite e o “vandalismo” da pichação – esta tipificada como crime desde 1998, punível com multa e até um ano de cadeia. E o que diferencia uma coisa da outra, se a estética foi aposentada há muito tempo de sua função na qualificação da arte? Que dizer, então, da arte digital, das artes performáticas, da arte sensorial, da vídeoarte e das instalações efêmeras?

A vanguarda da vanguarda

Há quem diga que não existe arte além da arte mediada, ou seja, seria a mídia a única entidade, entre os humanos e os deuses, capaz de avalizar um gesto ou uma atitude como sendo arte. Nesse caso, pode-se afirmar, como lembra Affonso Romano de Sant’Anna, que a arte contemporânea, ao criar uma estética da subtração, fez finalmente desaparecer toda arte: “Se tudo é arte, nada mais é arte”.

No início do século passado, professores japoneses ensinavam a crianças e jovens imigrantes, no Brasil, o conceito chamado “muri” – querendo definir tudo que não é adequado. Um gesto a mais, uma pressão maior ou menor sobre a tela de linho, poderia ser “muri”, e então não haveria arte.

A arte, então, nascia da oposição do objeto, ou da realidade, às intenções do artista. O objeto artístico deveria representar a relação mais adequada – mais distante de “muri” – entre o desejo do artista e a realidade dos materiais ou do espaço, representação de todas as angústias.

Esse tipo de visão desapareceu para sempre no universo cultural difuso que rejeita todo tipo de angústia. Então, as unhas azuis do bandeirante podem ser qualquer coisa. Até mesmo a primeira manifestação de uma nova vanguarda.