Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Brevíssima introdução à filosofia laertiana

Diariamente, depois (ou antes) de ler os novos capítulos da novela ‘Brasil’, de entender sem entender o que só o ministro Palocci entende, de acompanhar furacões e rebeliões pelo mundo afora… visito as tirinhas de Laerte na Folha de S.Paulo.

Lembro-me de uma que mostrava os três porquinhos diante do computador. Pela janela, via-se o lobo mau em cima do poste, cortando um fio. Um dos porquinhos comenta: ‘Ah… que saudades do tempo em que ele ameaçava soprar, soprar e derrubar tudo!’

De fato, a maldade maior em nosso tempo é cortar-nos a internet!

A filosofia de Laerte trabalha com o conceito do mal. E confesso que passo mal quando leio/vejo suas reflexões. Em outra tirinha, um homem de terno e uma mulher vestida de modo extravagante. A mulher é tão pequena que sua cabeça mal toca os joelhos do homem. Este lhe pergunta:

– Você é prostituta?

– A melhor.

 O que você faz?

– Subo em você… instalo-me junto a seu ouvido e falo:… não foi sua culpa… não foi sua culpa… não foi sua culpa…

Filosofia em tirinha não perdoa. Se Nietzsche e Cioran adotavam aforismos, alguns bem sucintos, Laerte mistura quadros da vida com linguagem de microcontos. Se alguém pretendia rir, desista. Outro exemplo? Primeiro quadrinho: um carro e o texto – ‘Depois que adotei esse combustível, nunca mais parei para abastecer.’ Segundo quadrinho: a silhueta do motorista, e o texto – ‘Adeus gasolina, álcool, gás, diesel, energia solar. Hoje meu carro é movido a…’ Terceiro quadrinho: vemos o rosto do motorista, e o texto termina com uma palavra – ‘…ódio.’

Para ilustrar

Nem só de ódio vive o homem, mas certamente de ódio estamos morrendo. Laerte tem especial sensibilidade para identificar o combustível maldito. Movemo-nos, no trânsito e na existência, com ódio. Subimos, descemos, cruzamos ou estacionamos com ódio.

Um homem de terno sobe uma escadaria imensa. Carrega nas costas uma bomba. Ao chegar ao topo, aponta a bomba para baixo, e declara: ‘O meu muito obrigado a todos que me ajudaram a chegar até aqui.’ Como diria o porquinho: ‘Que saudades do tempo do Sísifo de Camus…’

A vida é cruel. E a morte. Dois bustos numa praça dialogam:

– Ai…

– Que foi?

 Saudades.

 De quê?

 Das minhas hemorróidas.

Lembrou-me Machado de Assis.

E se eu tivesse talento, produziria uma tirinha para ilustrar a filosofia de Laerte.

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Doutor em Educação pela USP e escritor; www.perisse.com.br