Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Carga tributária, sonegação e o que não é sonegação

Domingo retrasado, dia 9, O Estado de S. Paulo informava na manchete principal de sua capa: ‘Sonegação de impostos equivale a 30% do PIB’. Enquanto a carga tributária alcança 35% do PIB, a sonegação chegaria a 30%. Na capa do caderno econômico, o título era: ‘Sonegação já empata com a carga tributária’. Algumas observações devem ser feitas sobre essas manchetes.

Primeiro: o número da suposta sonegação parece ser extremamente alto e o jornal não o questionou. A impressão é de que só é possível projetar um índice tão elevado incluindo não apenas os impostos efetivamente sonegados, mas também os tributos que são reconhecidos como sendo devidos e não são pagos e, ainda, os supostos impostos relacionados às atividades econômicas no âmbito informal.

No entanto, a rigor, o setor informal não tem que pagar impostos e, portanto, não é correto falar em sonegação no que tange ao mercado informal. O setor informal não paga impostos, mas não sonega (é claro que uma parte do setor informal se associa com quem sonega tributos, mas simplesmente não é a mesma coisa e não é correto generalizar para todo o setor informal). Ainda: mesmo no âmbito formal da atividade econômica, é preciso distinguir quem não consegue pagar os impostos devidos e, assim, tem impostos atrasados, de quem burla a legislação tributária e assim comete crime tributário.

Círculo vicioso

Então, podemos perceber, de modo geral, quatro grupos: os que pagam impostos corretamente, os que atrasam parte substancial dos impostos devidos, os que sonegam e os que estão no setor informal. Dentro do segundo grupo, há os que deixam propositalmente o pagamento dos impostos atrasar para conseguirem depois melhores condições de pagamento, como moratória dos juros e anistia de parte das dívidas (o governo, assim, premia os que atrasam impostos em relação aos que pagam de forma correta os tributos). Os 35% do PIB constitutivos da carga tributária são majoritariamente pagos pelo primeiro dos quatro grupos. Os supostos 30% do PIB de pretensa sonegação, na verdade incluem os impostos atrasados do segundo grupo, a sonegação do terceiro grupo e a parte referente ao setor informal do quarto grupo.

Segundo: a maneira pela qual foram redigidas aquelas manchetes do dia 9 sugere ainda uma conotação que o teor da matéria não corrobora. ‘Sonegação de impostos equivale a 30% do PIB’ e ‘já empata com a carga tributária’ sugere uma atribuição de culpa ao empresariado que não paga impostos. A matéria informa sobre a estimativa de que o comércio varejista sonega, em média, 60% do que vende, havendo uma sonegação em cascata: a indústria, o atacadista e outros agentes da cadeia produtiva também são levados a sonegar por pressão do comércio varejista. No entanto, na própria matéria é ressaltado que a carga de impostos é individualmente alta. Há, assim, um aspecto que a matéria tangencia sem desenvolver: quem paga impostos, tem que pagar por aqueles que não pagam; quem paga impostos, paga tanto por quem sonega quanto por quem não consegue pagar impostos e ainda por quem está no mercado informal e, portanto, não paga impostos. Isso faz com que a carga para quem paga impostos fique pesada demais, o que leva a aumentar o número tanto dos que são levados ao mercado informal, quanto dos que atrasam e dos que sonegam impostos. Assim, aumentando o número dos que sonegam, dos que atrasam e dos que atuam no mercado informal, as alíquotas são aumentadas para os que pagam os impostos, tornando a carga tributária destes ainda mais pesada. Carga tributária dos que pagam mais pesado, o início do ciclo é retomado, levando mais pessoas a sonegarem, mais pessoas a atrasarem o pagamento dos impostos e mais pessoas a migrarem para o setor informal.

Sem factóides ou simplismos

Décadas atrás, a culpa era dos que sonegavam impostos e da estrutura fiscal que deixava impunes esses sonegadores; prioritariamente, a culpa era dos maus cidadãos (ou não-cidadãos) que burlavam o pagamento dos impostos devidos. De lá para cá, a responsabilidade passou a ser de um sistema tributário que sistematicamente ou obriga os cidadãos a pagarem cada vez mais impostos, ou acaba induzindo mais pessoas a sonegarem para conseguirem manter suas atividades porque a carga tributária tornou-se pesada demais ou empurra cada vez mais as pessoas para o mercado informal, o setor que mais cresce no país. Agora, ao invés de haver uma preocupação em punir os sonegadores, a prioridade é fazer os que pagam impostos pagarem por quem não paga. Assim, mesmo os que defendem mudanças no sistema tributário, chamam todos os que não pagam impostos de sonegadores, generalizando de forma inadequada o termo ‘sonegação’.

O jornal, por um lado, cumpriu o papel de informar sobre o estudo que indicava a projeção de sonegação na ordem de 30% do PIB. Por outro lado, as manchetes foram mal redigidas e a matéria deixou de adensar um pouco mais, de forma adequada, o assunto (essa falta de espessamento na matéria talvez explique o problema detectado nas manchetes). A forma correta de tratar a questão deve abranger a complexidade que lhe é própria, sem factóides: os simplismos são desnecessários.

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Historiador e doutor em Filosofia pela FFLCH-USP, Campinas, SP